Uma excelente crónica de José Carlos
Fernandes que nos lembra o que lemos por altura do começo da guerra
na Ucrânia, em fevereiro de 2022, e ouvíamos as justificações de Putin. Para
relermos devagar, divido esta primeira parte em duas, com agradecimentos ao
cronista.
A Rússia e o sonho imperial (parte 1):
das origens às vésperas da Revolução de Outubro
Dois anos sobre o início da agressão
russa à Ucrânia, quais serão, por trás da cortina de fumo da propaganda, as
verdadeiras motivações de Putin para se ter lançado – e persistir – nesta
“aventura”?
JOSÉ CARLOS
FERNANDES: Texto
OBSERVADOR, 17 fev. 2024, 17:598
[Nota: este é o primeiro artigo de uma
série de cinco]
Ao contrário dos monarcas e senhores da guerra de outras eras, que
soíam saquear e devastar territórios, escravizar, deportar e massacrar povos,
locupletar-se com riquezas alheias e apropriar-se de feudos e reinos sem dar
explicações seja a quem for, os governantes modernos sentem necessidade de
justificar os seus arroubos bélicos e expansionistas, ainda que as razões
aduzidas costumem ser esfarrapadas, incongruentes e até risíveis. Os próceres de outras eras não tinham de
prestar contas a um parlamento democraticamente eleito e, muito menos, de
preocupar-se com a “opinião pública”; a única “sensibilidade” a que tinham de
atender era a vontade das suas tropas em continuar a marchar e combater. Átila não lançava invasões e razias em função de
estudos de opinião sobre a sua popularidade entre os hunos, Alexandre o
Grande não auscultou os povos macedónio
e grego antes de arremeter contra o Império Persa e Napoleão não precisou de lançar uma campanha de
propaganda antes de invadir a Rússia – mas até Alexandre se viu forçado a desistir de tentar juntar a Índia
à sua impressionante lista de conquistas, por os seus soldados, esgotados por
uma caminhada de 35.000 km, pontuada por numerosas batalhas, escaramuças e
privações, e roídos pelas saudades de casa, se recusaram a prosseguir para Oriente.
Mesmo pelos padrões do nosso tempo, em
que, quer nas democracias quer nas autocracias, todas as intervenções externas
são minuciosamente justificadas, o zelo que a Federação Russa tem colocado na
legitimação da invasão da Ucrânia é invulgar, até pelo envolvimento directo do
chefe de Estado russo nessa operação de mistificação. Entre as peças de retórica que Vladimir Putin
produziu sobre este tema, há três particularmente significativas: uma foi o
ensaio “Sobre a unidade histórica de russos
e ucranianos”, publicado a 12 de Julho de 2021; outra
foi o
discurso proferido a 21 de Fevereiro de 2022, perante
a Assembleia Federal da Rússia e transmitido pelas televisões; esta ominosa alocução teve continuidade,
três dias depois, no
anúncio do lançamento da “operação militar especial”. Como complemento, é elucidativa a leitura do discurso
de 21.06.2023, proferido perante a Assembleia Federal Russa.
