O “ego” comanda sempre, por mal dos
nossos pecados. Um texto bem elucidativo da Professora Universitária PATRÍCIA FERNANDES.
A polarização política das universidades
Em Portugal o ambiente académico não
se encontra tão degradado como no mundo anglo-americano, mas o diagnóstico não
é linear pois varia muito de área para área e até de universidade para
universidade.
PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho
OBSERVADOR, 05
fev. 2024, 00:203
Papel das universidades na polarização política
Como tenho vindo a argumentar, o pequeno
texto de Benjamin Constant, Da liberdade dos antigos
comparada com a dos modernos, é particularmente útil para
compreender a modernidade liberal e a conquista daquilo que consideramos como a
esfera das liberdades individuais. É
porque os modernos reivindicam um espaço privado, onde o poder político não
deve interferir, que garantimos um conjunto de liberdades privadas, como a
liberdade de consciência, de religião, de pensamento, de expressão.
É esse espaço de liberdades individuais
que desaparece quando movimentos
políticos afirmam que o pessoal é político, suprimindo a esfera privada e
querendo aplicar a lógica e os princípios políticos ao domínio privado – ou
seja, querendo submeter todas as dimensões da vida a objectivos políticos.
A consequência só pode ser uma: se atribuímos novos objectivos a antigas
instituições, os anteriores objectivos desaparecem: se, por exemplo, o objectivo da arte passa a ser a
representatividade política ou a criação de uma narrativa política de
resistência, a procura por excelência e beleza desaparece. E a verdade é que
vemos agora, por todo o lado, os corpos desmembrados desses antigos objectivos.
Em texto recente, debrucei-me sobre como
este processo de politização, mais do que se fazer sentir nas
universidades, nasceu nas universidades, no contexto de protesto e
contracultura dos longos anos 60, de luta pelos direitos civis e contra a
guerra no Vietname. Foi pelas
mãos de uma vanguarda cultural de esquerda – a New Left
– que a Universidade foi tomada para
passar a cumprir um objetivo político: o de tornar a sociedade
norte-americana, e ocidental, mais justa. Isso passaria por reformular currículos,
redigir códigos de conduta e linguagem e usar o ambiente académico para formar
estudantes-activistas. Mas a estipulação desse novo objectivo académico
– a procura por justiça social –
implicou o abandono do velho objectivo académico – a procura
pela verdade (com todas as nuances interpretativas que a noção
comporta).
Terminei o meu texto recordando como alguns autores chamam a atenção para o
facto de as universidades anglo-americanas, com o seu objectivo político
explícito de formar gerações de ativistas, têm constituído um vector
fundamental de divisão social entre aqueles que vão para a universidade e o
resto da população. É por esta razão que, como argumentei
no livro Polarização, devemos reconhecer o papel desempenhado
pelas universidades no actual momento de polarização política. Isto
porque, apesar de a política assentar na
pluralidade de valores e entendimentos sobre o bem comum, o contexto de
polarização vai para lá disso: traduz uma total incapacidade de diálogo entre
as duas partes, como se estivessem perante um fosso intransponível. E as universidades
ajudaram a criar esse fosso.
2 A polarização política nas
universidades
A politização das universidades tem
efeitos imediatos naquele que é o método académico tradicional, que consiste em sujeitar o trabalho
intelectual e as hipóteses de investigação a uma troca livre e racional de
argumentos. É aquele momento que qualquer académico preza: quando,
no final de uma conferência, os nossos pares sujeitam os nossos argumentos a
uma avaliação crítica. Não vale a pena romantizar: não se trata de um momento fácil, pois ninguém gosta de ser
bombardeado com questões que põem em causa o seu trabalho (sobretudo, se levado
a cabo de forma séria e honesta). Mas, no final, ficamos a
ganhar: se o argumento for forte, saímos mais fortes; se for fraco, teremos mais
hipóteses de o melhorar.
Contudo, a politização das universidades eliminou este processo
clássico. Ao determinar que o objectivo das universidades é a justiça social (e não a verdade), o novo entendimento académico está a
condicionar que ideias podem ser discutidas, que hipóteses podem ser
investigadas, que lugar ocupam aqueles que querem defender ideias menos
consensuais. E já
sabemos como esta atitude se traduziu em lógicas de cancelamento, para impedir
que essas ideias, essas hipóteses e essas pessoas sejam ouvidas.
O processo foi agravado com o facto de
essa politização ter um cariz essencialmente identitário, que une de forma
indissolúvel as ideias apresentadas à identidade da pessoa que as apresenta,
pelo que todas as críticas às ideias são consideradas como um ataque à
identidade. A discussão fica irremediavelmente posta em causa e as
universidades tornam-se profundamente polarizadas.
3A polarização nas universidades
portuguesas
Em Portugal, o ambiente académico não se
encontra tão degradado como no mundo anglo-americano, mas o diagnóstico não é
linear, pois varia muito de área para área e até de universidade para
universidade. De qualquer modo, é evidente que, nas áreas das ciências sociais,
humanas e políticas, a balança se encontra claramente favorável à esquerda; e
se as questões identitárias não têm, felizmente, o mesmo impacto que se regista
nos Estados Unidos, o argumentário feminista tem um peso cada vez mais
relevante.
Mas é possível identificar uma gradual
polarização no ambiente académico, que se traduz numa crescente incapacidade de
ouvir vozes politicamente diferentes das nossas e considerá-las legítimas –
como se só aqueles que pensam como nós merecessem ser ouvidos. Por essa razão,
as conferências e os seminários parecem cada vez mais câmaras de eco, em que a
perspetiva ideológica é sempre a mesma, e a bolha vai-se autoalimentando porque
simplesmente recusamos ouvir alguém que tenha ideias “politicamente
incorretas”.
