Para mais uma lição de História. Americana. E o prazer dessa leitura,
enquanto se olha com mais ou menos desconfiança para o próximo agente de
investida relevante no Mundo.
Da Democracia na América
Os analistas mais sérios e mais
preocupados com a verdade e o rigor histórico preferem esquecer Hitler e comparar os princípios políticos e o estilo
de Trump aos do Andrew Jackson.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 04 jan. 2025, 00:2025
Há um novo conceito em democracia, o
conceito de “erosão democrática”. A “erosão democrática” acontece quando o povo, a comunidade dos
cidadãos, escolhe candidatos ou partidos “iliberais”, de “extrema-direita” ou
simplesmente “pouco progressistas”. Para
impedir a “erosão
democrática”
aconselham-se e aplaudem-se medidas – que poderíamos considerar “iliberais” se não visassem promover a “verdadeira democracia” – de proibição da livre expressão de pensamento
(mediante o franco uso do rótulo “discurso de ódio” para o pensamento divergente) ou mesmo a anulação de resultados eleitorais
inconvenientes – como há bem pouco tempo na Roménia.
Da mesma forma, quando a vontade popular pende para os partidos
nacionalistas, como nos Estados Unidos, em França, na Itália, na Hungria e,
quem sabe, em Fevereiro, na Alemanha, amaldiçoam-se o “populismo”, as redes
sociais e todas as más influências que extraviam o voto do bom e inocente povo
e causam a célebre “erosão democrática”.
Andrew Jackson, o populista
O grande agente de “erosão democrática” é, evidentemente, o iliberal populista de extrema-direita
para-hitleriana Donald J.
Trump. Os
analistas mais sérios e mais preocupados com a verdade e o rigor histórico preferem
esquecer Hitler e comparar os princípios
políticos e o estilo de Trump aos do Andrew
Jackson, sétimo presidente americano, presidente em 1829-1837.
Jackson é considerado o pai do nacional-populismo
americano, um líder que marcou os grandes objectivos da marcha para Oeste e a
identidade nacional americana como uma identidade de fronteira. As
biografias de um e de outro são bem diferentes. Enquanto Donald
Trump é filho de
pai rico, empresário do imobiliário nova-iorquino e estrela de reality shows,
Jackson é filho de
imigrantes pobres, da “tribo” Scott-Ulster, que povoou os Apalaches.
Nasceu
em 1767, na América colonial, e na guerra da independência foi
feito prisioneiro pelos ingleses aos 13 anos, com o irmão Robert. Quando um oficial inglês quis obrigá-lo a
engraxar-lhe as botas e Jackson se recusou a fazê-lo, o inglês deu-lhe com a espada
na cara, deixando-o marcado para a vida.
De
grande estatura, olho azul e cabelo ruivo, Jackson, aos 17 anos, já na América
independente, meteu-se a estudar Direito em Salisbury na Carolina do Norte. Era
um estudante trabalhador que, ainda assim, conseguia arranjar tempo para vida
boémia estoirando, rapidamente, a pequena herança que lhe fora deixada pelo avô
irlandês.
Tornou-se advogado e foi nomeado
procurador da República em Nashville, na fronteira oeste do Tennessee.
Juntou-se com Rachel Robards, uma mulher casada da sociedade local, e fez por
aí carreira política. Foi eleito
representante e depois senador do novo Estado; mais tarde foi juiz do Supremo
Tribunal do Tennessee.
Mas o sucesso da sua carreira política
vai devê-lo ao seu carisma como chefe militar, na qualidade de Comandante da Milícia do Tennessee, na
segunda guerra com os Ingleses, em 1812-1815. Jackson comandou
as tropas na batalha de New
Orleans, decisiva para a paz e para a vitória americana; e em
1817-1818, foi ele quem esteve à frente da expedição que levou à anexação da Flórida.
Detestava os ingleses, que culpava
pela morte da mãe e dos irmãos. Em 1824 candidata-se às
eleições presidenciais e sai vencedor no sufrágio popular, mas sem maioria
absoluta no colégio eleitoral. Perante esta
situação, e seguindo a Constituição, o Presidente passava a ser eleito pelo
Congresso, onde cada um dos 24 Estados tinha um voto. E aí, houve um acordo
secreto entre John Quincy Adams (que ficara a seguir a Jackson no voto popular
e no colégio eleitoral) e Henry Clay, para evitar a “erosão democrática”. Adams
teve 13 votos dos 24, o que lhe deu a maioria absoluta no Congresso e a vitória
na eleição. E nomeou Clay Secretário de Estado naquilo a que Jackson chamaria “the corrupt bargain”.