Uma agressão virtuosa
As pessoas bem-pensantes e que amam a
Paz costumam
dar crédito ao argumento de Vladimir Putin que justifica a “operação militar
especial” na Ucrânia com a necessidade de “garantir a segurança da Rússia e
eliminar o perigo proveniente do regime neo-nazi que tomou conta da Ucrânia
após o golpe de Estado de 2014” e que tem promovido “ataques terroristas”
contra a população russófona do Donbas, empregando “batalhões nacionalistas
treinados nas academias e escolas do Ocidente” e armados pelo Ocidente, como
afirmou no seu discurso de 21.06.2023
Membros ucranianos do 115.º Batalhão da Polícia Auxiliar nazi
(Schutzmannschaft ou, informalmente, Schuma) exibem uma bandeira com o brasão
ucraniano, 1943. Durante a II Guerra Mundial a Alemanha nazi recorreu a
voluntários dos grupos étnicos insatisfeitos com a hegemonia russa para formar
unidades responsáveis pela manutenção da ordem nos territórios ocupados da URSS
Esta
atitude das pessoas bem-pensantes e que amam a Paz é compreensível: o nazismo
goza – justificadamente – de péssima reputação e é mesmo visto como sinónimo de
Mal Absoluto. Esta
aversão ao nazismo leva a que, nos países democráticos, até os partidos no
extremo direito do espectro político neguem serem nazistas (com excepção de
alguns grupelhos de gente visivelmente transtornada que exibe suásticas, faz
saudações de braço esticado, colecciona memorabilia das SS e discute o
visionarismo de Mein Kampf nos seus fóruns da Internet). Até o termo
“fascista”, que tem conotação menos odiosa do que “nazi”, é cuidadosamente
evitado e se acaso um militante de extrema-direita, num momento de
arrebatamento ou irreflexão, admite publicamente ser fascista ou perfilhar um
ideário fascista, logo se apressa a corrigir o tiro e a alegar que estava a ser
irónico. Os partidos de extrema-direita podem ter o aspecto de um pato, nadar
como um pato e grasnar como um pato, mas recusam terminantemente serem
designados como “patos”.
Assim sendo, quem se oponha à ideia de perseguir nazis, na Ucrânia
ou noutro lugar, é automaticamente colocado na mesma gaveta moral dos que
aprovam os maus tratos a animais, a pedofilia, a chacina de focas bebés e a
eutanásia compulsiva de velhinhos.
Elementos de grupos de extrema-direita
ucranianos na Praça Maidan, Kiev, 2014
Outra justificação de Putin para
lançar a sua “operação militar especial”
que as pessoas bem-pensantes e que amam a Paz também costumam acolher
favoravelmente é a de que a NATO – um joguete do imperialismo americano –
estaria a cercar a Rússia, atraiçoando compromissos assumidos no início da
década de 1990 (ver “Acordos escritos com tinta invisível” em De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia,
um país que se diz “cercado”),
e de que a Ucrânia estaria na iminência de aderir a esta aliança militar. Os EUA e
a NATO, que já tinham vindo a “instalar as suas bases militares e os seus
laboratórios secretos de armas biológicas junto das fronteiras russas”,
estariam a preparar “o regime de Kiev, que estava sob o seu controlo, e a
Ucrânia, que tinham escravizado, para uma guerra de grande escala” contra a
Rússia. Por outras
palavras, a Rússia visa “defender vidas humanas e a nossa casa comum, enquanto
o Ocidente ambiciona poder ilimitado”. No
discurso de 24.02.2022, Putin explicou que a ofensiva do Ocidente contra a
Rússia começara imediatamente após a desintegração da URSS: “tentaram dar-nos o golpe de
misericórdia, exterminar-nos e destruir-nos completamente. Assim, na década de 1990 e no início do
século XXI o Ocidente apoiou activamente o separatismo e os bandos de
mercenários na Rússia meridional. São incalculáveis as vítimas, perdas e
provações que sofremos nesse período, até conseguirmos quebrar a espinha do
terrorismo internacional no Cáucaso!”.
O lobo e o cordeiro
Temos, portanto, três argumentos de peso – desnazificação, travagem
de um genocídio, autodefesa perante uma tentativa de estrangulamento
por uma coalizão movida por intuitos belicistas e expansionistas – cada um dos quais bastaria, por si só,
para legitimar a “operação militar especial” russa, ainda que infringindo,
eventualmente, algumas disposições do direito internacional que regulam as
relações entre nações soberanas. Mas a Rússia invocou mais três
razões, não menos ponderosas, para legitimar a sua actuação:
1) Os protestos de 2013-14 (que
ficaram conhecidos como “Euromaidan”) e
a subsequente fuga de Viktor Yanukovych, o presidente ucraniano pró-russo
eleito em 2010, foram orquestrados pelo Ocidente, com o fito de operar uma
mudança de regime e colocar no poder governantes hostis à Rússia.
