É o nosso cômputo, desde que o Diabo do Auto da Feira do nosso Gil Vicente o explicava muito bem à pesarosa
Roma que vinha à Feira comprar paz,
verdade e fé, que o Diabo lhe nega, pois “quem bondade tem nunca o mundo será seu”, e os governantes sabem disso
perfeitamente hoje, também, pelo menos por cá, pois que talvez Roma já tenha
resolvido o seu caso das mentiras, tantos anos após. Nós vamos continuando
nessa questão das mentiras, que não nos faz mossa - “mentiras para senhoras, mentiras para senhores, mentiras de todas as
cores…” – somos peritos. Alexandre Homem Cristo demonstra bem o nosso caso.
Um problema com a verdade
Nos últimos 20 anos, Portugal melhorou
extraordinariamente no abandono escolar porque, em vez de narrativas políticas,
respeitou os diagnósticos. É importante não retroceder nesse caminho.
ALEXANDRE HOMEM
CRISTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 15
fev. 2024, 00:2011
1O sistema educativo português obteve vitórias que nos devem orgulhar. Uma dessas vitórias é a redução da taxa do abandono escolar precoce — ou seja, a percentagem de jovens entre os 18-24 anos que não concluiu o ensino secundário e não está a estudar. Em 1992, o abandono escolar atingia os 50%. Dez anos depois, em 2002, estava praticamente na mesma (45%). Dito de outra forma: cerca de metade dos jovens saía da escola sem concluir o 12º ano — um desperdício de potencial humano. Foi no início dos anos 2000 que a redução do abandono escolar se destacou entre os objectivos das políticas públicas de educação e, desde então, a evolução tem sido notável.
Tem sido notável por duas razões. Primeiro, porque a redução foi constante e rápida. Em
2012, a taxa de abandono escolar (20,5%) já era menos de metade do que era em
2002. Agora, em 2023, está nos 8%. Em vinte anos, o abandono escolar passou de
dominante a quase-residual. É
extraordinário: há gerações de portugueses que, graças
a esta vitória, terão horizontes mais amplos para a sua vida adulta — social e
profissionalmente. A segunda razão desta evolução ter sido
notável é política: o consenso partidário foi inabalável. Ao longo desses vinte
anos, a prioridade de redução do abandono escolar atravessou governos
diferentes, ministros diferentes, partidos diferentes. Foi uma causa de todos
e, por isso, uma vitória de todos. Não abundam exemplos de rumos estratégicos
tão consensuais e duradouros nas políticas públicas de educação.
2Em 2023, o abandono
escolar foi de 8% e, portanto, aumentou 1,5 pontos percentuais
face a 2022 (6,5%). Um valor inesperado para muitos. Afinal, habituámo-nos a
ver o abandono escolar diminuir anualmente e, desde 1998 (há 25 anos!), que não
se via um aumento desta magnitude. O mínimo seria que este aumento servisse
para lançar perguntas. Desde logo, sobre
as suas causas — o que aconteceu para justificar este aumento? Depois, sobre as
medidas de resposta — o que se pretende fazer para continuar a puxar o abandono
escolar para baixo? O Ministério da Educação não quis fazer estas perguntas.
Reagindo em comunicado à
publicação dos indicadores do INE, o Ministério
da Educação desvalorizou a subida do abandono escolar em 2023. Por
um lado, porque considerou que 2021 e 2022 foram “anos atípicos” (pandemia),
razão pela qual a comparação (para avaliar subidas ou descidas) deveria ser
feita com 2020 (9,1%) — ou seja, colocou o foco na evolução entre 2020 e 2023,
para salientar uma descida de 1,1 pontos percentuais. Por outro lado, colocou
em causa a fiabilidade dos dados do INE, invocando alterações metodológicas que
inviabilizariam a comparação com o ano de 2023. Em síntese, o Governo
rejeitou o diagnóstico: fosse por questões contextuais (pandemia) ou por razões
metodológicas (INE), a subida do abandono escolar não era para ser levada a
sério porque, na versão oficial do Ministério da Educação, continuava a haver descida
do abandono escolar (entre 2020 e 2023). O INE já refutou esta argumentação.
