(continuação):
Da primeira parte da crónica de José Carlos Fernandes:
«A Rússia e o sonho imperial (parte 1):
das origens às vésperas da Revolução de Outubro»
Dois anos sobre o início da agressão
russa à Ucrânia, quais serão, por trás da cortina de fumo da propaganda, as
verdadeiras motivações de Putin para se ter lançado – e persistir – nesta
“aventura”?
JOSÉ CARLOS
FERNANDES: Texto
OBSERVADOR, 17 fev. 2024, 17:598
Uma operação de rebranding
«O Holodomor não foi uma “aberração”, ou um caso
isolado e incaracterístico, ou uma inexplicável “birra” de Stalin – insere-se na
longa e atribulada história da relação entre a Ucrânia e a Rússia e é uma
manifestação extrema da ideia, defendida por Putin e por muitos líderes e
pensadores russos, de que a Ucrânia nunca teve existência como nação
independente e que ucranianos e russos são um mesmo povo.
Esta falsificação histórica que tem vindo a ser construída pelos
russos ao longo dos últimos três séculos já foi abordada nos artigos De
Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz
“cercado” e De
Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da
Ucrânia, pelo que em
seguida apenas se resumirão alguns passos pertinentes para a história das
relações entre a Ucrânia e da Rússia.
O Rus’ de Kiev foi um estado
fundado no século IX onde é hoje a Ucrânia e que teve como primeira dinastia
governante os Rurikid. Estes
devem o seu nome a Rurik, um chefe varangue que, em 862, terá assumido, com
contando com o apoio dos seus irmãos Sineus e Truvor, o governo da região de
Novgorod.
Rurik, ladeado pelos irmãos, Sineus e Truvor, é convidado a assumir
o governo de Novgorod. Quadro de Viktor Vasnetsov (1848-1926)
Os varangues
são usualmente identificados como vikings suecos (conhecidos localmente como Rus’) que,
difundindo-se para sul, leste e norte através dos rios que desaguam no Báltico,
colonizaram os territórios hoje correspondentes à Bielo-Rússia, Ucrânia
e Rússia ocidental. Segundo a
lenda do “convite aos varangues”, as tribos locais ter-se-ão unido para expulsar
os varangues, mas depois de o terem logrado, envolveram-se em guerras
intestinas tão devastadoras que acabaram por pedir a Rurik e seus irmãos que
voltassem e assumissem a sua liderança. Algumas fontes sugerem que terá
sido Sineus, sucessor de Rurik, a transferir a capital do principado para
Kiev, mas a informação sobre este
período é tão rarefeita e contraditória que as certezas são poucas.
Um dos momentos decisivos na história do
Rus’ de Kiev teve lugar na década de 980 e diz respeito ao baptismo, em
Constantinopla, de Volodymyr/Vladimir
I (c.958-1015), conhecido como “o
Grande”, príncipe de Novgorod (de 970 a c.988) e Grande Príncipe de Kiev (de
978 a1015). Esta
cerimónia foi um momento fulcral na cristianização
do Rus’ de Kiev – e da Europa Oriental em geral – e coincidiu com o casamento
de Volodymyr/Vladimir com Anna Porphyrogenita, irmã dos co-imperadores
bizantinos Basílio II e Constantino VIII. Todavia, como acontece com
quase toda a história dos primórdios do Rus’ de Kiev, as fontes apresentam narrativas
discrepantes sobre estes eventos.
O
baptismo de Volodymyr I, segundo Viktor Vasnetsov (1890)
É
importante esclarecer que o Rus’ de Kiev 1) não corresponde a nenhuma
entidade política actual e 2) era constituído por uma amálgama de
etnias, em que além de diversas tribos de eslavos orientais, que seriam
maioritárias, se contariam os já mencionados varangues, tribos fino-úgricas e
khazars e outras etnias turcomanas.
O Rus’ de Kiev atingiu a sua máxima
extensão no reinado de Yaroslav o Sábio (1019-1054) a que se seguiu um processo
de desagregação que facilitou a sua conquista pelos mongóis da Horda Dourada em
1236-40.