2) Foram estes (alegadamente ilegítimos) governantes ucranianos
pró-ocidentais que faltaram ao estabelecido nos Acordos de Minsk, firmados em
2014-15 e que visavam cessar as hostilidades entre tropas governamentais
ucranianas e milícias separatistas nas províncias de Donetsk e Luhansk (que eclodiram na sequência da anexação/libertação da
Crimeia pela Rússia, em 2014).
3) Os governantes ucranianos pró-ocidentais têm vindo a suprimir
activamente todas as manifestações do legado cultural russo (nomeadamente a
língua russa) no Leste da Ucrânia.
No seu afã de justificar a
“operação militar
especial”, a liderança política e espiritual russa
tem, por vezes, recorrido a argumentos que extravasam o domínio do direito
internacional e da geopolítica e entram na esfera dos princípios morais: a 23 de
Fevereiro de 2022, na véspera da “operação militar especial”, Putin instou os
militares ucranianos a “tomarem o poder nas suas mãos” e a derrubarem o “bando
de drogados e neo-nazis que tomaram conta de Kiev e têm o povo ucraniano como
refém”. A 6 de Março de
2022, Kirill, Patriarca de Moscovo, Primaz
da Igreja Ortodoxa Russa e um dos mais sólidos aliados de Putin,
descreveu a “operação militar especial” como uma “luta de
natureza metafísica” que visa impedir
que abominações como as “paradas do Orgulho Gay” cheguem ao território da Santa
Mãe Rússia; o padre Elizbar Orlov, de
Rostov, enalteceu-a por “estar a
limpar o mundo da infecção do demónio”.
O Patriarca Kirill e o Ministro da Defesa
russo Sergei Shoigu, Junho de 2020
Esta ginástica retórica faz lembrar a fábula de Esopo,
retomada no século XVII por La Fontaine, em que um lobo que bebe de um ribeiro
vê um cordeiro que faz o mesmo uns metros a jusante e o acusa de conspurcar a
água que ele bebe; quando o cordeiro refuta a acusação, por desafiar as leis da
física, o lobo salta para um argumento completamente diferente: do que acusa o
cordeiro é de, no ano anterior, o ter vilipendiado. O cordeiro faz-lhe ver que
nessa altura ainda nem sequer era nascido, ao que o lobo retorque que o
difamador terá, então, sido um seu irmão. E como o cordeiro responda que não
tinha irmão algum, o lobo conclui “Então terá sido alguém da tua família” e
devora o infeliz. A fábula, cuja moral é sintetizada por La Fontaine na frase
“A razão do mais forte é sempre a melhor”, acabaria por dar origem a dois
provérbios russos: “O mais forte culpa sempre o mais fraco” e “A tua culpa anda
a par da minha fome”.
A
fábula do lobo e do cordeiro, gravura por Gustave Doré, 1876
Os melhores amigos dos nazis
Na propaganda russa para justificar a
invasão da Ucrânia, pode fazer-se uma distinção entre a que envolve “factos”
recentes –a Ucrânia estaria a desenvolver armas biológicas e
nucleares, a NATO
estaria a planear usar a Ucrânia como plataforma para atacar a Rússia, a Ucrânia seria governada por neo-nazis e drogados e esse Governo estaria a promover o genocídio das
populações russófonas do Donbas – e a que envolve “factos” históricos, alguns
deles remontando à Idade Média.
No
seu discurso
de 21.06.2023, Putin sublinhou que qualquer pessoa com conhecimentos de
História saberia que o uso da Ucrânia pelo Ocidente como peão contra a Rússia
não é uma nova estratégia, uma vez que “na década de 1930, o Ocidente tinha, na
prática, aplanado o caminho dos nazis para o poder na Alemanha”. Esta
perspectiva não só é desprovida de qualquer fundamento, como os factos
históricos atestam o inverso: entre 23 de Agosto de 1939, quando foi assinado o
Pacto Molotov-Ribbentrop, e 22 de Junho de 1941, quando a Alemanha desencadeou
a Operação Barbarossa, a URSS foi um precioso aliado da primeira (bem mais
útil, na prática, do que a Itália de Mussolini), apesar das ideologias
antitéticas professadas por Hitler e Stalin, da “guerra-por-interpostas-pessoas”
que travaram em Espanha e da intenção repetidamente manifestada por Hitler de
aniquilar a URSS e o comunismo.
