domingo, 18 de fevereiro de 2024

Histórias da História

 

Uma excelente crónica de José Carlos Fernandes que nos lembra o que lemos por altura do começo da guerra na Ucrânia, em fevereiro de 2022, e ouvíamos as justificações de Putin. Para relermos devagar, divido esta primeira parte em duas, com agradecimentos ao cronista.

A Rússia e o sonho imperial (parte 1): das origens às vésperas da Revolução de Outubro

Dois anos sobre o início da agressão russa à Ucrânia, quais serão, por trás da cortina de fumo da propaganda, as verdadeiras motivações de Putin para se ter lançado – e persistir – nesta “aventura”?

JOSÉ CARLOS FERNANDES: Texto

OBSERVADOR, 17 fev. 2024, 17:598

 [Nota: este é o primeiro artigo de uma série de cinco]

Ao contrário dos monarcas e senhores da guerra de outras eras, que soíam saquear e devastar territórios, escravizar, deportar e massacrar povos, locupletar-se com riquezas alheias e apropriar-se de feudos e reinos sem dar explicações seja a quem for, os governantes modernos sentem necessidade de justificar os seus arroubos bélicos e expansionistas, ainda que as razões aduzidas costumem ser esfarrapadas, incongruentes e até risíveis. Os próceres de outras eras não tinham de prestar contas a um parlamento democraticamente eleito e, muito menos, de preocupar-se com a “opinião pública”; a única “sensibilidade” a que tinham de atender era a vontade das suas tropas em continuar a marchar e combater. Átila não lançava invasões e razias em função de estudos de opinião sobre a sua popularidade entre os hunos, Alexandre o Grande não auscultou os povos macedónio e grego antes de arremeter contra o Império Persa e Napoleão não precisou de lançar uma campanha de propaganda antes de invadir a Rússia mas até Alexandre se viu forçado a desistir de tentar juntar a Índia à sua impressionante lista de conquistas, por os seus soldados, esgotados por uma caminhada de 35.000 km, pontuada por numerosas batalhas, escaramuças e privações, e roídos pelas saudades de casa, se recusaram a prosseguir para Oriente.

Mesmo pelos padrões do nosso tempo, em que, quer nas democracias quer nas autocracias, todas as intervenções externas são minuciosamente justificadas, o zelo que a Federação Russa tem colocado na legitimação da invasão da Ucrânia é invulgar, até pelo envolvimento directo do chefe de Estado russo nessa operação de mistificação. Entre as peças de retórica que Vladimir Putin produziu sobre este tema, há três particularmente significativas: uma foi o ensaio “Sobre a unidade histórica de russos e ucranianos”, publicado a 12 de Julho de 2021; outra foi o discurso proferido a 21 de Fevereiro de 2022, perante a Assembleia Federal da Rússia e transmitido pelas televisões; esta ominosa alocução teve continuidade, três dias depois, no anúncio do lançamento da “operação militar especial”. Como complemento, é elucidativa a leitura do discurso de 21.06.2023, proferido perante a Assembleia Federal Russa.

Uma agressão virtuosa

As pessoas bem-pensantes e que amam a Paz costumam dar crédito ao argumento de Vladimir Putin que justifica a “operação militar especial” na Ucrânia com a necessidade de “garantir a segurança da Rússia e eliminar o perigo proveniente do regime neo-nazi que tomou conta da Ucrânia após o golpe de Estado de 2014” e que tem promovido “ataques terroristas” contra a população russófona do Donbas, empregando “batalhões nacionalistas treinados nas academias e escolas do Ocidente” e armados pelo Ocidente, como afirmou no seu discurso de 21.06.2023

Membros ucranianos do 115.º Batalhão da Polícia Auxiliar nazi (Schutzmannschaft ou, informalmente, Schuma) exibem uma bandeira com o brasão ucraniano, 1943. Durante a II Guerra Mundial a Alemanha nazi recorreu a voluntários dos grupos étnicos insatisfeitos com a hegemonia russa para formar unidades responsáveis pela manutenção da ordem nos territórios ocupados da URSS

Esta atitude das pessoas bem-pensantes e que amam a Paz é compreensível: o nazismo goza – justificadamente – de péssima reputação e é mesmo visto como sinónimo de Mal Absoluto. Esta aversão ao nazismo leva a que, nos países democráticos, até os partidos no extremo direito do espectro político neguem serem nazistas (com excepção de alguns grupelhos de gente visivelmente transtornada que exibe suásticas, faz saudações de braço esticado, colecciona memorabilia das SS e discute o visionarismo de Mein Kampf nos seus fóruns da Internet). Até o termo “fascista”, que tem conotação menos odiosa do que “nazi”, é cuidadosamente evitado e se acaso um militante de extrema-direita, num momento de arrebatamento ou irreflexão, admite publicamente ser fascista ou perfilhar um ideário fascista, logo se apressa a corrigir o tiro e a alegar que estava a ser irónico. Os partidos de extrema-direita podem ter o aspecto de um pato, nadar como um pato e grasnar como um pato, mas recusam terminantemente serem designados como “patos”.

