Os vividos nas Jornadas por cá, com a
presença do Papa, que Maria
João Avillez descreve com a sinceridade do entusiasmo, para mais, bem
artisticamente – conquanto também objectivamente - traduzido. Para mim, o que me
causou mais espanto, foi a compostura de uma juventude educada e resistente,
vinda dos vários cantos do Mundo, além da organização portuguesa das próprias
Jornadas, disse-se que em tempo restrito, mas de um empenhamento sem quebras.
E, evidentemente, o milagre da resistência do Papa Francisco.
E agora, Igreja?
Sabe uma coisa, caro leitor? Pela
segunda vez tive a súbita “certeza” de que se Cristo andasse por cá e tivesse
vindo a Lisboa era assim que teria feito e isto mesmo que teria dito.
MARIA JOÃO AVILLEZ
Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 09
ago. 2023, 00:222
1Inexcedível e responsabilizante: que vai
a Igreja fazer com a herança da Lisboa 23? A ressaca da surpresa não ilude a
pergunta: daqui em diante, o quê?
Falo
de ressaca – a palavra é feia mas é disso que se trata: a exigência que cabe à
Igreja após ter testemunhado o que ocorreu em Portugal. Como
assimilar e lidar com tudo isso? Crentes ou não crentes, não importa. A
dimensão destes dias vividos no “terreno” da Jornada Lisboa 23, ou apenas
vistos da janela da televisão, foi de tal forma avassaladora que pode amaciar
fronteiras religiosas ou porventura esbater pertenças a territórios mais
desconhecidos da fé. A escolha do bem
sobre o mal, da paz sobre a guerra, do amor sobre a acidez do acinte, da
responsabilidade sobre o egoísmo é um repto à humanidade, mas começa por ser o
repto incomparável do cristianismo. Por ele foi semeado e por ele
firmado o claríssimo compromisso com essas escolhas. Foram elas que marcaram
ontem os passos de Cristo quando aqui esteve, são elas que guiam hoje o
Francisco que aí está: as escolhas têm dois mil anos e chamam-se
Evangelho.
2Primeiro vimos os jovens e a
presença e a proximidade do Santo Padre com eles. A
imagem de marca deste latino- americano sucessor de Pedro confundiu-se
eloquentemente com a alegria empenhada de peregrinos e voluntários. O
contágio entre uns e outro foi mútuo e permanente. Foi esse invisível elo –
genuíno e omnipresente desde 2013 – que muito naturalmente levou Francisco ao
cerne da realidade juvenil de hoje: as suas intervenções, no Parque Eduardo VII
ou no Parque Tejo, foram invariavelmente reconduzidas
ao concreto dos quotidianos da juventude de 2023 que ele não deseja
“destilados”. Outro exemplo disso foi a espantosa Via Sacra
cujas 14 estações reflectiam o
que pode perturbar ou amedrontar o presente da juventude mundial no turvo e
incerto mundo de onde ela é. A resposta só pode ser comprometida e
portadora de esperança. Risco, audácia, coragem. “Não tenhais medo”, disse o Santo Padre por sete, oito, dez
vezes. Ele sabe: os jovens são o fortíssimo tronco da esperança; representam a
garantia possível da transformação do que está, naquilo que pode passar a
estar. Por isso Francisco lhes pediu que se apressassem.
3Também houve Francisco,
o Chefe de Estado (num dos meus discursos de eleição, numa semana de
eleição). Forte, forte… Abanou as
lideranças políticas, reivindicou-lhes mais: mais estado social, mais empenho
na erradicação da pobreza; menos vergonha no desnível entre o condomínio do
favorecido e a favela do excluído; menos indiferença a quem chega dos mares.
Mais acerto político na navegação da UE – continente em guerra, quem o
anteciparia neste ano da graça de 2023? Mais energia na concertação pela paz. A
mochila das lideranças é cada vez mais pesada, os políticos cada vez podem
menos com elas.
Depois houve o Chefe da Igreja a
falar para dentro dela, num mosteiro repleto. As simbólicas paredes dos Jerónimos
ouviram o Sumo Pontífice chamar os seus às responsabilidades que lhes cabem
neste tempo e neste lugar (e foi claro que algumas delas nada tinham que ver
com o de novo tão propagado caso dos abusos sexuais). Severo na crítica,
detalhado na preocupação, exigente no guião. Pediu mais, ia sempre pedindo
mais. Mas não terá feito
afinal mais do que simplesmente pedir o Evangelho.
Ah e houve o Papa que desde
que visitou Fátima há uns anos ficou mais “mariano”. Ainda o ouço a recordar esse momento: “Eu
sou mariano, gosto muito da Virgem mas em Fátima senti outra coisa. Fátima
deixou-me mudo, não sei quando tempo estive ali, nem me apercebi…”. Agora que
Francisco lá voltou a rezar um terço, terá ficado ainda mais devoto. Mas foi
também lá que Francisco não iludiu o lugar da cruz, do sofrimento, da doença,
da fragilidade. Fê-lo através dos testemunhos ouvidos, fê-lo ouvindo rezar o
terço, em voz alta, alguém portador de enorme deficiência. Um grande momento
lembrando o que começa a estar esquecido.
4Foram dias surpreendentemente
irrepetíveis – na abundância fértil das mensagens do Papa, no belíssimo sopro
estético que as envolveu e divulgou, no ardor e fulgor do empenho dos jovens. Uma
espécie de estado de graça de longa duração. Era como se de algum modo
estivéssemos estranhamente num “outro mundo”. Um lugar exterior ao lugar
perigoso e feio onde vivemos. Foi
profundo, sendo alegre; foi simples sendo denso; foi celebratório sem
festivalices; foi substancial sem nunca pesar; foi sempre próximo sendo sempre
respeitoso. E foi energicamente concreto.
Ficou um guião. Francisco costuma deixar uma assinatura
muito legível no que diz e escreve, em Lisboa também deixou: há um receituário
para cada desafio. O Papa não é um mero desafiador, desafia-nos porque
precisa desse instrumento. Sabe que há que interromper sonos prolongados,
letargias paralisantes, fechamentos irredutíveis, conservadorismos encalhados
na sua própria esterilidade; tanto quanto reivindicações obstinadamente
semeadas pelo ar deste tempo, muito mais do que pela compaixão ou da própria
responsabilidade da fé. Ouvimo-lo
sancionar “conquistas” fracturantes, condenar o poder assassino da realidade
virtual, abrir-nos o leque dos embustes que nos podem iludir. Abraçou “todas”
as sua ovelhas, onde quer que estejam, de que “lado” sejam: a umas pedirá que
não acelerem tanto, a outras que acelerem mais e a ambas que não persistam no
pedir do “impossível”.
Numa das celebrações do Parque Eduardo
VII, numa conversa televisiva com a minha colega Alberta Marques Fernandes veio à tona das suas palavras o termo “revolucionário”. Apeei-me do termo – é ardiloso e ambíguo
– e estacionei no combate, esse sim desconcertantemente revolucionário, deste
Papa em prol de uma nova igreja. Próxima e misericordiosa. Mais compadecida que
altiva, mais presente que distante, mais aberta que defendida em corredores
insonorizados aos gritos do mundo. Humildade, proximidade, consolo. Perdão.
Compadecimento. Pertença e porto de abrigo de “todos, todos, todos” por mais
perturbador e novo que isso seja. Lançando
redes mais longe, pescando mais ao largo. Por mais difícil que esteja o mar,
por mais dura que se torne a pesca. O que é isto senão um
anúncio revolucionário?
Admito – e observo – que muitos
desejariam ter em Francisco um progressista decidido na satisfação das agendas
contemporâneas que pedem tudo e já. O que me surge porém como progressista no
seu ofício de pastor é o modo como ele
age e interpela através do Evangelho. E aquilo que sem desfalecimento
pede que se faça em seu nome. Possa a Igreja – e a nossa também – partir
apressadamente ao largo.
5Sabe uma coisa, caro leitor? Pela
segunda vez – a primeira foi no Vaticano há uns meses – tive como que uma
súbita “certeza” de que se Cristo andasse por cá e tivesse vindo a Lisboa por
estes dias, era assim tal e qual que ele teria feito e isto mesmo que teria
dito.
PS: Não posso deixar de felicitar quem
levantou esta Jornada, a Igreja desde logo, fazendo de uma ideia uma realidade
que nos ultrapassou por mais de um motivo; felicitar quem transformou um
projeto numa sucessão de extraordinários passos – exaltantes uns, silenciosos
outros, enérgicos outros ainda, portadores de espanto e maravilha, todos eles.
(Destaco a Via Sacra, tão
substancial no seu conteúdo quanto deslumbrantemente interpeladora no modo como
se deu a ver). Recebam os seus “encenadores”, que nunca vi, os meus mais gratos
e comovidos parabéns. Evoco a
dedicação sem limite de dezenas de milhares de voluntários, a Igreja está viva
através deles e com eles.
Como
cidadã agradeço ao Executivo ter integrado a troika Igreja/Governo/autarquias,
mas como os últimos são os primeiros, e como lisboeta, orgulho-me sobretudo de
Lisboa e de quem a gere, Carlos Moedas e a sua equipa. Foram capazes,
responderam à chamada, estiveram à altura do “impossível”: quem acreditava ou
metia um euro na aposta de uma Jornada portadora de assombro? Generosa, densa,
participada, organizada, ritmada, surpreendente, do primeiro minuto ao último?
JMJ 2023 RELIGIÃO SOCIEDADE PAPA FRANCISCO IGREJA CATÓLICA
COMENTÁRIOS
C. Soares: Sim, talvez Cristo não fizesse
melhor que o Papa em Lisboa, mas há algo que nenhum Papa poderá fazer,
substituir Cristo, principalmente na abnegação. Não esquecer que além dos
discursos motivacionais muito bons de Francisco, (que Jesus Cristo também os
praticava a ponto das pessoas realizarem milagres desencadeados pela fé que ele
transmitia), a abnegação não parece estar na agenda de nenhum Papa,
precisamente porque existe um conflito de interesses entre um líder espiritual,
que se pretende a par com Jesus Cristo, e o facto de ser líder de um país, como
tal ser um chefe de estado, aliás o estado mais rico do mundo, se não estou em
erro... Será que Jesus Cristo aceitaria tal contradição? Às vezes questiono-me
sobre isto e entendo o meu amor a Jesus Cristo, sem a necessidade de ser
católico, sinto até uma certa heresia em amar Cristo e ser-se católico, não sei
se era isto que Jesus Cristo esperava dos seus ensinamentos enquanto religião,
tenho dúvidas, muitas... JOHN
MARTINS: ...deixem-me respirar, respirar fundo. Esta crónica de
Maria João, a isso me obrigou. Esteve na jornada da juventude católica, viveu-a
e descreveu-a com sentido histórico e actual como poucos serão capazes de o
fazer. Pergunta, e agora Igreja? Lance as redes ao mar imenso, uma vez por ano,
no mar Tejo, agora abençoado, por S. Francisco. A juventude do Papa não
falhará. Obrigado pela sua maravilhosa crónica.
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