terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Evocações


Aproveito esta da avozinha para recordar o meu pai, que cantava ao som da sua viola:

«Animais e criaturas    Vivem todos com afinco    Não é precisa a fechadura      Fica a porta só no trinco…

«Na minha aldeia   Não há ódios mas estimas    Tem-se amor pela vida alheia     Tudo são primos e primas     Sem ambições cada qual seu pão granjeia     À noite há serões À luz da candeia»

Outra, que tem a ver com a designação avozinha – o termo em questão - reporta-se à “MADRINHA DO CARREGAL”, minha avozinha materna, e as suas afinidades com a citadina LILI CANEÇAS: nunca admitiu que a apelidassem com essa designação absurda de avó; madrinha com muita honra é como ficou para todos. A avó da minha prima Celeste ficou para sempre “mãe” , “Mãe Maria”, no Carregal também havia relutância, tal como em Cascais a respeito desse nome de velharia. Talvez por ser terra de lindas moçoilas, pelo menos as dos Brazes e dos Rebelos, “avó” sendo designação definitivamente passadiça, que a vida é bela, prolonguemo-la sem estereótipos.

Para mais, estamos no Carnaval, divertamo-nos com o episódio da evocação de JOSÉ DIOGO QUINTELA, que tem a ver com uma avozinha e a epístola que a tornou famosa na fala da neta, numa de famílias a que me associo neste Carnaval, lembrando o meu Carregal, sem documentos importantes à vista.

Sobressalto à vara 

A missiva que a avó poderia ter recebido, é uma formulação política para o argumento adolescente conhecido como “se a minha avó tivesse rodinhas era uma trotinete”.

JOSÉ DIOGO QUINTELA Colunista do Observador

OBSERVADOR, 13 fev. 2024, 00:207

A literatura epistolar tem uma grande tradição no nosso país. Desde a Carta de Pêro Vaz de Caminha a D. Manuel até às Cartas do Padre António Vieira. Porém, atrevo-me a arriscar que a mais conhecida obra deste género são as pungentes Cartas Portuguesas, que soror Mariana Alcoforado, uma freira portuguesa do séc. XVII, terá enviado ao seu apaixonado, o Marquês de Chamilly. Quer dizer, a mais conhecida obra deste género até agora. É que, desde a semana passada, a correspondência mais famosa da literatura portuguesa passou a ser a trocada entre a avó de Mariana Mortágua e o seu senhorio sobre o contrato de arrendamento.

Segundo a autora, trata-se de uma carta hipotética que a sua avó poderia, eventualmente, se tivessem sido reunidas determinadas condições que à partida não se punham, ter vindo a receber. Um cenário impossível cuja mera sugestão de possibilidade em abstracto foi suficiente para sobressaltar a idosa. Ou seja, na realidade nem se trata de literatura epistolar, mas sim de literatura epistoléria, na medida em que foi tudo uma grande treta e a tal carta nunca chegou. Se as cartas de amor são ridículas, as cartas de senhorios fantasiadas são o quê? Tema de crónica humorística, graças a Deus.

Em desespero de causa, há políticos conhecidos por jogarem a carta da família. No debate com Luís Montenegro, Mariana Mortágua sentiu-se ainda mais acossada e jogou a carta da carta da família. Não a censuro. Também já usei a minha avó como desculpa, inventando um aniversário para não ter feito os TPC. Mortágua não se preparou para o debate, teve de recorrer à avó. Fê-lo alegando a missiva que a avó poderia ter recebido, que é uma formulação política para o argumento adolescente conhecido como “se a minha avó tivesse rodinhas era uma trotinete”.

Percebo a intenção de Mortágua. Não estava a referir-se mesmo à sua avó, mas às avós portuguesas em geral. É como o Doce d’Avó dos restaurantes. Sabemos que não foi mesmo a avó do proprietário que esteve a triturar a bolacha Maria para misturar com o leite condensado. Não é preciso. Até porque isso não altera em nada o facto de a mistela ser demasiado enjoativa.

É um artifício retórico perfeitamente aceitável. Um arquétipo, como aquela recém-licenciada, engendrada pela IL, que tem de emigrar para fugir aos impostos. Ou o mandrião de perfeita saúde que arrebanha vários subsídios e não trabalha, criado pelo Chega. Ou o utente apontado nos comícios do PS, que tem a felicidade de ter casa barata, apanhar a urgência sempre aberta, de ter médico de família, o filho numa escola pública onde não chove e os professores não faltam, que só anda de autocarros que nunca se atrasam.

Como os outros partidos, o Bloco imaginou esta personagem. Podia ter corrido melhor, mas foi apanhada. Talvez tenha exagerado. Fugiu-lhe o pé para o clichênelo. Ainda esperei que Mariana Mortágua se justificasse com “a carta só não chegou porque a direita privatizou os CTT, que agora estão uma porcaria”, mas não foi capaz desse golpe de asa. Há a falácia do homem de palha, esta é a do farto de palha: Mortágua tomou-nos a todos por burros.

Mas não consigo levar-lhe isso a mal. Também uso o mesmo estratagema. A diferença é que invento personagens e atribuo-lhes comportamentos ridículos estereotipados, enquanto Mariana Mortágua inventa comportamentos odiosos estereotipados. É por isso que, enquanto contava a sua historinha (e nas vezes em que já veio explicar a aldrabice), se fartou de dizer que era uma lei cruel. Cruel, cruel, cruel.

