Ou apenas provocação do francês contra o
alemão? Mas também pode ser consciência e sentido de justiça…? Ou providência
cautelosa? Acabrunhamento, em face do ruir previsível da civilização ocidental?
Tropas da NATO na Ucrânia. O que levou
Macron a sugerir uma ideia que depois todos negaram?
Chefe de Estado francês
levantou hipótese de países europeus enviarem soldados para a Ucrânia, mas
nenhum líder o acompanhou. Afirmação tem mais foco em Berlim do que em Moscovo.
OBSERVADOR, 27
fev. 2024, 20:106
A reunião foi arranjada em tempo
recorde. Uma semana depois do Fórum Internacional de Segurança, em Munique, o Presidente francês Emmanuel Macron
recebeu esta segunda-feira 20 chefes de Estado e de governo no Palácio do
Eliseu para falar sobre o apoio à Ucrânia. Seis horas depois,
surgiu no palanque para a conferência de imprensa sozinho, no final, e fez uma
declaração polémica: “Não há um
consenso actualmente para enviar oficialmente tropas [para a Ucrânia]”, disse.
“Mas nada está excluído.”
▲ O encontro de
segunda-feira no Eliseu reuniu 21 líderes de governo e de Estado POOL/AFP
VIA GETTY IMAGES
Índice
Ideia rejeitada do norte ao sul e do leste ao oeste da
Europa. “Um convite à III Guerra Mundial”?
França e Alemanha em disputa sobre quem apoia mais
Kiev
Com
esta quatro palavras, o Presidente francês quebrava um tabu até aqui
inviolável desde o início da invasão russa de larga escala à Ucrânia. Colocava
em cima da mesa a possibilidade de países da NATO enviarem soldados para
combater directamente contra a Rússia no terreno — algo até aqui excluído pela
maioria, por receio de iniciar um conflito aberto entre Moscovo e a Aliança
Atlântica.
Macron
não confirmou se França quer mesmo avançar para este cenário, nem quantos
países naquela mesa no Eliseu concordaram com a ideia. “Não vou desfazer a
ambiguidade dos debates desta noite mencionando nomes. Estou só a dizer que
esta foi uma das opções mencionadas”, disse.
Uma
“ambiguidade estratégica”, elaborou, que Paris parece estar interessada em
manter para fazer frente a Moscovo e reforçar publicamente o apoio ao Kiev. E
uma ideia que não é nova — ainda em junho, o antigo secretário-geral da NATO, Anders
Rasmussen, levantou a possibilidade de se criar uma “coligação dos
disponíveis”, com destaque para países como a Polónia e os Bálticos, que
enviassem tropas para a Ucrânia.
“Temos de os preparar. Esta é uma decisão
muito importante, que deve ser colectiva. É preciso tempo para organizar este
tipo de intervenção no terreno de forma progressiva.”
Fonte diplomática europeia ao
Le Monde sobre possibilidade de enviar tropas
(Índice…)
Na sequência do encontro no Eliseu,
uma fonte diplomática europeia dizia ao Le
Monde que Paris estará a tentar levantar esta
possibilidade, que levaria tempo a arrancar, para plantar a ideia entre os
países europeus: “Temos de os
preparar. Esta é uma decisão muito importante, que deve ser colectiva. É
preciso tempo para organizar este tipo de intervenção no terreno de forma
progressiva.”
Ideia rejeitada do norte ao sul e do
leste ao oeste da Europa. “Um convite à III Guerra Mundial”?
O
cenário traçado pelo Presidente francês, não teve, porém, qualquer eco por
parte de outros governos europeus. Nem sequer da Polónia, por exemplo,
país apontado em tempos por Rasmussen como disponível para fazer parte da
“coligação dos disponíveis”: “A Polónia não planeia enviar as suas tropas para
o território da Ucrânia”, afirmou taxativamente o primeiro-ministro Donald
Tusk.
A resistência à ideia foi transversal. No sul, o primeiro-ministro
de Portugal, António Costa, disse claramente que “não há nenhum cenário
onde essa questão se tenha colocado”; o líder Kyriakos Mitsotakis disse ser uma
questão “que para a Grécia não existe”; e a porta-voz do governo
espanhol disse ser uma posição com que Madrid “não concorda”.
A norte, o primeiro-ministro
sueco, Ulf Kristersson, também desvalorizou a ideia (“a tradição francesa não é
a tradição sueca”) e o homólogo britânico, Rishi Sunak, disse não haver
“quaisquer planos para uma mobilização de larga escala”.
