Como “história de encantar”, o “herói” de
quem se fala, que não se enquadra na “Receita”
(que repito) de Reinaldo Ferreira – pelo menos no seu final, já que bem vivinho
da costa sempre - a passear esplendorosamente a sua “certeza aguda” que implica
a morte alheia – dos seus e dos outros, jamais a sua, naturalmente, recatadamente
em ledo e sagaz sossego, sem “engano d’alma”, contudo, e para mais de “Fortuna”
prolongada, no espaço e no tempo, hélas!:
«Receita para fazer um herói»
«Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.
Serve-se morto.» (Reinaldo
Ferreira)
AFP VIA GETTY
IMAGES
A mentalidade do KGB, o 'Gang do
Dinheiro' e a receita para lidar com os traidores. A história de "Um
Espião no Kremlin"
O último podcast do Observador conta o plano escondido de Vladimir Putin.
Um plano que se construiu peça a peça, do KGB à Ucrânia. Esta é a história de
uma série para ouvir em seis episódios.
OBSERVADOR, 12
ago. 2023, 23:221
Índice
O “livro de instruções” da guerra na Chechénia que
inspirou a invasão da Ucrânia
Como lidar com um “Ganso” e outros traidores
Do “Gang do Dinheiro” à namorada secreta
O espelho que reflectia o que o Ocidente queria ver
O “clube de combate” em que se transformou o Kremlin
É 1968 e um adolescente de 16 anos entra na sede do KGB em
Leningrado.
Os amigos chamam-lhe “Volodya”. Passou os
últimos meses a ver o recém-estreado
filme“O Escudo e a Espada”, um épico à antiga, com mais de cinco
horas, baseado num livro de propaganda soviética. O filme conta a história do major
Aleksandr Belov, agente secreto soviético infiltrado nas SS da Alemanha Nazi, e
tornou-se de imediato o filme mais popular do ano.
“Volodya” é Vladimir Putin. Na altura, está obcecado com a ideia de ser
um espião, como contou na biografia
oficial First Person: An
Astonishingly Frank Self-Portrait by Russia’s President. “Os livros
e filmes de espiões como ‘O Escudo e a Espada’ captaram a minha imaginação”,
disse. “Aquilo que me impressionava mais era como o esforço de um único homem
conseguia alcançar aquilo que exércitos inteiros não conseguiam. Um espião podia decidir o futuro de
milhares de pessoas. Pelo menos era assim que eu pensava.”
Na sede do KGB, dizem-lhe que ali não são
aceites voluntários: é preciso ser escolhido. E é preciso ter um curso
superior. “Qual?”, pergunta Vladimir. Sugerem-lhe que vá para Direito.
É isso que faz. Dois anos depois, Vladimir Putin entra no curso de Direito
na Universidade de Leningrado. Quando
finalmente o convite para o KGB chega, no quarto ano, Vladimir leva um amigo de
infância a jantar. Vão a um restaurante georgiano perto da catedral de Kazan,
onde comem frango com molho de noz. Putin manda vir para a
mesa shots de uma bebida doce. Mas nunca lhe diz o que estão
realmente a celebrar.
Vladimir Putin sonhava tornar-se num
espião e conseguiu. E a formação
na polícia secreta do Kremlin moldaria para sempre o homem que se veio a tornar
Presidente da Rússia, como explicou ao Observador Andrei Soldatov, jornalista
russo especializado nos serviços secretos do país: “É uma
mentalidade. Os oficiais do KGB são ensinados a ver o mundo com base em
ameaças. É isso para tudo”, explica o autor de The New Nobility: The Restoration of Russia’s Security
State and the Enduring Legacy of the KGB.
“É a maneira como eles pensam e tem
origem num sentimento profundo de insegurança que é partilhado por muitos no
KGB”, acrescenta.
Soldatov é um de mais de uma dezena de entrevistados com quem o Observador falou, na maioria russos,
para conhecer melhor o percurso e a mentalidade de Vladimir Putin — o homem que
foi do KGB ao Kremlin, até à invasão da Ucrânia, construindo uma teia de poder
e guerra que passou despercebida a muitos.
