sábado, 17 de fevereiro de 2024

Um retrato impagável


Seria – e é – de gozo profundo, não fosse a gravidade da falta de decoro do próprio país, indiferente, que aceita o candidato descrito, após provas fornecidas de má postura governativa anterior. Uma palhaçada num país de circo, que Alberto Gonçalves bem tenta prevenir de más andanças. Inutilmente, porque nem respeito nem seriedade parecem já existir neste pobre espaço sem mais alma do que para a gozação carnavalesca.

Um candidato do outro mundo

O PS, ou uma parte do PS, entrou em pânico. Refiro-me aos socialistas que escolheram o dr. Pedro Nuno para os chefiar e, uma redundância na perspectiva deles, chefiar o país.

ALBERTO GONÇALVES Colunista do Observador

OBSERVADOR, 17 fev. 2024, 00:2010

Na quinta-feira, o dr. Pedro Nuno começou uma resposta aos jornalistas da seguinte maneira: “É óbvio que, enquanto primeiro-ministro e enquanto cidadão me preocupa que pessoas estejam detidas durante 21 dias. Sobre isso não haja a mínima dúvida. Aquilo que acho que não devo fazer enquanto primeiro-ministro é estar a fazer comentários sobre casos judiciais em concreto.”

Assim fica difícil, difícil para os comentadores e difícil para o PS. É tradição os socialistas apresentarem candidatos medíocres, maus, péssimos ou miseráveis. Porém, esta é a primeira vez que apresentam um candidato residente numa dimensão paralela, impermeável aos critérios habitualmente utilizados no nosso planeta. Há políticos à frente do seu tempo e há, com maior frequência, políticos atrás do seu tempo. O dr. Pedro Nuno situa-se ao lado do seu tempo, num cantinho recatado em que ninguém penetra sem auxílio de psicotrópicos.

Começo a suspeitar de que a frase do ano – “Diga lá o que é que não funciona!” – não foi um pobre exercício de retórica, e sim genuína estupefacção e sincero interesse. O dr. Pedro Nuno queria ser informado sobre o que não funciona em Portugal porque de facto não sabe. Não sabe o que se passa na saúde, na educação e na justiça. Não sabe o valor do salário mínimo. Não sabe as tarifas da CP. E quando finge saber alguma coisa o dr. Pedro Nuno diz coisas destas: “Os portugueses preferem esperar no SNS do que ser atendidos no privado”, uns dias depois de admitir ser cliente de hospitais privados. O reino do dr. Pedro Nuno não é deste mundo.

Para os comentadores, e falo principalmente dos 98,4% de comentadores televisivos que, neutrais ou representantes de diversas áreas políticas, obedecem sempre às directivas do PS, a vida não corre bem. Com que cara de pau se declara o dr. Pedro Nuno vencedor de debates a que, salvo pelo corpo presente, o dr. Pedro Nuno não comparece? A cada confronto, a cabeça dele encontra-se a enorme distância do adversário, dos temas em discussão, do estúdio enfim. O homem parece realmente atordoado, confundido pelas burocracias necessárias para chegar a um cargo que já considera seu: o dr. Pedro Nuno decretou-se primeiro-ministro e os protocolos intermediários não lhe dizem respeito. Em 1859, Joshua Norton, um comerciante falido de São Francisco, também se proclamou imperador dos EUA e protector do México. Viveu duas décadas nessa ilusão, que por comiseração os conterrâneos alimentaram. Não sei se os portugueses serão tão generosos. E sei que o PS não o é.

O PS, ou uma parte do PS, entrou em pânico. Refiro-me aos socialistas que escolheram o dr. Pedro Nuno para os chefiar e, uma redundância na perspectiva deles, chefiar o país (a parte do PS que sobra contempla, talvez sorridente, o desastre em curso). É plausível que, após as consagrações de portentos como Guterres, Sócrates e Costa, o PS se convencesse de que a desmesurada influência do partido no Estado e a desmesurada dependência da sociedade face ao partido bastaria para eleger qualquer um, incluindo um piaçaba. Por azar, o piaçaba não se mostrou disponível e emergiu o dr. Pedro Nuno, que nem com gola alta se compara. E a campanha é o que se vê, um acidente que avança a atropelar sondagens: a “dinâmica de vitória” da AD coincide afinal com a dinâmica de derrota do dr. Pedro Nuno. O PS pode estar aflito, mas não se pode confessar surpreendido.