3A posição do Governo
contém inúmeros problemas. O mais gritante é a completa desonestidade
intelectual usada para desqualificar os tais “anos atípicos” (2021 e 2022), que
tiveram uma taxa de abandono escolar à volta dos 6,5% e, portanto, inferior a
2023. Recorde-se que as taxas de abandono escolar nesses
tais “anos atípicos” foram celebradas com pompa pelo Governo, que assinalou os
“mínimos históricos” do abandono escolar. Não foi apenas o Ministério da
Educação. Foi o próprio Primeiro-Ministro que, em 2022, descreveu a redução do
abandono escolar como a “maior mudança estrutural” na
Educação durante os seus mandatos. Ou seja, as taxas de 2021 e 2022 foram usadas e abusadas para
enaltecer o Governo em comparações com anos anteriores. Mas, perante a subida
em 2023, deixaram de ser úteis para as narrativas de sucesso e foram
desqualificadas como “anos atípicos” e excluídas das comparações. A validade
dos dados não pode depender da conveniência política. Não há forma benevolente
de olhar para este spin político: o Governo e Ministério da Educação têm um
problema com a verdade.
Não
é de hoje. A preferência por “factos alternativos” tem definido a postura do
Governo na Educação. Por exemplo, vimos semelhante abordagem em relação à
aprendizagem, quando o Governo celebrou progressos dos alunos durante e após
pandemia, que não só não tinham qualquer validade metodológica como
vieram a ser categoricamente desmentidos pelas avaliações internacionais (PISA
2022) e nacionais (estudo diagnóstico
2021-2023) subsequentes. Da mesma forma que vimos o Governo manipular a
comunicação pública dos resultados do PIRLS 2021, inventando um
segundo resultado nacional mais vantajoso do que o verdadeiro. Ou ainda quando
vimos o Governo desconsiderar um parecer do Tribunal de Contas, que a
implementação do Programa de Recuperação da Aprendizagem. A
lista completa é chocantemente longa. E o inquietante não está apenas na
intoxicação do debate político, que ficou envenenado por meias-verdades e
mentiras. O ponto central é que, ao recusar os diagnósticos, o Mini arrasou
stério da Educação tem-se colocado à margem das soluções: se não reconhece os
problemas, não sente a necessidade de os resolver.
4Onde está a verdade sobre o abandono
escolar em 2023, afinal? Há dois pontos a fixar. O primeiro é que,
efectivamente, a pandemia reduziu artificialmente o abandono escolar em 2021 e
2022. Com as escolas fechadas, com o ensino a distância e menor pressão sobre
desempenho escolar, com menores oportunidades de emprego, os “incentivos” para
abandonar a escola foram baixos. Situação que se inverteu com o regresso à
normalidade de 2023 — os “incentivos”
a abandonar a escola multiplicaram-se, nomeadamente as oportunidades de
trabalho. Isto significa que o contexto de pandemia explica o baixo
abandono escolar de 2021 e 2022, assim como o pós-pandemia explica a subida em
2023. Aconteceu, portanto, o expectável em função do que nos ensina a
investigação nesta área. Ora, o Governo agarrou-se a esta explicação sobre
2023, mas apedrejou quem, em 2021 e 2022, antecipou essa mesma explicação.
O segundo ponto a fixar é que o abandono escolar em 2023 (8%),
apesar de ter subido, mantém Portugal dentro dos objectivos europeus. Mas ficam
perguntas no ar. Respostas mais definitivas virão daqui a uns meses, quando
conhecermos os dados europeus para o abandono escolar e compararmos a subida
portuguesa com a situação noutros países. Terá havido uma tendência
generalizada de ajustes (em alta) no pós-pandemia? Como se posiciona Portugal —
como caso isolado ou parte da tendência? E como se antevê a evolução da taxa do
abandono escolar em Portugal — voltará a descer ou tenderá a subir (por
exemplo, devido ao peso da imigração)? A comparação internacional ajudará a
compreender o que aconteceu e a ponderar o peso de outros factores nacionais
(para além da pandemia).
5É triste que o abandono escolar, habitual palco de consensos e vitórias,
seja atirado para uma trincheira de combate político. O Governo fê-lo quando
celebrou dados (2021 e 2022) que sabia estarem artificialmente baixos. E o
Governo voltou a fazê-lo quando condicionou as análises de 2023, para que
correspondessem à sua narrativa. Nos últimos 20 anos, Portugal melhorou
extraordinariamente no abandono escolar porque, em vez de narrativas políticas,
respeitou os diagnósticos. É importante não retroceder nesse caminho.
PAÍS EDUCAÇÃO GOVERNO POLÍTICA
COMENTÁRIOS (de 6)
JOHN MARTINS:
Parabéns pela crónica, por algum motivo foi escolhido
para concorrer pelas listas da AD em Lisboa. Feliz e inteligente ideia de
Montenegro.
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