Variedade de temas, conjuntamente com a
expressão de um mundo mais ou menos do foro íntimo, que se dispersa em
trejeitos e formas de o revelar, numa conceptualidade eivada de saber
psicológico ou puramente de consistência crítica, quando não de uma expressão
temática literária que enquadra o Homem num universo de saberes – de sabores,
conjuntamente obtidos, no arrastar dos tempos, e traduzidos em diferentes
formas de expressão e criatividade - a literatura, de tão vasta implantação e
tão formalmente diversa, não tem que excluir, julgo, as tendências políticas
dos seus praticantes, que farão delas o alarde mais ou menos impositivo, mais
ou menos discreto do seu saber “fazer”, ainda que seja mais ou menos eficaz nos
seus ditames, desde que visualmente – formalmente – e funcionalmente - tenha conseguido
traduzir o universo artístico e intelectual como se propôs. O tempo se
encarregará de o confirmar ou definitivamente ignorar. E todas essas doutrinas me parecem puras
modas passageiras, do jogo pedante ocasional dos eruditos, que nunca
desmantelarão do universo letrado aqueles nomes que deixaram o seu rasto
luminoso de perenidade clássica nos seus países e no mundo inteiro.
A politização da literatura
Politizar a literatura destrói o que
ela tem de trabalho individual, excepcionalidade artística, qualidade criativa.
Mais do que isso destrói a sua essência, que não é do domínio do verdadeiro ou
falso.
PATRÍCIA FERNANDES
OBSERVADOR, 12
fev. 2024, 00:208
1A literatura e o autor
O livro satírico de David Lodge sobre o
mundo académico, O mundo é
pequeno, confronta-nos com uma das questões mais difíceis da filosofia:
– Qual foi o tema da palestra hoje de
manhã? – perguntou Angelica.
– Devia ser a métrica de Chaucer, mas o
debate foi quase todo sobre o estruturalismo.
Angelica pareceu ficar aborrecida.
– Oh, que pena tê-la perdido!
Interesso-me muito pelo estruturalismo.
– De que se trata exactamente? Angelica
riu-se.
– Não, estou a falar a sério! – insistiu
Persse. – O que é o estruturalismo? É uma coisa boa ou má?
Uma boa explicação sobre estruturalismo deve começar, naturalmente,
pelo cartoon de Maurice Henry com a tribo estruturalista: Michel
Foucault, Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan e Roland Barthes encontram-se em amena cavaqueira, talvez
decidindo como desconstruir mais um dogma da filosofia do sujeito (Jacques Derrida
estaria sentado muito perto). Foi, provavelmente, o
último suspiro da filosofia francesa, servido depois como pós-estruturalismo e
degustado pela academia norte-americana, que o transformou em escola do
ressentimento.
Embora se apresente como método a ser
aplicado em diferentes áreas, o estruturalismo foi particularmente importante na
teoria literária, na medida em que, ao destacar a existência de estruturas sociais, culturais, psicológicas (Lévi-Strauss,
Lacan), em particular linguísticas
(a partir de Saussure), condena o
autor à morte (Barthes) e recusa que a literatura seja obra
de uma pessoa, individual, excepcional, única: é
a língua que fala em nós e nos obriga a falar de determinada forma. E o
pós-estruturalismo (um
segundo Barthes, Derrida) afirmar-se-á,
sobretudo, como análise literária, abrindo o texto à pluralidade de leituras e
à possibilidade da sua contínua desconstrução.
Se
a dúvida expressa por David Lodge
se mantém, a culpa não é minha. São necessárias muitas aulas para
definir estruturalismo, o mesmo número para o distinguir do pós-estruturalismo
e, no final, as dúvidas quase sempre se mantêm. Certo é que
estruturalismo e pós-estruturalismo recusam a ideia de autor como figura de
referência: é a crítica que
constrói a individualidade, a criatividade, a excepcionalidade a partir de um
texto que vive para lá da sua autoria. A literatura desaparece; fica o crítico
literário.
É em reação a este quadro teórico que
Michel Houellebecq escreve: na
primeira pessoa e com uma força linguística tal que o narrador se impõe como
sujeito real – levando a que tantos confundam autor com personagem e se
entretenham a discutir a sua misoginia e xenofobia, enquanto lhes escapa o
modo como o escritor francês faz uso da linguagem para expressar o seu
desconforto com a vida material e vazia de sentido dos nossos dias.
É igualmente provável que tenha sido
contra aquele quadro teórico que, na literatura francesa, se foi afirmando uma
corrente de ficção autobiográfica, de que Annie Ernaux é o melhor exemplo. Presumimos que as suas histórias
aconteceram porque se apresentam como biográficas, mas sabemo-nos, ao mesmo
tempo, perante o complexo acto de construção da memória pessoal, que nunca é
linear, nunca é indisputável, nunca é verdadeiro. Sabemos que as suas memórias são ficcionalmente elaboradas por forma
a obter um texto esteticamente belo e, por isso, admiramos a técnica com que
ela nos engana.
