Tudo
isso que bem descreve Patrícia Fernandes, em
resultado das diferentes ideologias que o “pseudo comunismo”- em que é de
bom-tom filiar-nos, por via da demonstração da nossa intelectualidade, (pese
embora o facto de esse saber ser colhido preferentemente nas fofocas da
comunicação social, mais do que nas leituras dos doutrinários convictos. E vá
de nós, os inertes, silenciarmos as nossas réplicas, em comodismo educado, ou
porque seguimos preceitos pedagógicos de brandura, que impedem discussões, ou
porque a democracia, que é pau para toda a colher, nos manda aceitar todo o
tipo de visões e mesmo de imposições das mastigações alheias, ou porque nos
falta ânimo ou competência ou coragem para pegarmos o touro pelos cornos,
sensíveis que somos… Mas Patrícia Fernandes explica bem os factos, leiamo-la, e aos seus
comentadores, que também explicam bem.
De resto, já o dissera Pessoa: “Quanto é melhor, quando há bruma, Esperar por D. Sebastião, Quer venha ou não! “
Abandonemos, pois, a
sala, que a vida são dois dias…
Abandonar a sala
Generaliza-se a ideia de que podemos
“abandonar a conversa”. E a verdade é que é mais fácil não nos esforçarmos,
mais rápido diabolizarmos o outro, muito menos cansativo não entrar no jogo
democrático
PATRÍCIA FERNANDES
Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 26
fev. 2024, 00:1830
Devo também a André Abrantes Amaral a
leitura de Elizabeth Strout, cuja tetralogia se lê de um só fôlego. No último
dos quatro livros, Lucy à beira-mar, a narrativa decorre em contexto de
pandemia e remete para eventos recentes como a invasão do Capitólio, o norte-americano, no dia 6 de janeiro de 2021.
Strout procura o difícil exercício dos nossos tempos, que é colocar-se na pele
do outro, tentar a compreensão do outro lado. É por vezes demasiado óbvia
nessa tentativa, o que elimina parte da tarefa cognitiva que deveria resultar
da autonomia do leitor – ainda assim, há pelo menos uma passagem a que vale a
pena regressar.
Lucy,
a narradora, recorda como, pouco tempo antes da pandemia, foi convidada para ir
à Universidade de Chicago falar sobre o seu livro de memórias, que relata uma
infância de pobreza e de como a pobreza significa, acima de tudo, exclusão
social no sentido profundo de solidão. Quando chega à universidade, encontra
uma turma de jovens ensimesmados e provenientes de famílias abastadas, a quem o
livro dela nada diz. Estes estudantes universitários, que indicam como livros
favoritos títulos de bestsellers, nunca passaram por provações e isso
impede-os de se relacionarem com a obra de Lucy Barton: é apenas uma mulher
branca de meia-idade a escrever sobre pobreza.
Como muitas vezes acontece a Lucy ao
longo da vida, esta experiência constitui um momento de profunda humilhação e é
isso que lhe permite dizer:
“Durante
uma hora, naquele dia nos arredores de Chicago, senti novamente a minha
humilhação de infância de maneira tão profunda. Interroguei-me: e se eu
continuasse a sentir-me assim a vida toda, e se todos os empregos que tive na
vida não fossem suficientes para realmente constituírem uma carreira, e se eu
me sentisse o tempo todo desprezada pelas pessoas ricas deste país,
que faziam troça da minha religião e das minhas armas? Eu não tinha religião e
não tinha armas, mas, de repente, senti que via o que essas pessoas sentiam;
eram como a minha irmã, a Vicky, e compreendi-as. Tinham-nas feito sentir-se
mal consigo próprias, olhavam-nas com desprezo, e elas já não aguentavam mais.
(…) E, então, pensei: Não, aquelas pessoas no Capitólio eram nazis e racistas.
E, assim sendo, a minha compreensão – o meu entendimento do partir das janelas
– acabou ali.”
Strout é particularmente hábil ao
destacar o poder da linguagem, nomeadamente o efeito gerado por designarmos o
outro como nazi ou racista: a compreensão deixa de ser possível. Trata-se de uma velha estratégia política, a
diabolização do outro. E é particularmente eficaz em tempos
extremados e polarizados, e especialmente útil para aqueles que, confiantes de
deterem a verdade final e absoluta, querem excluir certas vozes do espaço
público.
Mas se este é um mau princípio na vida
privada, no espaço político é particularmente perverso: quando deixamos de
ouvir os que não pensam como nós, quando os diabolizamos ao ponto de
considerarmos que a sua opinião não interessa – mesmo ou sobretudo quando esse
adversário político tem um apoio crescente da população –, estamos a colocar-nos na posição de não querer compreender as
preocupações de uma parte significativa da população. A diabolização impede
a compreensão e a falta de compreensão gera tempos sombrios.
É verdade que os tempos sombrios são uma constante da história, e
tendem a desaparecer com a mesma regularidade com que surgem. Mas há qualquer
coisa de mais assustador nos nossos tempos: é que parecemos estar cada vez mais
condicionados pelas ferramentas digitais de que somos cada vez mais
dependentes.
Em Os superficiais: o que a Internet está a fazer aos
nossos cérebros, Nicholas
Carr chama a atenção para o facto de o maravilhoso mundo digital nos estar a
tornar mais estúpidos ou, pelo menos, mais superficiais. Temos
mais dificuldade em estar concentrados, lutamos mais com a tarefa de ler um
livro do princípio ao fim, a nossa capacidade de memorização vai-se
deteriorando, sentimos que é muito mais árduo pensar em profundidade. Parece
ser sobretudo difícil pensar de forma lenta – que é, na verdade, a
única forma de pensamento possível. Ou, como diziam os antigos (que sabiam
sempre tudo, quando mais não seja tendo à mão dois ditados
contraditórios): depressa e bem, não há quem.
Contudo, o problema tem-se agravado: a lógica das redes sociais digitais está a colonizar o modo como nos
relacionamos politicamente na vida real. Vivemos
cada vez mais entre aqueles que pensam de modo semelhante ao nosso, replicando
as bolhas sociais criadas pela lógica algorítmica das redes sociais.
Desabituamo-nos, nessa medida, de sermos desafiados por posições diferentes das
nossas e somos tentados a “bloquear pessoas”, excluindo do nosso mundo aqueles
que dizem coisas estranhas. E se não nos conseguirmos proteger
absolutamente do que esses dizem, somos treinados a, rapidamente, “denunciar
alguém” para que as instituições competentes possam impor a nossa visão do
mundo. E com isto, vamo-nos habituando a uma hipersensibilidade, que nos faz
confundir ideias diferentes com violência física e psicológica.
Ainda mais preocupante é que
isto aconteça em contexto eminentemente político, aquele em que o esforço de
compreensão é mais importante. Mesmo aí está a generalizar-se a ideia de que
podemos “abandonar a conversa”. E a verdade é que é mais fácil não nos
esforçarmos, é mais rápido diabolizarmos o outro e é muito menos cansativo não
empreender o jogo democrático, que consiste em trocar argumentos com aqueles
que defendem ideias diferentes e, eventualmente, mostrar que as nossas são
melhores. Vivemos tempos sombrios em que o mais fácil se tornou abandonar a sala.
DEMOCRACIA
SOCIEDADE LIVROS LITERATURA
CULTURA
COMENTÁRIOS (de 30)
Paulo Silva: Cara Patrícia, quem por norma abandona a sala da
democracia é quem não está para discutir ideias, apenas impô-las, e em política
essa é uma característica comum a revolucionários e anti-democratas,
(pleonasmo). Quando não conseguem impor as suas visões do mundo por via da
força das armas, vestem a pele de cordeiro para recorrerem ao logro, à mentira,
à ilusão e à dissimulação, e andarem no meio das ovelhas a apascentar o rebanho
com demagogia. Mas sempre que alguém os descobre ou se sobressalta recorrem a uma
derradeira arma: o insulto para desmoralizar o denunciante. Esta é a
história da política no Ocidente nas últimas décadas, desde que a esquerda aí
falhou a revolução e resolveu mudar de estratégia. Para isso forjou um
novo catecismo moral onde a natureza de certas expressões foi completamente
adulterada para a patrulha ideológica aos adversários e todos quantos se
atravessem no caminho. O fascismo já não é mais uma ideologia, passou a ser uma
arma de arremesso e sinónimo de opróbrio. Hoje é proibido criticar as
políticas de imigração de braços e portas abertas, porque senão é-se rotulado
de racista e fascista. É proibido apontar a cultura de impunidade a certas
comunidades, porque senão é-se rotulado de ciganofobo e fascista… É
proibido criticar a ideologia de género senão é-se rotulado de misógino,
transfóbico e fascista. É proibido criticar o aborto a pedido porque
senão lá vem a acusação de machista e fascista… É proibido criticar o casamento
e adopção gay senão lá vem o libelo da homofobia e mais uma vez o espantalho do
fascismo. E por aí adiante… Conclusão: o irmão rival do fascismo, o
comunismo, que matou mais, continua a obter o beneplácito de muitos beatos.