O “livro de instruções” da guerra na
Chechénia que inspirou a invasão da Ucrânia
A
chegada de Vladimir Putin ao poder assentou em vários fatores, mas houve um que
se tornou determinante: a guerra.
Uma
série de atentados, com bombas colocadas em caves de prédios por toda a Rússia,
deu a justificação perfeita ao governo russo para uma nova guerra na Chechénia,
depois da primeira derrota russa no início da década de 90. O
Presidente Ieltsin, doente devido ao alcoolismo, dá ao primeiro-ministro Putin
poder absoluto.
▲As imagens
de Putin na Chechénia foram decisivas para o ajudar a vencer a eleição
presidencial POOL/AFP VIA GETTY IMAGES
Os relatos que vão chegando são
aterradores, com a artilharia do exército russo a arrasar todos os edifícios.
Os civis vivem fechados nos abrigos e caves, dia e noite. Os hospitais são
bombardeados como se fossem edifícios militares. E quando os soldados russos
ocupam aldeias, o rasto de morte que deixam pelo caminho é visível: violações,
tortura, decapitações. A fazer lembrar o que acontece agora na Ucrânia.
A outra semelhança está na terminologia. Oficialmente,
a intervenção na Chechénia
é uma “operação especial” contra os separatistas. Sim, “operação
especial” — tal e qual como na Ucrânia.
Rolf Mowatt-Larssen era o chefe da
CIA na estação de Moscovo à altura. Ao Observador, explica o
que liga aquela operação especial à invasão da Ucrânia: “A
Segunda Guerra da Chechénia foi verdadeiramente implacável. Mas tornou-se uma
espécie de livro de instruções que ele escreveu sobre como lidar com os
conflitos, também fora da Rússia, como a da Geórgia, da Síria e
da Ucrânia.” Rolf Mowatt-Larssen,
chefe da CIA em Moscovo no início da década de 2000
Com
a saída de Boris Ieltsin, Putin tem caminho aberto para as eleições
presidenciais de 2000. E a guerra na Chechénia funcionou como instrumento perfeito
para a campanha eleitoral, com Putin a abrir todos os dias os telejornais:
Putin a sair de um helicóptero com roupas de estilo militar. Putin no funeral
de um soldado, de ar consternado. Putin a brindar com os comandantes no teatro
de guerra. E discursos, muitos discursos.
Na noite eleitoral, quando Vladimir
Putin vence à primeira volta sem dificuldades, o Presidente eleito já não
atende o telefone ao antecessor.
Como lidar com um “Ganso” e outros
traidores
Numa manhã quente de julho desse
mesmo ano, 30 homens são recebidos num dos salões do palácio do Kremlin.
Sentados naquela longa mesa corrida estão os empresários mais ricos do país —
os oligarcas que fizeram fortuna nos anos anteriores.
O
chá ainda está quente no serviço de porcelana do Palácio quando o Presidente
começa a falar. Explica que, a partir de agora, há novas regras. Os empresários
não devem envolver-se na política. Se o pedido for respeitado, os oligarcas
poderão continuar a tratar dos seus negócios e a acumular fortuna
tranquilamente. Calmo e sorridente,Putin deixa implícito que, se tentarem
influenciar o poder, vão sofrer as consequências.
▲ Depois de
suceder a Boris Ieltsin (à direita), Putin já não atendeu o telefone ao
ex-Presidente ULLSTEIN BILD VIA GETTY IMAGES
Os empresários ficam visivelmente
desconfortáveis. Mexem-se nas cadeiras, trocam olhares. A maioria vai acabar
por aceitar o ultimato. Três homens, porém, vão desafiá-lo. E os
três vão descobrir o que acontece a quem desafia o Presidente.
Os três oligarcas são Vladimir Gusinsky,
conhecido como “O Ganso”, Boris Berezovsky e Mikhail Khodorkovsky. Gusinsky e Berezovsky usam as
suas televisões privadas para criticar as acções de Putin, em particular na reacção
ao acidente do submarino Kursk.