O
Rus’ de Kiev no 2.º quartel do século XIII, quando já era apenas uma frágil
federação de reinos e principados que seria dissolvida pelos mongóis
Entretanto,
a nordeste de Kiev um principado que tivera como embrião um modesto povoado nas
margens do Rio Moskva, que começou a ser fortificado em 1156, acabou por
libertar-se do estatuto de estado-vassalo dos mongóis e do pagamento de tributo
a estes e foi ganhando poder sobre os territórios em seu redor. O Grão-Ducado de Moscóvia, com sede nessa cidadezita à
beira do Moskva, não tendo “pergaminhos” em que sustentar as suas pretensões
expansionistas, acabou por apropriar-se do prestigiado legado do Rus’ de Kiev. Em 1547, Ivan IV (mais conhecido pelo seu cognome, “o Terrível”) fez-se coroar como “Czar de Todas as Rússias”, um título que tentava passar a ideia de que:
1) A Moscóvia não era
apenas um entre vários reinos de Rus’, termo que, por esta altura, deixara de
estar associado aos varangues e designava genericamente os vários povos eslavos
orientais) mas o reino de todos os Rus’;
2) A Moscóvia
era a herdeira espiritual e cultural do
Rus’ de Kiev, nomeadamente da sua relação privilegiada com a Igreja
Ortodoxa Oriental, com sede em Constantinopla;
3) Ivan IV era o herdeiro dos
imperadores de Bizâncio, o que era atestado por um documento contendo 39
assinaturas – 35 das quais forjadas – de respeitáveis autoridades eclesiásticas
de Constantinopla.
A coroação de Ivan IV, segundo
a Crónica ilustrada de Ivan o Terrível, obra em 10 volumes encomendada pelo
próprio Ivan IV e que cobria o período entre a criação do mundo e 1567
Esta distorção/usurpação da história dos eslavos orientais seria
consolidada em 1721 por um sucessor de Ivan IV: nesse ano, Pedro I
(dito “O Grande”), que, em 1682, fora coroado Czar de Todas as Rússias e
dilatara consideravelmente os ganhos territoriais obtidos pelos seus
antecessores, substituiu o título de “Czar de Todas as Rússias” pelo de
“imperador da Rússia”, isto é, “governante de todas as Rússias; de
Moscovo, de Kiev, de Vladimir, de Novgorod, czar de Kazan, czar de Astrakhan e
czar da Sibéria, soberano de Pskov, grande príncipe de Smolensk, de Tver, de
Yugorsk, de Perm, de Vyatka, da Bulgária, soberano e grande príncipe das terras
baixas de Novgorod, de Chernigov, de Ryazan, de Rostov, de Yaroslavl, de
Belozersk, de Udora, de Kondia e soberano de todas as terras setentrionais, das
Terras Iverianas [hoje na Geórgia], das terras dos reis kartlianos e
georgianos, da Kabardia [correspondente hoje à república russa da
Kabardino-Balkaria] e dos príncipes da Circássia e das Montanhas [do Cáucaso] e
de muitos outros estados e territórios, a Ocidente e Oriente, ali e acolá”.
Este
novo título não era apenas uma manifestação gratuita de bazófia, mas, como
aponta o historiador Timothy Snyder, era “uma operação consciente de
rebranding” da Rússia.
Pedro I, retratado em 1717 por Jean-Marc
Nattier
Esta
operação foi prosseguida por Catarina
II (dita “A Grande”), que
reinou entre 1762 e 1796. Catarina
era, originalmente, uma princesa alemã, de fé luterana, que, em 1744, a fim de
casar-se com o futuro imperador Pedro III, se converteu ao cristianismo
ortodoxo russo e mudou o seu nome de Sophie Friederike Auguste von
Anhalt-Zerbst-Dornburg para Yekaterina Alekseyevna. Embora, dada a
educação recebida na juventude, tivesse sido fortemente influenciada pelo
ideário iluminista então florescente na Europa Ocidental, a faceta
do Iluminismo que mais a seduziu foi o despotismo esclarecido: a condução dos assuntos de Estado deveria
ser norteada pela razão, mas esta deveria andar de braço dado com a
determinação e a firmeza – uma prática que também marcara o reinado de Pedro I.
Catarina II, retratada na década de 1780 por Alexander
Roslin
Uma das acções mais relevantes dessa
campanha de rebranding iniciou-se em 1783, Catarina II determinou a criação da
Comissão para a Compilação de Notas sobre a Antiga História Russa. Ao longo de quase uma década de labor,
esta comissão reformulou lendas, reescreveu crónicas, alterou datas em
documentos e transferiu documentos dos arquivos no antigo Rus’ de Kiev para
Moscovo, de forma a consolidar uma “narrativa” que conferia antiguidade e
prestígio à Moscóvia/Rússia através da apropriação da história do Rus’ de Kiev
e dava aos imperadores russos legitimidade para submeter não só todos os
eslavos orientais como as etnias que habitavam territórios vizinhos. A invasão
e a anexação passavam, assim, a ser apenas um reencontro de povos irmãos (os
principais aspectos desta vasta e minuciosa reescrita da História foram sintetizados
pelo historiador ucraniano Yaroslav Dashkevych (1926-2010) no artigo “Como a
Moscóvia se apropriou da história do Rus’ de Kiev”).