Em 1824, dos 10 milhões de americanos, votavam
menos de meio milhão; as mulheres, os índios, os escravos, não votavam, e dos
homens brancos votavam apenas os proprietários com mais de 21 anos. Só o
Vermont, o New Hampshire e o Kentucky faziam excepção a esta regra.
Porém, em 1828, a maioria dos Estados já dava direito de voto aos
brancos maiores de 21 anos, incluindo não-proprietários e a alguns negros
livres e proprietários. Votavam agora o triplo dos eleitores. E Jackson ganhou a eleição.
Eleito presidente, sacralizou um conceito quase rousseauniano de
vontade geral do povo, o legítimo representante da soberania da nação, e do
Presidente como e intérprete da vontade popular. A sua presidência foi marcada pelo populismo
e pelo nativismo identitários que, ao modo do tempo, excluíam do povo
os índios e os escravos. O Indian
Removal Act, de 1830 ordenou a deportação de tribos índias para Oeste, deixando
as terras melhores para os colonos. E muitos índios morreram nesse “Trilho das
Lágrimas”.
Outros tempos, outros modos …
Hoje o identitarismo jacksoniano traduz-se diferentemente: o “racista e supremacista branco Donald
Trump” passou de 8% do voto afro-americano em 2016, para 13% em 2020 e para 20%
em 2024, o que foi decisivo no swing States, especialmente no Wisconsin. O mesmo
se passou com os latinos: em 2016
Trump recebeu 28% do voto latino, em 2020 32% e em 2024 45% (sendo que, como
não podia deixar de ser, entre os “machos latinos” a cota de Trump seria ainda
mais alta – 54%).
No
tempo de Andrew Jackson o
populismo excluía explicitamente do povo os escravos, os índios e as mulheres.
As mulheres não tinham direitos políticos, os índios eram escorraçados das suas
terras e os escravos negros não tinham direitos civis nem políticos.
Era uma herança dos Founding
Fathers,
que seriam, em terminologia
marxista, “grandes agrários” e escravocratas (ao contrário de Jackson, que era
filho de imigrantes pobres e de outra condição). Mas os Founding Fathers
podiam ser proprietários de plantações na Virgínia e podiam ter escravos, mas
não deixavam de ser os libertadores do povo americano do “colonialismo inglês”
e os pioneiros das revoluções constitucionais.
Entre
os pais fundadores havia uns “mais à esquerda”, como Thomas
Jefferson, que gostariam de alargar a participação popular; e
outros “mais à extrema-direita”, como Alexander Hamilton e James Madison, que
achavam que, em algumas constituições estaduais, já se tinha ido longe demais
no alargamento do direito de voto e que se justificaria alguma “erosão
democrática”.
Era o caso de New Jersey que, no artigo 4.º da Constituição, dava
direito de voto a todos os maiores de 21 anos que tivessem de seu o equivalente
a 50 libras, independentemente do sexo ou da cor da pele. A benesse
acabaria em 1807 e o voto voltaria tranquilamente ao recato do clube exclusivo
dos “white male citizens”. Só em 1870, depois da Guerra Civil, passariam os
homens negros americanos a ser, por lei, cidadãos de pleno direito. As
mulheres, independentemente da cor da pele e do pé de meia, teriam de esperar
por 1920 para poderem votar.
Jefferson, o mais à esquerda destes Founding
Fathers, tinha para cima de uma centena de escravos na sua propriedade de
Monticello – cozinheiros, pedreiros, sapateiros, carpinteiros. Era
um homem rico, cultíssimo, grande aficcionado de livros e viagens, que deixou
recordações e marcas inesquecíveis em todos os que o conheceram. É
ele o autor, com Benjamin Franklin,
da famosa frase da Declaração da
Independência: “Todos os homens são criados iguais, dotados pelo
Criador de certos Direitos inalienáveis, entre eles a Vida, a Liberdade e a
procura da Felicidade”
George Washington, no seu testamento de 1799, dispôs que os escravos
que tinha em Mount Vernon fossem libertados. Eram 123 e foram emancipados no
dia 1 de Janeiro de 1801. Os doentes e os velhos que não pudessem trabalhar
seriam sustentados pela herança.
Jefferson não deixou
quaisquer disposições sobre a libertação dos seus escravos, sobre aqueles que,
tendo sido criados iguais, tinham sido captivados… e assim permaneceriam, ao
serviço da sua família. Já contribuíra suficientemente para o combate à “erosão
democrática” com uma frase viral. Era esse o seu testamento e não
precisava de outro.
ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA MUNDO DEMOCRACIA
SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 25)
Manuel Gonçalves: Nem um devoto de Trump consegue invocar a sua
qualidade pessoal e tem de recuar quase duzentos anos para tentar justificar o
seu comportamento político, o que é uma confissão pública do seu trogloditismo. Faz lembrar o argumento frequente de que Trump
não é perigoso porque as instituições americanas são fortes, ou seja tem de ser
travado por alguém bem mais válido do que ele - edificante.! Já começamos a
ver o resultado do extremão - multi “bi e tri” lionários no governo, a
beneficiarem de valorizações artificiais em bolsa e servirem-se do aparelho de
Estado como quiserem, bem como a intervirem em áreas políticas que nem sequer
são as que lhe foram atribuídas; desrespeito pelas fronteiras e soberania dos
estados com quem os EUA tem alianças; governo formado por zelotas de tv, que
têm como único atributo a sua devoção ao caudilho - enfim
ainda nem começou e já é um faroeste, como o autor gentilmente nos recorda. Mas
vai piorar, muito!
Manuel Lisboa: Interessante:
a necessidade de dar alguma respeitabilidade ao execrável presidente eleito
norte-americano inspira uma série de comparações abusivas. Andrew Jackson
nada tem a ver com o empreiteiro (várias vezes falido), que ganhou as últimas
eleições presidenciais nos Estados Unidos da América; e classificar Thomas
Jefferson, que morreu em 1826, de esquerda e outros políticos seus contemporâneos
de direita ou extrema-direita não faz qualquer sentido. Há cerca de duzentos
anos conceitos e a luta política eram muito diferentes. É francamente mau gosto
recordar os chamados "pais fundadores/founding fathers" dos Estados
Unidos a propósito do recém-eleito condenado por aldrabice fiscal. E depois
como o articulista bem sabe a História nunca se repete, sendo, contudo, sempre
fácil encontrar aparentes similitudes entre diferentes épocas ou
individualidades. Haja decoro. Fernando
ce: Lição de
Historia e Ciência Política. Sempre muito a aprender para além da leitura
própria do Autor. Bom ano novo. Rui Lima: Não será só no crescimento económico que os
USA se separam da Europa talvez lá haja liberdade para os activistas que
contestam a sociedade multicultural/woke , na Europa eles são alvo de repetidas
perseguições legais , sob muitos falsos pretextos, que de muitas maneiras
fazem pensar no destino dos dissidentes soviéticos. Tim do A: Excelente artigo, como sempre. Jorge Carvalho: Obrigado JNP Luís Rodrigues: Alguns
comentadores criticam as referências a Trump com qualificativos como
"execrável" ou "troglodita". Não estiveram com atenção ao
que se passou nos Estados Unidos nos últimos oito anos nem compreenderam o
resultado da última eleição. José B
Dias > Manuel Gonçalves: Olhe que tresleu ... José Luis
Salema: Muito obrigado Jaime Nogueira Pinto! Quanto mais não seja para ver estes energumenos a
salivarem pelos entrefolhos... E são tantos! Esta maltosa não vê um palmo à frente da penca. Xiça!
E não se vê o dia em que desapareçam.
L Faria: É
significativo ler por aqui o ódio a Donald Trump e a falta de vergonha em falar
do pior presidente e vide presidente que a América já conheceu. Biden é
Kamala, acusam Trump de fascista, nazista e racista. Mas quem teve
comportamentos fascistas, nazistas e racistas foram exactamente os eruditos
representantes do partido democrata. Ajudados naturalmente pela mais
repugnante e militante imprensa de sempre. Quem tentou eliminar o
opositor político? Seja fisicamente seja pela politização do sistema judicial?
Trump? Deram-se conta das palavras miseráveis, vergonhosas da procuradora geral
do estado de nova york após as eleições? Ninguém deu um pio perante tamanha
canalhicee. É a esquerda que é fascista, mas ninguém tem coragem de denunciar
isto. Talvez Dinash de Souza. Um emigrante indiano nos Estados Unidos.
Vejam quem é e o que ele diz. Depois digam quem são os fascistas.
José B Dias: Para impedir a “erosão democrática” aconselham-se
e aplaudem-se medidas – que poderíamos considerar “iliberais” se não visassem
promover a “verdadeira democracia” – de proibição da livre expressão de
pensamento (mediante o franco uso do rótulo “discurso de ódio” para o
pensamento divergente) ou mesmo a anulação de resultados eleitorais
inconvenientes – como há bem pouco tempo na Roménia. O que, estranhamente, é encarada pela maioria das
populações europeias com uma leveza que não augura nada de bom!