2A politização da literatura
Em 1999, a escritora e crítica literária Francine Prose publicou
um ensaio contundente na Harper’s Magazine. Partindo da lista de obras literárias
que constavam dos currículos dos jovens norte-americanos, Prose
condenava a opção pela diversidade em detrimento da excelência: as obras eram quase sempre escolhidas em
função da identidade dos autores (negros, gays, mulheres) e eram cada vez menos
exigentes por forma a
agradar aos jovens estudantes. Para Prose, a preferência para que essas
obras se
relacionem com a vida dos jovens é particularmente vil: o melhor da literatura encontra-se no modo
como nos provoca com o que é diferente, ambíguo, complexo.
Estes critérios, nota Prose,
sobrepõem-se àquele outro que parece estar hoje fora de moda: serem
livros bem escritos. Como
se “a beleza estética – a linguagem adequada ou precisa, imagens, ritmo,
inteligência, a satisfação de reconhecer algo na ficção que parece novo e
verdadeiro – se tivesse tornado demasiado fútil, suspeita e elitista para ser
mencionada.” O resultado deste tipo de educação literária tem sido,
segundo Prose, afastar os jovens do prazer da literatura e da capacidade de
reconhecer o ADN específico de cada autor quando decide empregar cada palavra,
e com isso criar gerações de adultos que se tornam incapazes de ler obras que
expandem o seu vocabulário e desafiam o seu entendimento do mundo.
Um dos livros escolhidos por Prose para exemplificar estas censuráveis
escolhas literárias é o primeiro volume da autobiografia da poetisa e activista
política Maya Angelou, Sei porque Canta o Pássaro na Gaiola, publicado entre nós pela Antígona.
Um livro mal escrito, que deve a sua popularidade ao facto de cumprir um
objectivo político: são as memórias de uma sobrevivente, “uma poética viagem de
libertação e um glorioso bater de asas num mundo opressivo”, como diz a
editora portuguesa.
No posfácio, Diana V. Almeida chama a atenção para o aspecto
distintivo deste tipo de prosa: apesar de se tratar de um livro de memórias, “a primeira pessoa do singular de novo
representa o colectivo afro-americano, incluindo os antepassados escravos”.
Na lógica identitária, é um eu que se expressa em nome de um grupo e, por isso, aquelas memórias reivindicam
transcender a esfera individual para se afirmarem no espaço público: não é uma
viagem de libertação individual, mas a poética de um grupo ou colectivo sujeito
às mesmas estruturas opressivas. E é assim que este tipo de
literatura assume um “sentido de responsabilidade política”,
nomeadamente como “instrumento emancipatório”, diz Diana V. Almeida.
O problema é que a valorização
destes aspectos transforma a natureza da obra literária: politizar a literatura
destrói o que ela tem de trabalho individual, excepcionalidade artística,
qualidade criativa. Mas mais do que isso, destrói a sua essência, quase
mágica, que consiste em não ser o domínio do verdadeiro e do falso. A esfera
política rege-se por um critério de veracidade, mas a literatura é o domínio
onde verdadeiro e falso podem coexistir, sobrepondo-se ou desaparecendo, por
não serem relevantes. A
literatura é o domínio da ficção e se a transformarmos num discurso de verdade,
destruímos a sua essência. E, por isso, a politização da literatura deixa-nos
perante o dilema da própria humanidade: se destruirmos o autor, ficamos sem
literatura; se destruirmos a ficção, ficamos sem humanidade.
PS: Se a politização da literatura
pode destruir a literatura, espera-se que a filosofia a alimente, pelo menos
tanto como a literatura alimenta a filosofia. É para prestar homenagem a essa
relação constante, de fronteiras muitas vezes diluídas, que o Centro de
Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da UL e o Centro de Filosofia da
UL organizam o ciclo de conferências “Passagens: Literatura e Filosofia”. Na próxima sessão, estarei com o escritor
João Pedro Vala a falar sobre “Falhas”, um tema tão filosófico.
COMENTÁRIOS:
klaus muller: Caramba! Eu que pertenço às ciências duras,
espantosamente, gostei deste artigo. E li-o
até ao fim, o que, neste género de textos nunca me acontece pois, ao fim de uma
dúzia de linhas, já estou farto e sem perceber do que se está tratando. Pedro Ramires: É possível despolitizar o que quer que seja?! Não é a
política que dá sentido à comunidade e à partilha? Esta ideia peregrina mas
mainstream de diabolical a política deve ser combatida não incentivada. Mas,o que é que não se politiza? Liberales Semper
Erexitque > bento guerra: É o totalitarismo que
politiza tudo. Ainda não estamos lá... O meu caro não está a contribuir para o
evitar, votando no "tal partido"! Tim do Á: É verdade. Toda a literatura está a ser politizada
pelos liberais globalistas com a ajuda dos idiotas úteis da esquerda. Não só a
literatura, mas também o cinema, concertos e, de uma ma geral, todas as artes e
comunicação social. Até os livros de ciência estão politizados. Vivemos uma
nova era das trevas tirânica, perante a apatia das populações ocidentais
alienadas.