O Kremlin abre processos judiciais contra ambos e os dois acabam no exílio, em
Espanha e no Reino Unido, respectivamente.
▲Vladimir
Gusinsky, Boris Berezovsky e Mikhail Khodorkovsky foram os três empresários
perseguidos no início da presidência de Putin GETTY IMAGES
Uma estratégia que resultou. Porquê?
Vladimir Milov, antigo
vice-ministro da Energia de Putin no primeiro mandato, explica ao Observador
porquê: “Putin
explorou muito habilmente o desprezo que havia pelos oligarcas”, conta. “Muitas
pessoas, incluindo eu e os meus colegas, desprezávamos os oligarcas. Ninguém
gostava de Berezovsky, ninguém gostava de Gusinsky.”
Mas o terceiro caso de um
oligarca perseguido pela Justiça na Rússia provocou um abalo maior. Mikhail
Khodorkovsky não tinha
nenhum canal de televisão por onde atacar o Presidente. Em vez disso,
financiava a oposição e emitia algumas críticas públicas. Em outubro de 2003, o
avião privado onde viajava para a Sibéria foi intercetado pelo FSB (antigo
KGB). Khodorkovsky — à altura o homem mais rico da Rússia — foi retirado do
avião com algemas nos pulsos.
“Foi chocante. E foi um ponto de
viragem, trouxe uma atmosfera diferente. Na altura da detenção de Khodorkovsky, era impossível imaginar que ele
seria detido e era impossível imaginar que ele ia passar anos na prisão”,
analisa ao Observador Sergei Guriev, economista e antigo consultor do Kremlin
que hoje está próximo da oposição a Putin.
“Gusinsky
foi detido e libertado ao fim de uma
semana; e depois Putin chateou-se com Berezovsky, mas não o pôs na prisão. Por isso, foi completamente
diferente. E quando Khodorkovsky
recebeu como pena anos de prisão, tornou-se
óbvio que as regras do jogo tinham mudado.”
O
próprio Presidente tinha explicado a sua forma de pensar a um jornalista russo
no passado: “Um traidor é um homem que está sempre por perto, mas, no momento
em que acha que estamos fracos, esfaqueia-nos pelas costas. Para eles não pode
haver misericórdia.”
Do “Gang do Dinheiro” à namorada secreta
A vida pública de Vladimir Putin dá muitas pistas sobre
como o caminho acabaria na actual guerra da Ucrânia, mas não é o único tema
sobre o qual se debruça o novo podcast do Observador. Esta série, para ouvir em
seis episódios, conta também como as relações pessoais do Presidente russo fazem
parte de um plano para consolidar o poder.
A começar pelos amigos mais próximos,
que cumprem uma função maior para lá de fazer companhia a Putin, nos serões
recheados de música clássica (mas também de baladas) que frequentam.
Olesya Shmagun é jornalista russa e uma das autoras dos artigos
baseados nos Panama Papers, o conjunto de documentos confidenciais que revelou
ligações de vários líderes mundiais a contas offshore, em 2016.
Ao Observador, afirmou não ter
dúvidas de que alguns homens são “testas-de-ferro” de Putin, guardando-lhe
parte da fortuna. “Há tantas provas circunstanciais que penso que podemos dizer
com segurança que Putin é um dos homens mais ricos do mundo. Pessoalmente,
acredito nisto”, disse.
Chamámos-lhes, por isso, o “Gang do
Dinheiro”. Do qual fazem parte homens como “O Judoca”, “O Talhante” e “O
Banqueiro”. Bem como “O Jóquer”, cujo nome verdadeiro é mais reconhecível por
todos: Roman Abramovich.
▲A
ginasta Alina Kabaeva é a atual companheira de Vladimir Putin
E
o dinheiro também se interliga com as relações pessoais do Presidente noutro
campo para lá da amizade. Como o das mulheres actuais e passadas da sua vida,
que acumulam fortunas em imóveis — é o caso da actual namorada, a ginasta Alina
Kabaeva, e a mãe desta.