Acima de tudo, parece prevalecer
uma generalizada incuriosidade. E na área política isso é particularmente
evidente quando os académicos, ao invés de quererem compreender os fenómenos,
estão mais preocupados com o seu julgamento moral. É o que tem acontecido, na
última década, com os investigadores (e os jornalistas, já agora) que quedaram,
estupefactos, perante o crescimento dos movimentos que designam como populismos
de direita: Como é possível que as pessoas votem nessas ideias, acreditem
naquelas informações, confiem nessas pessoas?, perguntam eles. Mas com a
expressão “como é possível?” não estão realmente a perguntar “como é que isso
se tornou possível?”; estão simplesmente a emitir um juízo moral sobre o tipo
de pessoa que vota, acredita e confia naquelas ideias, informações e pessoas.
De facto, encontramos poucos vestígios
daquela curiosidade sincera que nos impele a compreender por que razão milhões
de pessoas escolhem projetos antissistema ou se opõem às ideias que a elite
decidiu que eram as melhores. A maioria dos investigadores parece mais
preocupada em saber como silenciar essas vozes (recusando que ideias
com as quais discordam possam circular no espaço público, multiplicando as
acusações de ismos e fobias, exigindo proibições e declarações de ilegalidade)
do que em compreender por que razão tantas pessoas sentem que o sistema não
está a funcionar para elas.
4E a geração fada-dos-dentes?
Se, por um lado, a academia se tem
tornado um espaço de crescente incuriosidade e incapacidade de discussão, por
outro, as gerações que têm chegado às universidades, com as particularidades
que já explorei e
a que voltarei em breve, aprofundam a sensação de polarização.
Estudos recentes têm revelado
consistentemente que, no ocidente, as novas gerações acreditam menos nas instituições
democráticas, são mais suscetíveis à ideia de líderes fortes e têm menos
capacidade de participar, de modo saudável, em discussões políticas. Em
particular, e revertendo o espírito de rebeldia que geralmente marca a
juventude, os mais novos parecem cada vez menos capazes de ouvir coisas com as
quais não concordam.
Talvez não seja, por isso, surpreendente
a reação da
Associação Académica da Universidade do Minho a uma entrevista
ao Presidente da Escola de Economia e Gestão daquela Universidade. Perante o
êxodo dos jovens licenciados, Luís Aguiar-Conraria defendeu que as propinas
devem ser aumentadas, uma vez que o país não pode estar a financiar futuros
trabalhadores dos países ricos (argumento explicado aqui). Esta posição terá certamente os seus méritos e os seus
deméritos (como todos os argumentos), mas a reação da AAUM é sintomática dos novos tempos:
“A Associação Académica da Universidade
do Minho não compreende como é que um Presidente de uma prestigiada
Escola da Universidade do Minho e do país (e [sic] todas as responsabilidades
que são inerentes ao exercício do seu cargo) consegue defender
publicamente este posicionamento e vem, desta forma, publicamente
condenar a afirmação.” (itálicos meus)
No dia seguinte, a associação organizou
mesmo um protesto junto à EEG, que pode ser apreciado nas imagens partilhadas
no Facebook. Mas quão preocupante é que jovens estudantes
considerem que a reação adequada a uma opinião é organizar um protesto na
universidade?
O Presidente da Escola, com bastante
paciência democrática, reuniu com elementos da associação para que, no final,
eles chegassem à conclusão de que… têm posições diferentes. Que pelo
menos a geração mais qualificada de sempre tenha aprendido que é isso
que acontece em sociedades livres: as pessoas têm opiniões diferentes, devem
poder expressá-las livremente e sujeitarem-se a críticas e argumentos. Bem
diferente é organizar protestos porque alguém disse alguma coisa com
a qual não concordamos. Isso é que está muito longe do que deve acontecer em
sociedades livres e democráticas.
PS: Ao frequentar o curso de
Filosofia da Universidade do Minho, há quase duas décadas, tive a sorte de ter
excelentes Professores, que estimularam sempre a curiosidade intelectual e o
diálogo filosófico. Com quase todos aprendi que é mais importante conhecer as ideias das quais discordamos do que as
ideias com as quais concordamos e, por isso, recordo muitas vezes como o Prof. João Cardoso Rosas (meu orientador)
dedica o seu livro Concepções da Justiça a
todos os seus ex-alunos, mas “especialmente, àqueles que discordaram de [mim]
em alguma ocasião”. Não há lição mais importante.
MAIS OPINIÃO UNIVERSIDADES EDUCAÇÃO
COMENTÁRIOS
bento guerra: "Por nós , ou contra nós" é a cultura da má
educação e também da negação democrática. Nos tempos saudáveis, chamava-se da
2ªCircular : Benfica-Sporting
José B Dias: ... a bolha
vai-se autoalimentando porque simplesmente recusamos ouvir alguém que tenha
ideias “politicamente incorretas”. Na Academia tal como por aqui nestas caixas
de comentários
Coxinho: Gostei muito do seu
artigo, Patrícia, até pela imunidade que você revela para não se deixar
contagiar por essa politização que obviamente reprova. Abençoados os seus
alunos!
Rosa Silvestre: Excelente artigo, mas
permita-me que lhe diga, concordamos com alguma coisa e discordamos de alguma coisa.
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