Américo Silva: Falemos de
politização de literatura jornalística: - Trump não defenderá aliados que não contribuam -
ajuda à Ucrânia, a Israel e a Taiwan. - invasão da Ucrânia e da faixa de Gaza. - morte de civis ucranianos e palestinos. - ambiguidade na condenação do Hamas subvenções suprimidas. João Floriano: Não sei bem se desta vez concordo com a Dra. Patrícia
Fernandes. Pelo menos havia aqui grandes motivos para discussão. Apanhei com o
estruturalismo como corrente filosófica e linguística logo que entrei para a
faculdade de Letras em 1969. O professor Lindley Cintra não tinha culpa nenhuma
de eu achar o assunto detestável e intragável. A politização da literatura é
igualmente controversa. Tomemos o exemplo nacional. O PCP, partido pelo qual
não nutro a mínima simpatia o que torna desde logo a minha opinião
insuspeita, teve escritores belissimos como militantes ou simpatizantes que
demonstraram claramente a sua tendência política. Estou a
lembrar-me de Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Alves Redol, Virgílio
Ferreira, que se lêem com muito prazer e são fantásticos escritores muito para
além do partidarismo. Não falo de Saramago porque para além de não apreciar
particularmente o estilo de escrita, o nosso Prémio Nobel nunca se distinguiu
pela simpatia. Finalmente «toca-se» na minha Maya Angelou, uma das minhas
escritoras favoritas sobretudo a nível do conto. Por vezes considerado injustamente
um estilo literário inferior quando comparado com o romance, a novela, o conto
obriga a um esforço de concentração e selecção dos melhores recursos para
contar nalguns parágrafos o que no romance se conta em muitas páginas. A Ida ao
Dentista é um obra-prima do conto, simultaneamente tão simples e tão
rico. Um exemplo em que a literatura é muito maior do que a politização. E isto
leva-nos a outra questão: devemos «queimar» as obras de escritores
fascistas e proibir a sua leitura como em tempos se proibia a leitura do Crime
do padre Amaro? E daqui a uns anos quando a corrente woke tiver passado e o bom
senso volte novamente a impor-se devemos esconder no fundo do baú as obras
produzidas? Em ambos os casos eu responderia NÃO. Francisco Almeida > João Floriano: Obrigado por abrir alternativas à dra. Patrícia
Fernandes. Foi-me útil exactamente porque a minha relação com a literatura é
mesmo paupérrima. Li
"Esteiros" e "Avieiros". Detestei ambos que achei
"chatos" q.b. e, por favor não me diga que têm de ser lidos assim e
assado. Eu li toneladas precocemente e, talvez por isso, nunca perdi muito
tempo a analisar. Para mim existiam dois valores básicos: gostava ou não e
marcaram-me ou não. Tentei
relembrar os livros que mais me marcaram e logo me ocorreram dois: a trilogia
"Fundação e Império" de Asimov e a "Refutação da Filosofia
Triunfante" de Orlando Vitorino. E
claro que apreciava livros bem escritos. É o caso de Eça, que releio sempre com
gosto mas que, com as excepções de "As Cidades e as Serras " e
"A Ilustre Casa de Ramires" acho os seus enredos género telenovela
rasca. E (se está em pé, sente-se) como exemplo de escrita clara, precisa e
escorreita, os "Discursos e Notas Políticas" de Salazar. João Floriano > Francisco Almeida: Boa tarde Francisco. Eu descobri os livros muito cedo
e lia tudo o que me vinha parar à mão. Li Steinbeck, Hemingway, Proust, Camus,
Dostoievski muito precocemente, mas nem por isso deixei de os perceber. Como já
uma vez aqui contei, havia em Almada uma biblioteca de uma associação de
recreio a Incrível Almadense que era o meu paraíso. A companhia de teatro
de Campolide também começou a ter notoriedade nos festivais de teatro que a
Incrível Almadense organizava todos os anos. Também gosto muito da Cidade e as
Serras e da Ilustre Casa de Ramires. Não partilho a sua opinião sobre
telenovelas rascas, mas achei graça. Quanto à minha possível admiração por
gostar da escrita de Salazar, não fico admirado por se tratar de Salazar. Vai
ao encontro do que eu escrevi: por ser um livro de Salazar vamos «queimá-lo na
fogueira woke do cancelamento»? Claro que não. Admirou-me porque eu nunca
percebi muito bem os discursos de Salazar. O primeiro que eu me lembro
perfeitamente como se fosse hoje foi quando o Santa Maria voltou após o
sequestro em 1961 tinha eu ainda 8 anos. Depois no final desse ano falou ao
país sobre a saída da índia. Houve também comunicações sobre a guerra colonial
em Angola. Verdade que eu era bem jovem mas sempre tive excelentes
competências a nível da comunicação, superdotado mesmo sem qualquer
vaidade e não percebia o que Salazar estava a dizer. Mas eu também não li
a obra que menciona.
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