Os avisos alusivos ao, digamos, estilo do dr. Pedro Nuno eram imensos. Da ameaça aos banqueiros alemães à localização espontânea do aeroporto de Lisboa, passando pela TAP, pela ferrovia, pelo WhatsApp e, vá lá, por tudo em que tocou, o dr. Pedro Nuno dera vastíssimas provas de, na melhor das hipóteses, ser um garoto em invólucro de meia-idade, em quem um dia o papá, a mamã ou o avô “sapateiro” detectaram encantados um talento precoce para executar tropelias em público sem sentir vergonha. Em circunstâncias normais, o PS escondia-o num lugar escuro. Nas extraordinárias circunstâncias presentes, o PS e os “media” amigos apontaram-lhe os holofotes e promoveram-no a “líder” por razões de “carisma”.

A conversa do “carisma”, matéria em que por acaso o dr. Pedro Nuno volta a perder para o piaçaba, sugere que, logo de início, a propaganda do PS não descortinou na personagem virtudes reais e susceptíveis de investimento. A existir, o carisma não se afirma: percebe-se. O que se percebe no dr. Pedro Nuno é que ninguém, sobretudo o dr. Pedro Nuno, percebe o que ele anda ali a fazer. Para cúmulo, as sumidades que lhe orientam a campanha parecem empenhados em sabotá-la, por exemplo mediante a falsificação de fotografias em que o Carismático convive com populares no interior de um Five Guys (uma cadeia de restaurantes inexistente para cá de Badajoz). Ou em forçá-lo a acusar o PSD de preparar uma aliança com o Chega e acusar o Chega de ser desprezado pelo PSD. Ou em deixá-lo falar.

Em Hollywood, a história do dr. Pedro Nuno daria uma comédia tosca: a história de um adolescente tardio que, num regime em destroços e através de uma sucessão de incidentes e decisões incompreensíveis, alcançou a possibilidade de se imaginar estadista, e de acreditar na possibilidade a ponto de a julgar consumada. A 10 de Março veremos se os espectadores se escangalham a rir. Ou se transformam o guião numa tragédia.

PS     POLÍTICA

COMENTÁRIOS (de 10)

Alexandra Ferraz: Oh Alberto, farto-me de rir com as suas crónicas. Mas depois caio em mim e contenho-me porque o assunto é sério. O PNS é o protagonista de uma 'opera buffa', de um 'dramma giocoso' e arrasta-nos a todos para tristes figurantes... O desfecho desta campanha, apesar das sondagens, é uma grande incógnita porque os figurantes às vezes surpreendem o guionista. Eu já fui membro do Círculo Portuense de Ópera mas, desta vez, prefiro ver de camarote 😉 . Obrigada sempre pelas suas belíssimas prosas. 🙌🙌

F. Mendes: Parto-me a rir, ao imaginar um piaçaba de gola alta, e provavelmente a fugir do PNS, para evitar comparações e semelhanças embaraçosas. Aqui fica a minha solidariedade com todos os piaçabas deste mundo, que não merecem comparações deslustrosas como a agora feita pelo AG! E que revelam indiscutível utilidade num planeta que todos desejamos mais limpo, ecologicamente sustentável, livre de maus odores e susceptível de permitir a satisfação de necessidades básicas em condições de dignidade humana! Aliás, sugiro que se substitua, no 50º aniversário do glorioso 25 de Abril, o cravo pelo piaçaba, como símbolo de tão egrégio dia na nossa História! Isso sim, seria cumprir Abril, embora com 50 anos de atraso!

José Paulo C Castro:  A grande carta de recomendação de PNS era a sua capacidade para articular com as esquerdas à esquerda do PS. Mais nada (o trajecto de ministro é um desastre). Foi isso que o levou à liderança do PS. Ora, quem sabe articular com líricos, que vivem em realidades paralelas, não pode ser deste mundo. No entanto, não aceitem isso sem provas concretas, pois as ajudas de custo para S. João da Madeira já nos saíram suficientemente caras...


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