domingo, 18 de fevereiro de 2024

Histórias da História


 (continuação):

Da primeira parte da crónica de José Carlos Fernandes:

«A Rússia e o sonho imperial (parte 1): das origens às vésperas da Revolução de Outubro»

Dois anos sobre o início da agressão russa à Ucrânia, quais serão, por trás da cortina de fumo da propaganda, as verdadeiras motivações de Putin para se ter lançado – e persistir – nesta “aventura”?

JOSÉ CARLOS FERNANDES: Texto

OBSERVADOR, 17 fev. 2024, 17:598

Uma operação de rebranding

«O Holodomor não foi uma “aberração”, ou um caso isolado e incaracterístico, ou uma inexplicável “birra” de Stalin – insere-se na longa e atribulada história da relação entre a Ucrânia e a Rússia e é uma manifestação extrema da ideia, defendida por Putin e por muitos líderes e pensadores russos, de que a Ucrânia nunca teve existência como nação independente e que ucranianos e russos são um mesmo povo.

Esta falsificação histórica que tem vindo a ser construída pelos russos ao longo dos últimos três séculos já foi abordada nos artigos De Kaliningrad a Petropavlovsk: A geografia da Rússia, um país que se diz “cercado” e De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia, pelo que em seguida apenas se resumirão alguns passos pertinentes para a história das relações entre a Ucrânia e da Rússia.

O Rus’ de Kiev foi um estado fundado no século IX onde é hoje a Ucrânia e que teve como primeira dinastia governante os Rurikid. Estes devem o seu nome a Rurik, um chefe varangue que, em 862, terá assumido, com contando com o apoio dos seus irmãos Sineus e Truvor, o governo da região de Novgorod.

Rurik, ladeado pelos irmãos, Sineus e Truvor, é convidado a assumir o governo de Novgorod. Quadro de Viktor Vasnetsov (1848-1926)

Os varangues são usualmente identificados como vikings suecos (conhecidos localmente como Rus’) que, difundindo-se para sul, leste e norte através dos rios que desaguam no Báltico, colonizaram os territórios hoje correspondentes à Bielo-Rússia, Ucrânia e Rússia ocidental. Segundo a lenda do “convite aos varangues”, as tribos locais ter-se-ão unido para expulsar os varangues, mas depois de o terem logrado, envolveram-se em guerras intestinas tão devastadoras que acabaram por pedir a Rurik e seus irmãos que voltassem e assumissem a sua liderança. Algumas fontes sugerem que terá sido Sineus, sucessor de Rurik, a transferir a capital do principado para Kiev, mas a informação sobre este período é tão rarefeita e contraditória que as certezas são poucas.

Um dos momentos decisivos na história do Rus’ de Kiev teve lugar na década de 980 e diz respeito ao baptismo, em Constantinopla, de Volodymyr/Vladimir I (c.958-1015), conhecido como “o Grande”, príncipe de Novgorod (de 970 a c.988) e Grande Príncipe de Kiev (de 978 a1015). Esta cerimónia foi um momento fulcral na cristianização do Rus’ de Kiev – e da Europa Oriental em geral – e coincidiu com o casamento de Volodymyr/Vladimir com Anna Porphyrogenita, irmã dos co-imperadores bizantinos Basílio II e Constantino VIII. Todavia, como acontece com quase toda a história dos primórdios do Rus’ de Kiev, as fontes apresentam narrativas discrepantes sobre estes eventos.

O baptismo de Volodymyr I, segundo Viktor Vasnetsov (1890)

É importante esclarecer que o Rus’ de Kiev 1) não corresponde a nenhuma entidade política actual e 2) era constituído por uma amálgama de etnias, em que além de diversas tribos de eslavos orientais, que seriam maioritárias, se contariam os já mencionados varangues, tribos fino-úgricas e khazars e outras etnias turcomanas.

O Rus’ de Kiev atingiu a sua máxima extensão no reinado de Yaroslav o Sábio (1019-1054) a que se seguiu um processo de desagregação que facilitou a sua conquista pelos mongóis da Horda Dourada em 1236-40.

