Na natureza - e sobretudo a humana, nada se perde, nada se cria, tudo se repete, sobretudo quando as amizades perduram. Era bom que assim fosse, por cá… A crónica de RODRIGO ADÃO DA FONSECA dá-nos uma réstia de esperança sobre o que poderia ser se ...
O beijo do escorpião
“Os homens ofendem mais aos
que amam do que aos que temem”. Maquiavel,
em “O Príncipe”.
RODRIGO ADÃO DA FONSECA Colunista
OBSERVADOR, 06 fev. 2024, 00:16
Depois
de tentar a presidência em duas ocasiões (1965 e 1974), em 1981 François Mitterrand chegou ao Eliseu com a aura de ser o
primeiro presidente socialista eleito no seu país. Mitterrand liderou a
França entre 1981 e 1995. Desde
o seu primeiro mandato que Mitterrand fomentou a ascensão da extrema-direita
francesa, representada à época por Jean-Marie Le Pen e a sua “Front National”
que emergia como força política de protesto, numa opção cujas motivações têm
dado, ao longo do tempo, espaço às maiores especulações e teorias da
conspiração (incluindo
insinuações que Mitterrand teria um passado de colaboracionismo e amizades
profundas com pessoas ligadas ao regime de Vichy, entre os quais, René
Bousquet, uma destaca figura da extrema-direita francesa que terá apoiado
financeiramente as suas campanhas políticas).
Logo em 1982, Mitterrand defendeu existir uma desproporção no
tratamento mediático dispensado a Le Pen e, numa suposta tentativa de corrigir
o que dizia ser uma “injustiça”, instruiu o seu Ministro das Comunicações a
contestar junto dos chefes das emissoras de rádio e televisão o tempo de antena
concedido ao líder da FN. Esta acção foi interpretada por alguns, como o
jornalista Franz-Olivier Giesbert, como tendo
sido uma manobra calculista e maquiavélica para desestabilizar a direita
francesa, dando a Le Pen e ao seu partido uma plataforma de afirmação mais
ampla e, consequentemente, mais influência (importa
recordar que nos anos 80 não havia redes sociais, sendo muito mais difícil a
afirmação de populismos sem apoio mediático convencional).
Famoso por gostar de manobrar
a política nos bastidores, no curto prazo Mitterrand pensou manipular o sistema
a seu favor. Logo em 1985, após uma derrota esmagadora nas eleições cantonais,
o governo de Mitterrand decidiu alterar o método de votação para o tornar mais
proporcional. Esta mudança, interpretada por Giesbert e outros como uma táctica
contra a direita parlamentar, teve como resultado o aumento do número de
assentos na Assembleia de 491 para 577, algo que ajudou o Partido Socialista de
Mitterrand a manter a maioria. A manobra, porém, teve um resultado inesperado,
já que nas eleições subsequentes, de 1986, a FN garantiu 35 lugares, enquanto uma coligação de partidos de direita
obteve uma maioria absoluta por uma margem estreita.
Para alguns, Mitterrand não terá tido
um intuito manipulatório consciente na promoção da extrema-direita. O que, à distância, parece evidente, é
que embora a intenção de Mitterrand fosse aparentemente fragmentar e
enfraquecer os seus opositores políticos à direita, a sua estratégia (que até
resultou para si, que sobreviveu bem até 1995), acabou por legitimar e
fortalecer a extrema-direita, alterando irrevogavelmente o tecido político
francês. A ascensão do FN, nos anos 90 e sobretudo com a
entrada em cena de Marine Le Pen, não obstante causar dificuldades para os
partidos de direita tradicionais, esvaziou principalmente os partidos de
esquerda.
Em
Portugal, as manobras de curto prazo do PS e de António Costa, de promoção do
Chega, estão a dificultar de sobremaneira a afirmação das lideranças de partidos
como o PSD e o CDS, mas com a normalização do discurso do partido de Ventura e
o sucesso da sua receita populista, começa a ter-se uma sensação,
literalmente de “déjà-vu”, com repercussões que se antecipam
profundas e duradouras (basta pensar no esgotamento que o voto jovem exibe em
relação aos partidos tradicionais).
A alternância do equilíbrio do poder
em Portugal e a natureza do discurso político no nosso país parece estar a erodir, particularmente, os
partidos de esquerda, muito a reboque do esgotamento da sua agenda que não
apresenta quaisquer respostas para os problemas estruturais de um país
envelhecido e monolítico, algo que poderá ser ratificado nas próximas eleições
legislativas. Para
já, as eleições nos Açores mostraram que o crescimento
do Chega não tem de impedir o crescimento da AD e da IL, havendo também
sinais de que, no Continente, a tendência poderá ser, até, mais acentuada, de maioria
dos partidos de direita, sem o Chega. França e Mitterrand escreveram as
páginas de um livro que se está agora a estrear em Portugal, quase quarenta
anos depois, mas que foi já lido em vários países europeus, com resultados
distintos: se
em França, o esvaziamento da esquerda e do socialismo permitiu à direita
governar e afastar a FN do Poder – até ver –, em Itália, na Holanda, ou na
Áustria o eleitorado mudou o eixo da governação para o pêndulo nacionalista.
Veremos que página vai ser escrita em Portugal.
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