Assim sendo, quem se oponha à ideia de perseguir nazis, na Ucrânia ou noutro lugar, é automaticamente colocado na mesma gaveta moral dos que aprovam os maus tratos a animais, a pedofilia, a chacina de focas bebés e a eutanásia compulsiva de velhinhos.

Elementos de grupos de extrema-direita ucranianos na Praça Maidan, Kiev, 2014

Outra justificação de Putin para lançar a sua “operação militar especial” que as pessoas bem-pensantes e que amam a Paz também costumam acolher favoravelmente é a de que a NATO – um joguete do imperialismo americano – estaria a cercar a Rússia, atraiçoando compromissos assumidos no início da década de 1990 (ver “Acordos escritos com tinta invisível” em De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado”), e de que a Ucrânia estaria na iminência de aderir a esta aliança militar. Os EUA e a NATO, que já tinham vindo a “instalar as suas bases militares e os seus laboratórios secretos de armas biológicas junto das fronteiras russas”, estariam a preparar “o regime de Kiev, que estava sob o seu controlo, e a Ucrânia, que tinham escravizado, para uma guerra de grande escala” contra a Rússia. Por outras palavras, a Rússia visa “defender vidas humanas e a nossa casa comum, enquanto o Ocidente ambiciona poder ilimitado”. No discurso de 24.02.2022, Putin explicou que a ofensiva do Ocidente contra a Rússia começara imediatamente após a desintegração da URSS: “tentaram dar-nos o golpe de misericórdia, exterminar-nos e destruir-nos completamente. Assim, na década de 1990 e no início do século XXI o Ocidente apoiou activamente o separatismo e os bandos de mercenários na Rússia meridional. São incalculáveis as vítimas, perdas e provações que sofremos nesse período, até conseguirmos quebrar a espinha do terrorismo internacional no Cáucaso!”.

O lobo e o cordeiro

Temos, portanto, três argumentos de pesodesnazificação, travagem de um genocídio, autodefesa perante uma tentativa de estrangulamento por uma coalizão movida por intuitos belicistas e expansionistas – cada um dos quais bastaria, por si só, para legitimar a “operação militar especial” russa, ainda que infringindo, eventualmente, algumas disposições do direito internacional que regulam as relações entre nações soberanas. Mas a Rússia invocou mais três razões, não menos ponderosas, para legitimar a sua actuação:

1) Os protestos de 2013-14 (que ficaram conhecidos como “Euromaidan”) e a subsequente fuga de Viktor Yanukovych, o presidente ucraniano pró-russo eleito em 2010, foram orquestrados pelo Ocidente, com o fito de operar uma mudança de regime e colocar no poder governantes hostis à Rússia.

2) Foram estes (alegadamente ilegítimos) governantes ucranianos pró-ocidentais que faltaram ao estabelecido nos Acordos de Minsk, firmados em 2014-15 e que visavam cessar as hostilidades entre tropas governamentais ucranianas e milícias separatistas nas províncias de Donetsk e Luhansk (que eclodiram na sequência da anexação/libertação da Crimeia pela Rússia, em 2014).

3) Os governantes ucranianos pró-ocidentais têm vindo a suprimir activamente todas as manifestações do legado cultural russo (nomeadamente a língua russa) no Leste da Ucrânia.

No seu afã de justificar a “operação militar especial”, a liderança política e espiritual russa tem, por vezes, recorrido a argumentos que extravasam o domínio do direito internacional e da geopolítica e entram na esfera dos princípios morais: a 23 de Fevereiro de 2022, na véspera da “operação militar especial”, Putin instou os militares ucranianos a “tomarem o poder nas suas mãos” e a derrubarem o “bando de drogados e neo-nazis que tomaram conta de Kiev e têm o povo ucraniano como refém”. A 6 de Março de 2022, Kirill, Patriarca de Moscovo, Primaz da Igreja Ortodoxa Russa e um dos mais sólidos aliados de Putin, descreveu a “operação militar especial” como uma “luta de natureza metafísica” que visa impedir que abominações como as “paradas do Orgulho Gay” cheguem ao território da Santa Mãe Rússia; o padre Elizbar Orlov, de Rostov, enalteceu-a por “estar a limpar o mundo da infecção do demónio”.

O Patriarca Kirill e o Ministro da Defesa russo Sergei Shoigu, Junho de 2020

Esta ginástica retórica faz lembrar a fábula de Esopo, retomada no século XVII por La Fontaine, em que um lobo que bebe de um ribeiro vê um cordeiro que faz o mesmo uns metros a jusante e o acusa de conspurcar a água que ele bebe; quando o cordeiro refuta a acusação, por desafiar as leis da física, o lobo salta para um argumento completamente diferente: do que acusa o cordeiro é de, no ano anterior, o ter vilipendiado. O cordeiro faz-lhe ver que nessa altura ainda nem sequer era nascido, ao que o lobo retorque que o difamador terá, então, sido um seu irmão. E como o cordeiro responda que não tinha irmão algum, o lobo conclui “Então terá sido alguém da tua família” e devora o infeliz. A fábula, cuja moral é sintetizada por La Fontaine na frase “A razão do mais forte é sempre a melhor”, acabaria por dar origem a dois provérbios russos: “O mais forte culpa sempre o mais fraco” e “A tua culpa anda a par da minha fome”.

A fábula do lobo e do cordeiro, gravura por Gustave Doré, 1876

Os melhores amigos dos nazis

Na propaganda russa para justificar a invasão da Ucrânia, pode fazer-se uma distinção entre a que envolve “factos” recentes –a Ucrânia estaria a desenvolver armas biológicas e nucleares, a NATO estaria a planear usar a Ucrânia como plataforma para atacar a Rússia, a Ucrânia seria governada por neo-nazis e drogados e esse Governo estaria a promover o genocídio das populações russófonas do Donbas – e a que envolve “factos” históricos, alguns deles remontando à Idade Média.

No seu discurso de 21.06.2023, Putin sublinhou que qualquer pessoa com conhecimentos de História saberia que o uso da Ucrânia pelo Ocidente como peão contra a Rússia não é uma nova estratégia, uma vez que “na década de 1930, o Ocidente tinha, na prática, aplanado o caminho dos nazis para o poder na Alemanha”. Esta perspectiva não só é desprovida de qualquer fundamento, como os factos históricos atestam o inverso: entre 23 de Agosto de 1939, quando foi assinado o Pacto Molotov-Ribbentrop, e 22 de Junho de 1941, quando a Alemanha desencadeou a Operação Barbarossa, a URSS foi um precioso aliado da primeira (bem mais útil, na prática, do que a Itália de Mussolini), apesar das ideologias antitéticas professadas por Hitler e Stalin, da “guerra-por-interpostas-pessoas” que travaram em Espanha e da intenção repetidamente manifestada por Hitler de aniquilar a URSS e o comunismo.

 “O tributo prussiano a Moscovo”: O Pacto Molotov-Ribbentrop visto pelo jornal satírico polaco Mucha de 8 de Setembro de 1939

Durante este idílio cínico e oportunista, a Alemanha de Hitler e a URSS de Stalin congeminaram e puseram em prática um plano de invasão e anexação de países vizinhos e a URSS providenciou combustíveis e matérias-primas indispensáveis ao funcionamento e reforço da máquina de guerra alemã, tornando inoperantes as sanções com que o Ocidente tentou cercear os ímpetos belicistas germânicos (ver capítulos “Com a ajuda de Lenin e Stalin” e “Não há pior cego do que aquele que não quer ver” em Nazis de turbante e outros 10 episódios menos conhecidos da II Guerra Mundial). É pertinente perguntar se Hitler se teria atrevido a invadir a Polónia se Stalin não lhe tivesse garantido que não só não se oporia como até teria todo o gosto em ajudá-lo.

 “Rendez-vous”: Cartoon de David Low no Evening Standard de 20 de Setembro de 1939. Hitler e Stalin trocam cortesias junto ao cadáver da Polónia: Hitler: “A escumalha da Terra, presumo?”; Stalin: “O assassino sanguinário dos trabalhadores, presumo?”

Stalin estava tão satisfeito com a aliança com Hitler que parecia estar disposto a mantê-la indefinidamente, quiçá na esperança de que este se encarregasse de aniquilar as democracias liberais, uma após a outra (tarefa que Hitler começou a desempenhar com impressionante eficácia). A fé de Stalin em Hitler era tão sólida que nem mesmo a acumulação de provas (algumas delas fornecidas pela Grã-Bretanha) de que a Alemanha estava a preparar um ataque de vasta escala contra a URSS o fez despertar da sua ilusão (ver capítulo “Richard Sorge” em Vai um chá com veneno? Histórias de espiões que acabaram mal).

Os eventos subsequentes a 22 de Junho de 1941, aliados à propaganda soviética, tiveram o condão de fazer perdoar e até esquecer o torpe conúbio Hitler/Stalin e coroar a URSS como campeã do anti-nazismo, galardão que Putin e a sua máquina de propaganda depois transferiram para a herdeira da URSS, a Federação Russa (ver capítulo “A Rússia como mártir e heroína da luta anti-fascista” em De Minsk a Pinsk: Como foram desenhadas a história e a geografia da “Rússia Branca”).

No plano interno, em 1932-33, enquanto os nazis lutavam para ascender ao poder na Alemanha, Stalin prosseguia a consolidação do seu domínio sobre a URSS, implementando medidas no domínio agrícola e fundiário que visavam extinguir de vez as veleidades independentistas da Ucrânia e diluir a sua identidade. A fome generalizada que daí resultou terá causado a morte de 3.5 a 5 milhões de ucranianos e ficou conhecida como Holodomor, termo então cunhado nas publicações das comunidades ucranianas exiladas no Ocidente. Porém, a propaganda soviética conseguiu que o Holodomor fosse ignorado ou visto como uma fantasia disseminada pelo nacionalismo ucraniano, e só a desclassificação de documentos oficiais após a desagregação da URSS revelou a sua crua factualidade (ver Morrer de fome no “celeiro da Europa”: O plano de Stalin para aniquilar a identidade ucraniana).

CONTINUA

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