Entretanto, na Ucrânia…
Enquanto a Moscóvia/Rússia dilatava as
suas fronteiras e inventava para si um passado venerando e refulgente, no
coração do território que constituíra o Rus’ de Kiev, muito tinha mudado desde a conquista
mongol do século XIII: polacos e lituanos foram ganhando terreno aos invasores
mongóis e reprimindo as aspirações independentistas dos príncipes locais e as
revoltas da população e acabaram por assumir o controlo da maior parte do
território ocupado pela moderna Ucrânia. Em 1569, o Grão-Ducado da Lituânia e o
Reino da Polónia uniram-se na Comunidade Polaco-Lituana, ou República das Duas
Nações, uma potência que atingiu a sua máxima expressão territorial nos séculos
XVI-XVII, ainda que
sem conseguir assegurar o controlo do que são hoje as regiões leste e sul da
Ucrânia, onde reinavam os cossacos e os tártaros.
A Comunidade Polaco-Lituana em 1619
Só no terceiro quartel do século
XVIII é que o
Império Russo começou a tomar conta da Ucrânia (ou melhor: do território que é hoje
a Ucrânia), tirando partido da fragmentação da Comunidade Polaco-Lituana,
iniciada em 1772 e consumada em 1795.
No século XIX, a Ucrânia viveu
repartida entre o Império Austro-Húngaro, que detinha a sua parte ocidental – o
Reino da Galícia, com capital em Lviv (Lemberg para os germanófonos) – e o
Império Russo, que se assenhoreara da maior parte do território. As populações
das duas partes da Ucrânia tiveram experiências diferentes durante esse
período: enquanto os austro-húngaros concederam alguma autonomia aos habitantes
da Galícia, na Ucrânia sob controlo russo a necessidade de impor a
“narrativa” de que o território sempre fizera parte da Rússia e de que os
ucranianos eram (e sempre tinham sido) russos determinou a tomada de duras
medidas para a supressão da identidade nacional ucraniana, que começava então a
ganhar forma e a reivindicar autonomia. O ensino da língua ucraniana foi proibido e o mesmo aconteceu com a
impressão de livros, jornais e outras publicações em ucraniano, o que levou ao
êxodo de muitos intelectuais para a parte da Ucrânia sob controlo
austro-húngaro. A língua é um dos esteios da identidade nacional e o ucraniano
atesta claramente o que distingue ucranianos de russos. Embora exista alguma
inteligibilidade mútua entre as línguas ucraniana e russa, a primeira tem
maiores afinidades vocabulares com o bielo-russo, o polaco, o sérvio e o
eslovaco (por esta ordem), surgindo o russo apenas em 5.º lugar. Se se
considerarem semelhanças fonéticas e gramaticais, o russo surge apenas em 13.º
lugar na hierarquia de afinidades – e isto apesar dos mais de dois séculos que
a Ucrânia passou sob domínio da Rússia/URSS e das políticas activas de
“russificação” implementada durante esse período.
HISTÓRIA CULTURA GUERRA NA UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO RÚSSIA»
COMENTÁRIOS; (de 14)
Ediberto Abreu: Os dois grandes nazis da história, o
hitler e o putin, daqui a 100 anos deve aparecer o terceiro, é cíclico. Pertinaz: A Rússia e o seu povo são odiosos desde tempos imemoriais… gente
de má índole que sempre fez mal a quem os rodeia… não há que ter piedade nem
contemplações com essa ditadura e com a escumalha de esquerda que a apoia…!!! Nuno Borges: Moscovo pretendia anexar a Ucrânia em uma semana e avançar para o
Canal e a Espanha. Agora está difícil descalçar a bota, especialmente porque
tem os chins às costas como quis Kissinger.
Liberales Semper Erexitque: Dois anos sobre o início da agressão russa à Ucrânia, quais serão,
por trás da cortina de fumo da propaganda, as verdadeiras motivações de Putin
para se ter lançado – e persistir – nesta “aventura”? Que raio é isto? Veio
directamente do ministro da propaganda da Ucrânia, ou foi escrito por um
fascista indígena de serviço?
Nenhum comentário:
Postar um comentário