Algo
que se tornou público graças aos esforços de jornalistas como Roman
Badanin, que explica por que razão Putin quer
tanto manter a sua família em segredo: “Quem é a sua namorada? Ele não quer que
essa informação se saiba. Porque o faz parecer muito humano, muito banal, muito
semelhante a um homem normal.”
O espelho que reflectia o que o
Ocidente queria ver
Primeiro foram apenas umas
notas tímidas, por vezes
incertas, ao piano, que deixavam antever a canção. Mas a banda quer mais: quer
que aquele homem cante. Ele ensaia uma expressão de surpresa no rosto, mas
acede ao pedido: levanta-se e dirige-se até ao microfone, no centro do palco.
A mão direita de Putin agarra o
microfone com firmeza, a mão esquerda repousa no bolso das calças. Está de fato
preto e camisa branca mas sem gravata, botão de cima desabotoado, numa postura
claramente descontraída. Putin começa a cantar em inglês.
Estamos num evento solidário, em 2010. A Guerra na Geórgia, dois
anos antes, em nada tinha afectado a imagem internacional de Putin. Há sorrisos
e aplausos na audiência perante a actuação deste cantor inesperado. Mas não são rostos anónimos que ali estão, muito
pelo contrário. Vemos Sharon Stone, Kevin
Costner, Goldie Hawn, Kurt Russell… Parecia que, naquela noite, Hollywood
estava em peso em São Petersburgo.
A
audiência vai perdendo a timidez: bate agora palmas em conjunto, para marcar o
ritmo da canção. Putin entusiasma-se: liberta o microfone do tripé, leva a
mão esquerda ao coração. A actuação termina com o aplauso da plateia.
À
distância de mais de dez anos, tudo isto parece agora bizarro. Mas, na altura,
o charme de Putin conquistava ainda o Ocidente. O mesmo charme que tinha levado
o Presidente norte-americano, George W. Bush, a garantir que tinha olhado nos
olhos do russo e tinha “visto a sua alma”.
▲O Presidente
norte-americano George W. Bush disse ter visto "a alma" de Putin
quando se encontrou com ele pela primeira vez GETTY IMAGES
É certo que nos primeiros anos da presidência de Putin, as relações
com os EUA e com a Europa pareciam excelentes. O Presidente russo foi o
primeiro chefe de Estado a ligar a Bush após o 11 de setembro. E, dias depois,
esteve no Parlamento alemão a garantir que a Guerra Fria tinha acabado.
Nos
encontros com os líderes ocidentais, convencia-os de que estavam todos do mesmo
lado. “À altura, aquilo que ele mais queria era projectar
a ideia de competência. E dizia aquilo que queríamos ouvir. Os empresários
ocidentais falavam com ele e ficavam com a ideia de que era alguém focado na
economia, educado, pragmático, ocidentalizado”, resume o economista Sergei Guriev, que esteve em várias reuniões no
Kremlin na altura. Como um espelho, que reflectia o que os outros queriam ver.
Mas havia uma dissimulação, que Putin
foi trabalhando. Ao mesmo
tempo, queixava-se do avanço da NATO a leste. As revoluções coloridas na Ucrânia e na Geórgia, apoiadas
pelo Ocidente, preocupavam-no.
E o Presidente russo começou
lentamente a mudar a sua política externa, como explicou ao Observador Alexander Rahr,
biógrafo alemão de Putin e actual consultor da Gazprom
para os Assuntos Europeus.
“Os europeus decidiram, sob o
auspício dos Estados Unidos, que o futuro da Europa do século XXI devia ser
construído sobre dois pilares: a NATO e a União Europeia. E é claro que a
Rússia, que não podia ser membro de nenhuma delas, começou a perceber, de forma
frustrada e humilhada, que ninguém lhe queria dar um lugar na Europa como
grande potência. E Putin começou então um jogo político completamente
diferente: restaurar a grandeza da Rússia à força.”