Ora, uma lei cruel não é uma mera má lei, é uma lei má. É perfídia legislativa, feita de propósito para aleijar. Vejamos, quando se usa “cruel” para caracterizar alguma, normalmente é porque há malvadez associada. Por exemplo, D. Pedro I era “O Cruel”. Recebeu esse cognome pela forma como se vingou dos assassinos de Inês de Castro (mandando arrancar-lhes o coração e servindo um banquete ao mesmo tempo), mas também por outras marotices, que incluíram capar um escudeiro que lhe desagradou. E Cruella de Vil, que queria esfolar uma ninhada de dálmatas para fazer um casaco de peles? Já para não falar da personagem da canção “És cruel”, dos Ena Pá 2000, que meteu a sua filha num bordel e enforcou o seu caniche com cordel? Cruel não é ápodo que se use de ânimo leve. É a esta companhia malévola que Mariana Mortágua junta o PSD e o CDS. D. Pedro e os algozes, Cruella e os cachorrinhos, Manuel João Vieira e o caniche, Montenegro e os velhos. Todos sinistros torcionários.

Montenegro e a AD não são adversários, são inimigos. Representam o Mal e o Bloco não está a disputar eleições com ele, está a combatê-lo para salvar Portugal. O que levanta a questão: se é esse o caso, não estarão a fazer pouco? Quer dizer, estamos perante a maldade em estado puro, perante a destruição iminente de tudo o que é bom e justo e belo, e o que é que o Bloco anda a fazer? A anunciar medidinhas nos salários? Restrições no alojamento local? Dedicação exclusiva no SNS? Isso é tudo muito lindo, mas ao pé dos enviados de Satanás são bagatelas. É como se Luke Skywalker e Han Solo, em vez de se concentrarem em destruir a Estrela da Morte, andassem entretidos a fazer arruadas em Tatooine ou a prometer aumentos de 3% nas pensões dos Ewoks. Para combater o mal, basta combater o mal. E evitar dispersar energia com outras lutinhas. Não se percebe a atitude do BE.

A não ser que, como a carta, a “crueldade” também seja aldrabice. Confesso que dessa não estava à espera.

MARIANA MORTÁGUA         POLÍTICA

 COMENTÁRIOS (de 24):

GUSTAVO LOPES Texto assombroso!!! Se havia dúvidas sobre quem era o número 1 no escárnio a nível Nacional, hoje elas desapareceram!!! Obrigado, Caro ZDQ!!! Continue com esta sua capacidade cirúrgica de análise da realidade, para nos fazer sorrir com aquilo que nos devia fazer bradar aos céus!!! Grande abraço. JOHN MARTINS: Ainda bem que esta humorística crónica saiu depois da tirada da Mariana. Senão os estragos teriam sido maiores e com algum requinte. De qualquer modo, quando a jornalista lhe perguntou de chofre, se estava preocupada por perder o grupo parlamentar nos Açores...ela andou alí aos papéis até se recompor, até que encontrou a estorieta da avó...e lá se safou. Ainda hoje andamos a falar nas avós, mesmo que não tenham recebido carta nenhuma do senhorio...               Fernando Cascais: Fantástico, uma crónica cruel para Mariana Mortágua. Lembrei-me agora do Don’t BE Cruel, uma canção do Che Guevara onde suplicava para não tratarem mal o verdadeiro coração das avós. Mas, avós há muitas, e Mortágua como boa representante do povo trabalhador deve ter muitas que vão morrendo na medida que vão sendo utilizadas para justificarem as faltas ao serviço, deixando, obviamente, o patrão cruel desconfiado e a perguntar: Patrão cruel: - Epá, mas afinal quantos avós é que você tem? Já vai no sétimo funeral do seu avô nestes últimos dois anos. Funeralista de avós: - tenho 4 originais e 12 por afinidade devido aos diversos casamentos que entretanto os meus pais vieram a ter depois de se divorciarem; a minha mãe um e o meu pai dois, só que, entretanto, os meus padrastos também se divorciaram e voltaram a casar e eu adoptei os avós dos cônjuges dos meus padrastos e madrastas totalizando assim 12 avós extra. É por isso que se diz que avós há muitos e Mortágua não especificou bem o avô e é importante não esquecer que o seu pai Camilo (para não haver dúvidas) foi embarcadiço. Além disso com a maior longevidade dos portugueses hoje em dia, aqui por Cascais já não usamos apenas o termo tia para identificar os pais dos nossos amigos, usamos também a palavra avô carinhosamente. Se eu for até à Boca do Inferno beber um chá de limão e gengibre com o filho do Salgado a casa do pai, vou cumprimentá-lo com um respeitoso avô Ricardo. O mesmo se passa com a Lili Caneças quando a encontro na Sacolinha a comer um pastel de nata e a cumprimento simpaticamente: - Olá avó Lili Caneças, como tem passado. Ao que ela responde: - Aí que horror, não me trate por avó, ainda vão pensar que é verdade… sinceramente Fernando.

bento guerra: Uma peça digna de Terça-feira de Carnaval. Que não é o  "dos animais" como o  de Saint -Saens, mas das Mortáguas. Até às lágrimas.. Ainda bem que esta humorística crónica saiu depois da tirada da Mariana. Senão os estragos teriam sido maiores e com algum requinte. De qualquer modo, quando a jornalista lhe perguntou de chofre, se estava preocupada por perder o grupo parlamentar nos Açores...ela andou alí aos papeis até se recompor, até que encontrou a estorieta da avó...e lá se safou. Ainda hoje andamos a falar nas avós, mesmo que não tenham recebido carta nehuma do senhorio...

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