terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

“Eppur si muove”

 

Variedade de temas, conjuntamente com a expressão de um mundo mais ou menos do foro íntimo, que se dispersa em trejeitos e formas de o revelar, numa conceptualidade eivada de saber psicológico ou puramente de consistência crítica, quando não de uma expressão temática literária que enquadra o Homem num universo de saberes – de sabores, conjuntamente obtidos, no arrastar dos tempos, e traduzidos em diferentes formas de expressão e criatividade - a literatura, de tão vasta implantação e tão formalmente diversa, não tem que excluir, julgo, as tendências políticas dos seus praticantes, que farão delas o alarde mais ou menos impositivo, mais ou menos discreto do seu saber “fazer”, ainda que seja mais ou menos eficaz nos seus ditames, desde que visualmente – formalmente – e funcionalmente - tenha conseguido traduzir o universo artístico e intelectual como se propôs. O tempo se encarregará de o confirmar ou definitivamente ignorar.  E todas essas doutrinas me parecem puras modas passageiras, do jogo pedante ocasional dos eruditos, que nunca desmantelarão do universo letrado aqueles nomes que deixaram o seu rasto luminoso de perenidade clássica nos seus países e no mundo inteiro.

A politização da literatura

Politizar a literatura destrói o que ela tem de trabalho individual, excepcionalidade artística, qualidade criativa. Mais do que isso destrói a sua essência, que não é do domínio do verdadeiro ou falso.

PATRÍCIA FERNANDES

OBSERVADOR, 12 fev. 2024, 00:208

1A literatura e o autor

O livro satírico de David Lodge sobre o mundo académico, O mundo é pequeno, confronta-nos com uma das questões mais difíceis da filosofia:

– Qual foi o tema da palestra hoje de manhã? – perguntou Angelica.

– Devia ser a métrica de Chaucer, mas o debate foi quase todo sobre o estruturalismo.
Angelica pareceu ficar aborrecida.

– Oh, que pena tê-la perdido! Interesso-me muito pelo estruturalismo.

– De que se trata exactamente? Angelica riu-se.

– Não, estou a falar a sério! – insistiu Persse. – O que é o estruturalismo? É uma coisa boa ou má?

Uma boa explicação sobre estruturalismo deve começar, naturalmente, pelo cartoon de Maurice Henry com a tribo estruturalista: Michel Foucault, Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan e Roland Barthes encontram-se em amena cavaqueira, talvez decidindo como desconstruir mais um dogma da filosofia do sujeito (Jacques Derrida estaria sentado muito perto). Foi, provavelmente, o último suspiro da filosofia francesa, servido depois como pós-estruturalismo e degustado pela academia norte-americana, que o transformou em escola do ressentimento.

Embora se apresente como método a ser aplicado em diferentes áreas, o estruturalismo foi particularmente importante na teoria literária, na medida em que, ao destacar a existência de estruturas sociais, culturais, psicológicas (Lévi-Strauss, Lacan), em particular linguísticas (a partir de Saussure), condena o autor à morte (Barthes) e recusa que a literatura seja obra de uma pessoa, individual, excepcional, única: é a língua que fala em nós e nos obriga a falar de determinada forma. E o pós-estruturalismo (um segundo Barthes, Derrida) afirmar-se-á, sobretudo, como análise literária, abrindo o texto à pluralidade de leituras e à possibilidade da sua contínua desconstrução.

Se a dúvida expressa por David Lodge se mantém, a culpa não é minha. São necessárias muitas aulas para definir estruturalismo, o mesmo número para o distinguir do pós-estruturalismo e, no final, as dúvidas quase sempre se mantêm. Certo é que estruturalismo e pós-estruturalismo recusam a ideia de autor como figura de referência: é a crítica que constrói a individualidade, a criatividade, a excepcionalidade a partir de um texto que vive para lá da sua autoria. A literatura desaparece; fica o crítico literário.

É em reação a este quadro teórico que Michel Houellebecq escreve: na primeira pessoa e com uma força linguística tal que o narrador se impõe como sujeito real – levando a que tantos confundam autor com personagem e se entretenham a discutir a sua misoginia e xenofobia, enquanto lhes escapa o modo como o escritor francês faz uso da linguagem para expressar o seu desconforto com a vida material e vazia de sentido dos nossos dias.

É igualmente provável que tenha sido contra aquele quadro teórico que, na literatura francesa, se foi afirmando uma corrente de ficção autobiográfica, de que Annie Ernaux é o melhor exemplo. Presumimos que as suas histórias aconteceram porque se apresentam como biográficas, mas sabemo-nos, ao mesmo tempo, perante o complexo acto de construção da memória pessoal, que nunca é linear, nunca é indisputável, nunca é verdadeiro. Sabemos que as suas memórias são ficcionalmente elaboradas por forma a obter um texto esteticamente belo e, por isso, admiramos a técnica com que ela nos engana.