“À altura, aquilo que ele mais queria era
projectar a ideia de competência. E dizia aquilo que queríamos ouvir. Os
empresários ocidentais falavam com ele e ficavam com a ideia de que era alguém
focado na economia, educado, pragmático, ocidentalizado.” Sergei Guriev, antigo
consultor económico do Kremlin
Quando os protestos pró-ocidentais
eclodiram na praça Maidan, em Kiev, Putin decidiu o passo seguinte numa reunião
com apenas quatro outras pessoas: anexar a Crimeia, recorrendo, uma vez
mais, à duplicidade. Os
“homenzinhos de verde” que invadiram a península em 2014 não traziam insígnias
nas fardas e passaram-se semanas até Putin admitir que eram tropas russas. Quando
isso aconteceu, o referendo à anexação já estava em marcha.
O “clube
de combate” em que se transformou o Kremlin
Todos os passos em direcção à
consolidação do poder foram sendo dados, pouco a pouco, por Putin. Incluindo o
recurso à violência.
A 1 de novembro de 2006, dois agentes
do FSB encontraram-se com o antigo colega, Alexander Litvinenko, no bar do
Hotel Millenium. Ao longo dos
20 minutos que durou o encontro, vão pedindo várias bebidas: três chás, três
gins tónicos e um cocktail de champanhe. Compraram também um charuto cubano.
A mulher e o filho de um dos agentes
apareceram para o ir buscar. Este apresenta a criança, de oito anos, a Litvinenko. “Este é o
tio Sasha, aperta a mão dele”, ordena o pai, antes de se despedir e sair porta
fora.
O
que Litvinenko não sabe é que, antes de ter chegado, os dois homens colocaram
no chá uma pequena quantidade de uma substância rara: polónio-210. “Um veneno
muito caro”, descreverá uns dias depois um dos agentes que
executaram a operação, numa conversa com um amigo.
“Conseguimos ver como ele adora os mecanismos
extrajudiciais. Para quê recorrer à chatice dos tribunais? Se desaparecer a
pessoa, desaparece o problema. Uma fórmula clássica.”
Vladimir Milov, ex-ministro da Energia de Vladimir
Putin
Alexander Litvinenko passará as duas semanas seguintes no hospital, em
sofrimento. Definha perante o olhar da mulher e dos amigos, com o cabelo a
cair-lhe aos bocados até ficar totalmente careca. Dois dias antes de morrer,
dita uma mensagem na cama do hospital: “Pode ter sido bem sucedido em silenciar
um homem. Mas, senhor Putin, um coro de protestos de todo o mundo vai ecoar nos
seus ouvidos para o resto da vida.”
O Kremlin sempre negou o
envenenamento de Litvinenko, mas uma comissão independente do governo britânico
viria a responsabilizá-lo dez anos mais tarde.
Para além da autorização superior
necessária para obter o polónio-210, há quem aponte outros factores, como o
ex-ministro Vladimir Milov: “Há
provas suficientes que mostram como Putin encara o homicídio de forma leviana.
Não tem limitações morais, não valoriza a vida humana”, diz.
“Conseguimos ver como ele adora os mecanismos extrajudiciais. Para quê recorrer
à chatice dos tribunais? Se desaparecer a pessoa, desaparece o problema. Uma
fórmula clássica.”
E se a fórmula falhar, é sempre possível
voltar aos métodos antigos.
▲Alexander
Litvinenko e Alexei Navalny, ambos opositores de Putin, foram envenenados
GETTY IMAGES
Foi
o que aconteceu com Alexei Navalny.
O político mais bem sucedido da oposição russa foi envenenado com o agente
nervoso Novichok em 2020, mas sobreviveu. Os detalhes da sua tentativa de
homicídio foram obtidos pelo próprio, num
telefonema com um dos homens que o tentaram matar.
Navalny
fez-se passar por um superior do espião e conseguiu revelações surpreendentes. O agente
admitiu que a operação em que esteve envolvido não correu bem: “Talvez se eles
tivessem ficado mais tempo no ar…”, justificou-se, achando que estava a falar
com um chefe.
E contou tudo o que fizeram: entraram no
hotel onde Navalny estava hospedado e puseram Novichok na roupa interior do
opositor russo, para garantir que, quando a vestisse, entraria em contacto com
a pele. Sem deixar rasto.