▲ Apesar
do apoio à Ucrânia, maioria dos países europeus rejeitou ideia de enviar tropas
GETTY IMAGES
Índice…
Outros países do grupo de Visegrado,
alguns deles mais próximos de Moscovo, foram ainda mais taxativos na
rejeição: “Há países que dizem ‘nunca’ a isto e a Eslováquia é um deles”,
resumiu o primeiro-ministro Robert Fico. Foi apoiado depois pelo chefe de
governo húngaro, Viktor Orbán: “Querem arrastar-nos para esta guerra, mas
peço-vos que não cedam a provocações”.
A posição de Moscovo, como seria de
esperar, foi de irritação: “Nesse caso estaríamos a falar não de uma
probabilidade, mas da inevitabilidade” de um conflito entre a Rússia e a NATO,
avisou o porta-voz do Kremlin Dmitry Peskov. E, poucas horas depois, o próprio
secretário-geral da Aliança Atlântica, Jens Stoltenberg, colocava água na
fervura, dizendo que “não há planos para tropas de combate da NATO no terreno
na Ucrânia”.
Dentro de portas, os
vários líderes
partidários franceses também criticaram fortemente Emmanuel
Macron, como resumiu um analista do Eurasia Group, Mujtava Rahman: “As palavras
do Presidente foram atacadas hoje e definidas como ‘loucas’ e como um convite à
III Guerra Mundial pelos líderes da oposição francesa”, escreveu no X. “É
mais um exemplo de uma declaração dura que não pode ser aplicada na prática?”
França e Alemanha em disputa sobre quem
apoia mais Kiev
Perante uma reação tão
negativa às declarações de Macron — que ecoam certamente as reservas levantadas
em privado na reunião do Eliseu — por que razão terá o Presidente francês
decidido abordar o assunto em público?
A resposta pode estar no resto
da própria conferência de imprensa feita pelo chefe de governo francês no
Eliseu, onde, mais do que atacar Vladimir Putin, pareceu estar investido em
lançar farpas ao governo alemão. “Muitos dos
que dizem hoje ‘nunca, nunca’ são os mesmos que que há dois anos disseram
‘nunca, nunca’ aos tanques, aos aviões, aos mísseis de longo-alcance”, afirmou
Macron. “Lembro-vos que, há dois anos, muitos dos que estão a esta mesa
disseram ‘Vamos oferecer sacos-cama e capacetes’ [à Ucrânia]”. Se com a
primeira frase poderia haver dúvidas sobre a quem se referia o Presidente
francês, a segunda foi bastante clara: o
alvo era, claramente, Berlim.
“Fico contente por França estar
a pensar em como aumentar o seu apoio à Ucrânia, mas, se puder dar um conselho,
[sugiro] fornecer mais armamento.” Robert
Habeck, vice-chanceler alemão
(Índice…)
O governo alemão apressou-se a reagir. Menos de 24 horas depois, o
chanceler Olaf Scholz disse claramente aos jornalistas: “Aquilo que foi acertado entre todos nós e
que se aplica ao futuro é que não haverá soldados em solo ucraniano
enviados por Estados europeus ou da NATO”. Ao mesmo tempo, outros líderes
políticos alemães retaliavam contra Paris: “Houve uma proposta de reflexão do Presidente Macron que,
aparentemente, ninguém seguiu”, afirmou o ministro da Defesa Oscar Pistorius. O
vice-chanceler, Robert Habeck, foi ainda mais ácido, segundo o Financial Times:
“Fico contente por França estar a pensar em como aumentar o seu apoio à
Ucrânia, mas, se puder dar um conselho, [sugiro] fornecer mais armamento.”
A mensagem de Berlim toca num
nervo para os franceses, alvo de críticas no início da ofensiva por hesitações
no apoio a Kiev, que ainda hoje se mantêm. Ainda esta terça-feira, o analista
Mark Galeotti, na Spectator, lembrou
que “a ajuda [de França] à Ucrânia corresponde a 0,07% do seu PIB, uma das
mais baixas da Europa (comparada com 0,55% no Reino Unido e 0,69% na Polónia)”.
▲ Emmanuel Macron e Olaf
Scholz trocaram farpas sobre o apoio à Ucrânia BLOOMBERG VIA GETTY
IMAGES
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