2A politização da literatura

Em 1999, a escritora e crítica literária Francine Prose publicou um ensaio contundente na Harper’s Magazine. Partindo da lista de obras literárias que constavam dos currículos dos jovens norte-americanos, Prose condenava a opção pela diversidade em detrimento da excelência: as obras eram quase sempre escolhidas em função da identidade dos autores (negros, gays, mulheres) e eram cada vez menos exigentes por forma a agradar aos jovens estudantes. Para Prose, a preferência para que essas obras se relacionem com a vida dos jovens é particularmente vil: o melhor da literatura encontra-se no modo como nos provoca com o que é diferente, ambíguo, complexo.

Estes critérios, nota Prose, sobrepõem-se àquele outro que parece estar hoje fora de modaserem livros bem escritos. Como se “a beleza estética – a linguagem adequada ou precisa, imagens, ritmo, inteligência, a satisfação de reconhecer algo na ficção que parece novo e verdadeiro – se tivesse tornado demasiado fútil, suspeita e elitista para ser mencionada.” O resultado deste tipo de educação literária tem sido, segundo Prose, afastar os jovens do prazer da literatura e da capacidade de reconhecer o ADN específico de cada autor quando decide empregar cada palavra, e com isso criar gerações de adultos que se tornam incapazes de ler obras que expandem o seu vocabulário e desafiam o seu entendimento do mundo.

Um dos livros escolhidos por Prose para exemplificar estas censuráveis escolhas literárias é o primeiro volume da autobiografia da poetisa e activista política Maya AngelouSei porque Canta o Pássaro na Gaiola, publicado entre nós pela Antígona. Um livro mal escrito, que deve a sua popularidade ao facto de cumprir um objectivo político: são as memórias de uma sobrevivente, “uma poética viagem de libertação e um glorioso bater de asas num mundo opressivo”, como diz a editora portuguesa.

No posfácio, Diana V. Almeida chama a atenção para o aspecto distintivo deste tipo de prosa: apesar de se tratar de um livro de memórias, “a primeira pessoa do singular de novo representa o colectivo afro-americano, incluindo os antepassados escravos”. Na lógica identitária, é um eu que se expressa em nome de um grupo e, por isso, aquelas memórias reivindicam transcender a esfera individual para se afirmarem no espaço público: não é uma viagem de libertação individual, mas a poética de um grupo ou colectivo sujeito às mesmas estruturas opressivas. E é assim que este tipo de literatura assume um “sentido de responsabilidade política”, nomeadamente como “instrumento emancipatório”, diz Diana V. Almeida.

O problema é que a valorização destes aspectos transforma a natureza da obra literária: politizar a literatura destrói o que ela tem de trabalho individual, excepcionalidade artística, qualidade criativa. Mas mais do que isso, destrói a sua essência, quase mágica, que consiste em não ser o domínio do verdadeiro e do falso. A esfera política rege-se por um critério de veracidade, mas a literatura é o domínio onde verdadeiro e falso podem coexistir, sobrepondo-se ou desaparecendo, por não serem relevantes. A literatura é o domínio da ficção e se a transformarmos num discurso de verdade, destruímos a sua essência. E, por isso, a politização da literatura deixa-nos perante o dilema da própria humanidade: se destruirmos o autor, ficamos sem literatura; se destruirmos a ficção, ficamos sem humanidade.

PS: Se a politização da literatura pode destruir a literatura, espera-se que a filosofia a alimente, pelo menos tanto como a literatura alimenta a filosofia. É para prestar homenagem a essa relação constante, de fronteiras muitas vezes diluídas, que o Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da UL e o Centro de Filosofia da UL organizam o ciclo de conferências “Passagens: Literatura e Filosofia”. Na próxima sessão, estarei com o escritor João Pedro Vala a falar sobre “Falhas”, um tema tão filosófico.

LITERATURA     CULTURA     FILOSOFIA

COMENTÁRIOS:

klaus muller: Caramba! Eu que pertenço às ciências duras, espantosamente, gostei deste artigo. E li-o até ao fim, o que, neste género de textos nunca me acontece pois, ao fim de uma dúzia de linhas, já estou farto e sem perceber do que se está tratando.                   Pedro Ramires: É possível despolitizar o que quer que seja?! Não é a política que dá sentido à comunidade e à partilha? Esta ideia peregrina mas mainstream de diabolical a política deve ser combatida não incentivada. Mas,o que é que não se politiza?                      Liberales Semper Erexitque > bento guerra: É o totalitarismo que politiza tudo. Ainda não estamos lá... O meu caro não está a contribuir para o evitar, votando no "tal partido"!                     Tim do Á: É verdade. Toda a literatura está a ser politizada pelos liberais globalistas com a ajuda dos idiotas úteis da esquerda. Não só a literatura, mas também o cinema, concertos e, de uma ma geral, todas as artes e comunicação social. Até os livros de ciência estão politizados. Vivemos uma nova era das trevas tirânica, perante a apatia das populações ocidentais alienadas.                    Américo Silva: Falemos de politização de literatura jornalística: - Trump não defenderá aliados que não contribuam - ajuda à Ucrânia, a Israel e a Taiwan. - invasão da Ucrânia e da faixa de Gaza. - morte de civis ucranianos e palestinos. - ambiguidade na condenação do Hamas subvenções suprimidas.                João Floriano: Não sei bem se desta vez concordo com a Dra. Patrícia Fernandes. Pelo menos havia aqui grandes motivos para discussão. Apanhei com o estruturalismo como corrente filosófica e linguística logo que entrei para a faculdade de Letras em 1969. O professor Lindley Cintra não tinha culpa nenhuma de eu achar o assunto detestável e intragável. A politização da literatura é igualmente controversa. Tomemos o exemplo nacional. O PCP, partido pelo qual não nutro  a mínima simpatia o que torna desde logo a minha opinião insuspeita, teve escritores belissimos como militantes ou simpatizantes que demonstraram claramente  a sua tendência política. Estou  a lembrar-me de Soeiro Pereira Gomes, Manuel da Fonseca, Alves Redol, Virgílio Ferreira, que se lêem com muito prazer e são fantásticos escritores muito para além do partidarismo. Não falo de Saramago porque para além de não apreciar particularmente o estilo de escrita, o nosso Prémio Nobel nunca se distinguiu pela simpatia. Finalmente «toca-se» na minha Maya Angelou, uma das minhas escritoras favoritas sobretudo a nível do conto. Por vezes considerado injustamente um estilo literário inferior quando comparado com o romance, a novela, o conto obriga a um esforço de concentração e selecção dos melhores recursos para contar nalguns parágrafos o que no romance se conta em muitas páginas. A Ida ao Dentista  é um obra-prima do conto, simultaneamente tão simples e tão rico. Um exemplo em que a literatura é muito maior do que a politização. E isto leva-nos  a outra questão: devemos «queimar» as obras de escritores fascistas e proibir a sua leitura como em tempos se proibia a leitura do Crime do padre Amaro? E daqui a uns anos quando a corrente woke tiver passado e o bom senso volte novamente a impor-se devemos esconder no fundo do baú as obras produzidas? Em ambos os casos eu responderia NÃO.                  Francisco Almeida > João Floriano: Obrigado por abrir alternativas à dra. Patrícia Fernandes. Foi-me útil exactamente porque a minha relação com a literatura é mesmo paupérrima. Li "Esteiros" e "Avieiros". Detestei ambos que achei "chatos" q.b. e, por favor não me diga que têm de ser lidos assim e assado. Eu li toneladas precocemente e, talvez por isso, nunca perdi muito tempo a analisar. Para mim existiam dois valores básicos: gostava ou não e marcaram-me ou não. Tentei relembrar os livros que mais me marcaram e logo me ocorreram dois: a trilogia "Fundação e Império" de Asimov e a "Refutação da Filosofia Triunfante" de Orlando Vitorino. E claro que apreciava livros bem escritos. É o caso de Eça, que releio sempre com gosto mas que, com as excepções de "As Cidades e as Serras " e "A Ilustre Casa de Ramires" acho os seus enredos género telenovela rasca. E (se está em pé, sente-se) como exemplo de escrita clara, precisa e escorreita, os "Discursos e Notas Políticas" de Salazar.               João Floriano > Francisco Almeida: Boa tarde Francisco. Eu descobri os livros muito cedo e lia tudo o que me vinha parar à mão. Li Steinbeck, Hemingway, Proust, Camus, Dostoievski muito precocemente, mas nem por isso deixei de os perceber. Como já uma vez aqui contei, havia em Almada uma biblioteca de uma associação de recreio a Incrível Almadense que  era o meu paraíso. A companhia de teatro de Campolide também começou a ter notoriedade nos festivais de teatro que a Incrível Almadense organizava todos os anos. Também gosto muito da Cidade e as Serras e da Ilustre Casa de Ramires. Não partilho a sua opinião sobre telenovelas rascas, mas achei graça. Quanto à minha possível admiração por gostar da escrita de Salazar, não fico admirado por se tratar de Salazar. Vai ao encontro do que eu escrevi: por ser um livro de Salazar vamos «queimá-lo na fogueira woke do cancelamento»? Claro que não. Admirou-me porque eu nunca percebi muito bem os discursos de Salazar. O primeiro que eu me lembro perfeitamente como se fosse hoje foi quando o Santa Maria voltou após o sequestro em 1961 tinha eu ainda 8 anos. Depois no final desse ano falou ao país sobre a saída da índia. Houve também comunicações sobre a guerra colonial em Angola. Verdade que eu era bem jovem mas sempre tive excelentes competências  a nível da comunicação, superdotado mesmo sem qualquer vaidade e não percebia o que Salazar estava a dizer. Mas eu também não li  a obra que menciona. 

 

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