Quando regressou à Rússia, um mês depois, Navalny foi imediatamente
detido.
Está
desde então numa das prisões de maior segurança da Rússia e acaba de ser
condenado a mais 19 anos. Vladimir Ashurkov, director da sua ONG
de Navalny, descreve a situação actual ao Observador: “É triste dizer isto, mas não esperamos que ele saia da
prisão enquanto Putin estiver no poder. As condições na prisão são duras e as
autoridades russas usam vários métodos para o torturar: negam-lhe comida,
colocam-no na solitária, não fazem o acompanhamento médico adequado.”
Da violência contra os
inimigos à brutalidade indiscriminada numa guerra aberta foi um pequeno passo. Praticamente
todos os entrevistados com quem o Observador falou para este podcast — que
incluem um antigo ministro de Putin, um ex-spin doctor da sua equipa, um biógrafo
e consultor da Gazprom, um antigo embaixador do Canadá em Moscovo,
o ex-chefe da CIA na capital russa, dois activistas e três jornalistas
russos — consideram que Vladimir Putin tomou sozinho (ou quase) a decisão de
invadir a Ucrânia.
“Os serviços secretos ainda são
importantes, mas Putin trata-os como servos dele”, ilustra o jornalista Andrei
Soldatov, especialista no FSB. “Aos poucos, percebeu que estes tipos são
extremamente leais, brutais e podem reprimir e matar, mas não são muito
espertos. Em muitos casos, quando houve uma crise política real, foi ele que
arranjou uma solução. Foi assim com a Maidan na Ucrânia, foi ele que pensou em
anexar a Crimeia, não foi o FSB. Agora aconteceu o mesmo.”
É neste ambiente que o actual Presidente russo se move, rodeado de yes-men
que não ousam apresentar-lhe informação desagradável ou discordar dele. E onde
figuras sem escrúpulos, mas leais, como o líder checheno Ramzan Kadyrov têm
carta-branca. Um “clube de combate” onde a “regra número um” é não questionar o
líder, explica Vladimir Milov.
O que não impede, contudo, que não haja
surpresas. Yevgeny Prigozhin, o
líder da milícia Wagner, executou uma rebelião falhada há pouco tempo. Ao
contrário do que costuma acontecer aos traidores que desafiam Putin, Prigozhin
não foi silenciado. Só ainda não se percebeu exactamente porquê. Há já que fale
apenas numa manobra encenada para expor traidores.
Mas, apesar disso, Vladimir Putin ali
continua no Kremlin. Pôs o mundo a prestar-lhe atenção e controlou a sociedade
russa. O plano que se foi construindo, passo a passo, peça a peça, por enquanto
está a resultar.
Pode ouvir aqui o 1º
episódio e aqui o trailer.
“Um
Espião no Kremlin” é uma série com seis episódios para ouvir no site do Observador,
na Rádio Observador e também nas habituais plataformas de podcast e no Youtube.
Todas as terças-feiras é disponibilizado um novo episódio. O guião e as
entrevistas são de Cátia Bruno. A sonorização e pós-produção áudio são de
Bernardo Almeida e a edição é de João Santos Duarte.
Os Podcast Plus do Observador têm o apoio da Honda
Automóveis.
PODCASTS CULTURA RÁDIO OBSERVADOR OBSERVADOR VLADIMIR PUTIN RÚSSIA MUNDO GUERRA NA UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA
COMENTÁRIOS:
Nuno Borges : Os planos de expansão da Moscóvia datam do tempo de
Pedro o Grande, têm sido postos em prática por todos os ocupantes do kremlin
desde então. O coronel Putin não é excepção. Os interesses dos países não
dependem dos seus líderes e o dos moscóvios é expandir o império até Lisboa. Do
Pacífico ao Atlântico e, logo que possível, englobando a China e a India. A
oportunidade da Europa estar desarmada não pode perder-se. Mais difícil será a
China, que também deseja avançar até Moscovo logo que possível.
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