O Rus’ de Kiev no 2.º quartel do século XIII, quando já era apenas uma frágil federação de reinos e principados que seria dissolvida pelos mongóis

Entretanto, a nordeste de Kiev um principado que tivera como embrião um modesto povoado nas margens do Rio Moskva, que começou a ser fortificado em 1156, acabou por libertar-se do estatuto de estado-vassalo dos mongóis e do pagamento de tributo a estes e foi ganhando poder sobre os territórios em seu redor. O Grão-Ducado de Moscóvia, com sede nessa cidadezita à beira do Moskva, não tendo “pergaminhos” em que sustentar as suas pretensões expansionistas, acabou por apropriar-se do prestigiado legado do Rus’ de Kiev. Em 1547, Ivan IV (mais conhecido pelo seu cognome, “o Terrível”) fez-se coroar como “Czar de Todas as Rússias”, um título que tentava passar a ideia de que:

1) A Moscóvia não era apenas um entre vários reinos de Rus’, termo que, por esta altura, deixara de estar associado aos varangues e designava genericamente os vários povos eslavos orientais) mas o reino de todos os Rus’;

2) A Moscóvia era a herdeira espiritual e cultural do Rus’ de Kiev, nomeadamente da sua relação privilegiada com a Igreja Ortodoxa Oriental, com sede em Constantinopla;

3) Ivan IV era o herdeiro dos imperadores de Bizâncio, o que era atestado por um documento contendo 39 assinaturas – 35 das quais forjadas – de respeitáveis autoridades eclesiásticas de Constantinopla.

A coroação de Ivan IV, segundo a Crónica ilustrada de Ivan o Terrível, obra em 10 volumes encomendada pelo próprio Ivan IV e que cobria o período entre a criação do mundo e 1567

Esta distorção/usurpação da história dos eslavos orientais seria consolidada em 1721 por um sucessor de Ivan IV: nesse ano, Pedro I (dito “O Grande”), que, em 1682, fora coroado Czar de Todas as Rússias e dilatara consideravelmente os ganhos territoriais obtidos pelos seus antecessores, substituiu o título de “Czar de Todas as Rússias” pelo de “imperador da Rússia”, isto é, “governante de todas as Rússias; de Moscovo, de Kiev, de Vladimir, de Novgorod, czar de Kazan, czar de Astrakhan e czar da Sibéria, soberano de Pskov, grande príncipe de Smolensk, de Tver, de Yugorsk, de Perm, de Vyatka, da Bulgária, soberano e grande príncipe das terras baixas de Novgorod, de Chernigov, de Ryazan, de Rostov, de Yaroslavl, de Belozersk, de Udora, de Kondia e soberano de todas as terras setentrionais, das Terras Iverianas [hoje na Geórgia], das terras dos reis kartlianos e georgianos, da Kabardia [correspondente hoje à república russa da Kabardino-Balkaria] e dos príncipes da Circássia e das Montanhas [do Cáucaso] e de muitos outros estados e territórios, a Ocidente e Oriente, ali e acolá”. Este novo título não era apenas uma manifestação gratuita de bazófia, mas, como aponta o historiador Timothy Snyder, era “uma operação consciente de rebranding” da Rússia.

Pedro I, retratado em 1717 por Jean-Marc Nattier

Esta operação foi prosseguida por Catarina II (dita “A Grande”), que reinou entre 1762 e 1796. Catarina era, originalmente, uma princesa alemã, de fé luterana, que, em 1744, a fim de casar-se com o futuro imperador Pedro III, se converteu ao cristianismo ortodoxo russo e mudou o seu nome de Sophie Friederike Auguste von Anhalt-Zerbst-Dornburg para Yekaterina Alekseyevna. Embora, dada a educação recebida na juventude, tivesse sido fortemente influenciada pelo ideário iluminista então florescente na Europa Ocidental, a faceta do Iluminismo que mais a seduziu foi o despotismo esclarecido: a condução dos assuntos de Estado deveria ser norteada pela razão, mas esta deveria andar de braço dado com a determinação e a firmeza – uma prática que também marcara o reinado de Pedro I.

Catarina II, retratada na década de 1780 por Alexander Roslin

Uma das acções mais relevantes dessa campanha de rebranding iniciou-se em 1783, Catarina II determinou a criação da Comissão para a Compilação de Notas sobre a Antiga História Russa. Ao longo de quase uma década de labor, esta comissão reformulou lendas, reescreveu crónicas, alterou datas em documentos e transferiu documentos dos arquivos no antigo Rus’ de Kiev para Moscovo, de forma a consolidar uma “narrativa” que conferia antiguidade e prestígio à Moscóvia/Rússia através da apropriação da história do Rus’ de Kiev e dava aos imperadores russos legitimidade para submeter não só todos os eslavos orientais como as etnias que habitavam territórios vizinhos. A invasão e a anexação passavam, assim, a ser apenas um reencontro de povos irmãos (os principais aspectos desta vasta e minuciosa reescrita da História foram sintetizados pelo historiador ucraniano Yaroslav Dashkevych (1926-2010) no artigo “Como a Moscóvia se apropriou da história do Rus’ de Kiev”).