“O tributo prussiano a Moscovo”: O Pacto
Molotov-Ribbentrop visto pelo jornal satírico polaco Mucha de 8 de Setembro de
1939
Durante este idílio cínico e
oportunista, a Alemanha de Hitler e a URSS de Stalin congeminaram e puseram em
prática um plano de invasão e anexação de países vizinhos e a URSS providenciou
combustíveis e matérias-primas indispensáveis ao funcionamento e reforço da
máquina de guerra alemã, tornando inoperantes as sanções com que o Ocidente
tentou cercear os ímpetos belicistas germânicos (ver capítulos “Com a ajuda de
Lenin e Stalin” e “Não há pior cego do que aquele que não quer ver” em Nazis
de turbante e outros 10 episódios menos conhecidos da II Guerra Mundial). É
pertinente perguntar se Hitler se teria atrevido a invadir a Polónia se Stalin
não lhe tivesse garantido que não só não se oporia como até teria todo o gosto
em ajudá-lo.
“Rendez-vous”: Cartoon de David Low no Evening
Standard de 20 de Setembro de 1939. Hitler e Stalin trocam cortesias junto ao
cadáver da Polónia: Hitler: “A escumalha da Terra, presumo?”; Stalin: “O
assassino sanguinário dos trabalhadores, presumo?”
Stalin estava tão satisfeito
com a aliança com Hitler que parecia estar disposto a mantê-la indefinidamente,
quiçá na esperança de que este se encarregasse de aniquilar as democracias
liberais, uma após a outra (tarefa que Hitler começou a desempenhar com
impressionante eficácia). A fé de Stalin em Hitler era tão sólida que nem mesmo
a acumulação de provas (algumas delas fornecidas pela Grã-Bretanha) de que a
Alemanha estava a preparar um ataque de vasta escala contra a URSS o fez
despertar da sua ilusão (ver capítulo “Richard Sorge” em Vai
um chá com veneno? Histórias de espiões que acabaram mal).
Os eventos subsequentes a 22 de Junho
de 1941, aliados à propaganda soviética, tiveram o condão de fazer perdoar e
até esquecer o torpe conúbio Hitler/Stalin e coroar a URSS como campeã do
anti-nazismo, galardão que Putin e a sua máquina de propaganda depois
transferiram para a herdeira da URSS, a Federação Russa (ver capítulo “A Rússia
como mártir e heroína da luta anti-fascista” em De
Minsk a Pinsk: Como foram desenhadas a história e a geografia da “Rússia
Branca”).
No
plano interno, em 1932-33, enquanto os nazis lutavam para ascender ao poder na
Alemanha, Stalin prosseguia a consolidação do seu domínio sobre a URSS,
implementando medidas no domínio agrícola e fundiário que visavam extinguir de
vez as veleidades independentistas da Ucrânia e diluir a sua identidade. A fome
generalizada que daí resultou terá causado a morte de 3.5 a 5 milhões de
ucranianos e ficou conhecida como Holodomor, termo então cunhado nas publicações das comunidades
ucranianas exiladas no Ocidente. Porém, a propaganda soviética conseguiu que o
Holodomor fosse ignorado ou visto como uma fantasia disseminada pelo
nacionalismo ucraniano, e só a desclassificação de documentos oficiais após a
desagregação da URSS revelou a sua crua factualidade (ver Morrer
de fome no “celeiro da Europa”: O plano de Stalin para aniquilar a identidade
ucraniana).
CONTINUA
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