Inclusive daqueles que reconhecem os erros das suas aplicações, mas que ainda
consideram que é uma excelente ideia… enquanto as políticas da esquerda
radical, cúmulo da virtude, não se podem criticar sob pena de sermos
cilindrados com os epítetos mais degradantes. Os políticos tradicionais
continuam na sua cegueira a recusar enxergar as razões do protesto e do
mal-estar das populações, mas isto tem de levar uma grande volta. Dia 10
votação massiva para começar a mudar este estado de coisas. Tim do Á: Ana Abrunhosa é uma comunista totalitária caviar de
barriga cheia de dinheiro contra o povo. O marido dela é dono da fábrica de
farinha Branca de Neve. Fora com os comunas caviar! João Floriano: Abandona-se a sala porque durante muito tempo se
pretendeu forçar outros a abandoná-la. Estou a lembrar-me das famosas
linhas vermelhas, do não cumprimento de normas parlamentares como a eleição de
um vice-presidente do parlamento, de declarações tonitruantes tipo: «Por
mim a direita não passará», «temos de acabar com isto!», de várias
pressões para que o TC se pronunciasse pela ilegalidade de quem não se
queria a partilhar o mesmo espaço democrático. Como não resultou,
«abandona-se a sala» como uma excelente estratégia para ocultar a falta de
ideias, de poder argumentativo, o medo de ser confrontado com os seus erros e
ainda aparentemente ficar por cima demonstrando uma grande superioridade moral. Impossível não pensar no abandono mais mediático dos
últimos dias: o da Ana Abrunhosa quando se recusou a escutar o discurso
«xenófobo» (o termo é da senhora Ministra) de António Pinto Pereira. Até hoje
eu e certamente muitos milhares de portugueses não perceberam o que havia de
xenófobo nas palavras de Pinto Pereira. Ana Abrunhosa é perita em abandonar o
debate. Ninguém choraminga melhor do que esta governante que até agora ninguém
percebeu o que acrescentou de bom ao governo demitido de António Costa, a
não ser uma sensibilidade e truque muito feminino e velho desde que o mundo é
mundo: chorar. Nunca falha e ninguém resiste a uma chorona. Mas sejamos
justos: em termos de choraminguice piegas nada suplantou o exemplo das recentes
entrevistas num determinado programa da manhã em que todos os líderes
partidário foram convidados para entrevistas intimistas sobre o seu lado
humano. A entrevistadora pôs toda aquela gente a chorar: desde o Pedro
Nuno ao Ventura, passando por Montenegro que me deu uma enorme vontade de rir,
o Raimundo comunista e Inês Real vestida de noiva. Arrumaram Ana Abrunhosa a um
canto. João
Floriano > Paulo
Silva: O seu
comentário enriquece a crónica da Dra. Patrícia Fernandes. Paulo Silva > Américo
Silva: Não entendeu
ou não quis entender patavina do artigo. Aqui o ‘abandonar a sala’ não é de tão
literal e singela leitura. É metáfora para aquela atitude tão pouco democrática
de querer silenciar o outro e condená-lo à inexistência… Quando oiço falar em
picaretas falantes só me vem à ideia a imagem das esganiçadas ou dos deputados
Rui Tavares e Pedro Delgado Alves. Debitam mais palavras por segundo que um
martelo pneumático… mais parecem metralhadoras falantes. Quanto aos gases, é
verdade. A ‘democracia’, que nunca foi democrática, está tóxica de podre. É
preciso arejar bem a sala com uma lufada de ar fresco ao final do dia 10, já
mal se consegue respirar... Rui
Medeiros > Paulo
Silva: Excelente
comentário! Parabéns José
B Dias: Vivemos cada vez mais entre
aqueles que pensam de modo semelhante ao nosso, replicando as bolhas sociais
criadas pela lógica algorítmica das redes sociais. Desabituamo-nos, nessa
medida, de sermos desafiados por posições diferentes das nossas e somos
tentados a “bloquear pessoas”, excluindo do nosso mundo aqueles que dizem
coisas estranhas. E se não nos conseguirmos proteger absolutamente do que esses
dizem, somos treinados a, rapidamente, “denunciar alguém” para que as
instituições competentes possam impor a nossa visão do mundo. Muitos dos aqui comentadores deviam ler, reler e
reflectir sobre o parágrafo que para maior facilidade transcrevi supra ...
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