Entretanto, na Ucrânia…

Enquanto a Moscóvia/Rússia dilatava as suas fronteiras e inventava para si um passado venerando e refulgente, no coração do território que constituíra o Rus’ de Kiev, muito tinha mudado desde a conquista mongol do século XIII: polacos e lituanos foram ganhando terreno aos invasores mongóis e reprimindo as aspirações independentistas dos príncipes locais e as revoltas da população e acabaram por assumir o controlo da maior parte do território ocupado pela moderna Ucrânia. Em 1569, o Grão-Ducado da Lituânia e o Reino da Polónia uniram-se na Comunidade Polaco-Lituana, ou República das Duas Nações, uma potência que atingiu a sua máxima expressão territorial nos séculos XVI-XVII, ainda que sem conseguir assegurar o controlo do que são hoje as regiões leste e sul da Ucrânia, onde reinavam os cossacos e os tártaros.

A Comunidade Polaco-Lituana em 1619

Só no terceiro quartel do século XVIII é que o Império Russo começou a tomar conta da Ucrânia (ou melhor: do território que é hoje a Ucrânia), tirando partido da fragmentação da Comunidade Polaco-Lituana, iniciada em 1772 e consumada em 1795.

No século XIX, a Ucrânia viveu repartida entre o Império Austro-Húngaro, que detinha a sua parte ocidental – o Reino da Galícia, com capital em Lviv (Lemberg para os germanófonos) – e o Império Russo, que se assenhoreara da maior parte do território. As populações das duas partes da Ucrânia tiveram experiências diferentes durante esse período: enquanto os austro-húngaros concederam alguma autonomia aos habitantes da Galícia, na Ucrânia sob controlo russo a necessidade de impor a “narrativa” de que o território sempre fizera parte da Rússia e de que os ucranianos eram (e sempre tinham sido) russos determinou a tomada de duras medidas para a supressão da identidade nacional ucraniana, que começava então a ganhar forma e a reivindicar autonomia. O ensino da língua ucraniana foi proibido e o mesmo aconteceu com a impressão de livros, jornais e outras publicações em ucraniano, o que levou ao êxodo de muitos intelectuais para a parte da Ucrânia sob controlo austro-húngaro. A língua é um dos esteios da identidade nacional e o ucraniano atesta claramente o que distingue ucranianos de russos. Embora exista alguma inteligibilidade mútua entre as línguas ucraniana e russa, a primeira tem maiores afinidades vocabulares com o bielo-russo, o polaco, o sérvio e o eslovaco (por esta ordem), surgindo o russo apenas em 5.º lugar. Se se considerarem semelhanças fonéticas e gramaticais, o russo surge apenas em 13.º lugar na hierarquia de afinidades – e isto apesar dos mais de dois séculos que a Ucrânia passou sob domínio da Rússia/URSS e das políticas activas de “russificação” implementada durante esse período.

HISTÓRIA    CULTURA     GUERRA NA UCRÂNIA     UCRÂNIA     EUROPA     MUNDO     RÚSSIA»

COMENTÁRIOS; (de 14)

Ediberto Abreu: Os dois grandes nazis da história, o hitler e o putin, daqui a 100 anos deve aparecer o terceiro, é cíclico.           Pertinaz: A Rússia e o seu povo são odiosos desde tempos imemoriais… gente de má índole que sempre fez mal a quem os rodeia… não há que ter piedade nem contemplações com essa ditadura e com a escumalha de esquerda que a apoia…!!!              Nuno Borges: Moscovo pretendia anexar a Ucrânia em uma semana e avançar para o Canal e a Espanha. Agora está difícil descalçar a bota, especialmente porque tem os chins às costas como quis Kissinger.

Liberales Semper Erexitque: Dois anos sobre o início da agressão russa à Ucrânia, quais serão, por trás da cortina de fumo da propaganda, as verdadeiras motivações de Putin para se ter lançado – e persistir – nesta “aventura”? Que raio é isto? Veio directamente do ministro da propaganda da Ucrânia, ou foi escrito por um fascista indígena de serviço?

Nenhum comentário: