A tal “Guerra e Paz”, que nunca tivemos coragem de ler, quando nos foi
emprestado, nesses tempos de leituras por vezes exóticas, como essas de uma
Rússia que se dava a conhecer por grandes e graves escritores de muitas páginas,
de temáticas sentimentais ou sociais e ambientes sombrios, Tolstoi, Gogol,
Dostoievski, que, todavia, lemos, em todo o caso, mais seduzidos pelas páginas
amenas da literatura francesa, mesmo as de excesso de volumes, ou de tamanho
razoável, como “Les Thibault”, “Jean Christophe”, “Le grand Meaulnes”, mais
romanescos e próximos do nosso mundo juvenil de então. Uma vez mais o Dr. Jaime Nogueira Pinto, nos
encanta com esse regresso a um passado certamente que bem feliz de leituras e
filmes enriquecedores, que a juventude de hoje, presa aos seus brinquedos, manuais de comunicação, dificilmente usará, na exploração livresca ou fílmica
desses mundos de clássica formação, e de encantamento e enriquecimento formativo.
O certo é que os tais livros russos e outros mais actuais, não só imprimem um
sentimento de desolação e stress, como talvez fotografem bem certas almas
sinistras que na Rússia abundam, impregnadas desse mesmo sombrio, que lhes vem
de trás…
Guerra e Paz : uma batalha cultural da
guerra fria
O orçamento da super-produção não teve
limites: afinal, eram as razões de Estado da Rússia e do Socialismo que estavam
em jogo.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador
OBSERVADOR, 26 ago. 2023, 00:1722
Longe vai a RTP a preto e branco,
censurada pelo Estado Novo. Dá-se,
porém, um novo e prodigioso fenómeno: o da unidade de opinião na pluralidade de
cores e de meios ou o da unanimidade na aparente diversidade. Tenho,
por isso, uma relação saudável com a televisão: uso-a, basicamente, para ver
filmes.
Este Agosto resolvi rever alguns.
Comecei pelos James Bond – dos antigos (com refrescantes doses de incorrecção
política) aos modernos. São fitas que entretêm e que, no conjunto, nos vão
dando uma perspectiva leve e divertida da passagem do tempo e da passagem do
espírito do tempo, da Guerra Fria àDétente, da Détente ao pós-Guerra Fria.
Depois, passei aos filmes políticos
russos, do Eisenstein ao Dziga Vertov; e num tempo em que o épico e o romântico
vão sendo raros, cedi à nostalgia dos
grandes épicos românticos e fui rever o Guerra e Paz do Sergei Bondarchuk,
que entre nós estreou, creio que no Cinema Império, nos anos 60. Contra a
apropriação cultural de Hollywood
A fita de Bondarchuck tem uma
história interessante. É inspirada no épico de Tolstoi, mas teve na origem uma
batalha cultural da Guerra Fria.
Em
1956 a Paramount de Los Angeles (fundada por Adolf Zukor, um judeu askhenazi
nascido em Ricse, na Hungria, que emigrara ainda novo para a América) decidiu
filmar o grande romance de Tolstoi. O projecto foi produzido por dois
italianos, Dino de Laurentis e Carlo Ponti, e realizado por King Vidor, que se
tornara conhecido no mudo com The Great Parade, em 1925, e realizara depois
vários filmes importantes, entre eles Duel in the Sun.
O romance de Tolstoi é um romance
histórico, um retrato profundo da Rússia e da aristocracia russa no tempo das
guerras napoleónicas; um romance onde personagens históricas, como o czar
Alexandre, o general Kutuzov e o próprio Napoleão, se cruzam ou pairam sobre os
destinos das personagens criadas pelo autor – Natasha Rostova, André Bolkonsky, Pierre Bezukhov. André e
Pierre, são os protagonistas masculinos, entre os quais Tolstoi se terá
dividido, e o avô do escritor terá inspirado o velho príncipe Bolkonsky, pai de
André.
Vidor escolheu para os papéis-chave da
versão norte-americana Audrey Hepburn
(Natasha Rostova), Henry Fonda
(Pierre) e Mel Ferrer (André Bolkonsky); Vittorio Gasman fez de Anatol
Kuragin, o sedutor que levou Natasha a separar-se de André; e Anita Ekberg é Helena Kuragin, Helena, a
mulher de Pierre, que o trai. Além do elenco de luxo, o filme teve uma
equipa de guionistas importantes, entre eles Mario Camerini e Mario Soldati. A
fita foi um grande sucesso na América e na Europa; mas foi também um sucesso na URSS, em 1959, atraindo
mais de 31 milhões de espectadores. Isto aconteceu na détente pós-estalinista, na sequência de um acordo
soviético-americano para trocas culturais, de 1958.
A
única versão em cinema de Guerra e Paz que os russos tinham visto era um filme
mudo de 1915, de Yakov Protazanov e Vladimir Gardin. No
princípio dos anos 40, Alexander Korda ainda chegara a pensar na adaptação do
clássico de Tolstoi, com Orson Welles, mas o projecto não avançara.
O sucesso da fita italo-americana de Vidor, que durava 208 minutos,
excitou os brios russos. Muitos escritores e intelectuais soviéticos
sentiram-se feridos pelo retrato hollywoodesco da velha Rússia e, em nome do
patriotismo e da identidade cultural, exigiram que fosse para diante uma grande
produção russa do épico. Até porque era
também de uma história de resistência da Rússia, do povo russo, ao senhor do
Mundo Ocidental, Napoleão Bonaparte, que se tratava.
E daí nasceu o filme de
Sergei Bondarchuk, com ordens para vencer e esmagar o americano, pela
grandiosidade e fidelidade ao épico de Tolstoi, que com as suas mais de mil páginas,
contava as paixões de Natasha, André e Pierre, as grandes batalhas de
Austerlitz e Borodino, o incêndio de Moscovo.
O filme mais caro da História
Para as 7 horas e 1 minuto do Guerra e Paz de Bondarchuk (que saiu,
originalmente, em quatro episódios), contribuíram cerca de 60 museus e arquivos
do Estado russo, dezenas de milhares de soldados do Exército soviético, e
recursos financeiros, materiais e humanos hoje avaliados em cerca de 700
milhões de Dólares norte-americanos. O orçamento da super-produção não teve
limites: afinal, eram as razões de Estado da Rússia e do Socialismo que estavam
em jogo.
Na
URSS da Détente dos primeiros anos Breznev, Bondarchuck, como qualquer
realizador que se confronta com uma obra-prima literária, épica e intimista,
histórica e sentimental, política e psicológica, teve de fazer escolhas. E
as escolhas que teve de fazer eram também ideológicas, isto num Estado
ideológico e totalitário com uma teoria da História geral e da História da
Rússia. Tolstoi era um aristocrata,
um aristocrata lúcido e com alguns rebates de consciência que Bondarchuck
aproveitou bem, dentro da liberdade que lhe tinham dado os senhores do Estado e
do Partido, na obsessão de superar a versão e visão americana da história russa
de Guerra e
Paz. No filme aparecem aristocratas bons e
generosos – como o pai de Natasha, como André, como Pierre, como a própria
Natasha. Assim, o orgulho e preconceito da classe alta é temperado por um certo
paternalismo e informalidade dos Rostov com a criadagem; como a famosa cena da
“dança de Natasha”, na visita aos parentes da província, em que, no fim de um
dia de caça, a jovem aristocrata convive e dança com os camponeses uma dança
popular russa.
E em 1812, como celebrará Tchaikovsky na sua Overture homónima, será
também a unidade da aristocracia e do povo, sob o mando do Czar e do “zarolho”
Kutuzov, que levará Napoleão e os franceses à derrota.
Até Guerra
e Paz, Bondarchuck era um
realizador sem grande nome, muito atrás de um outro candidato a adaptar
Tolstoi, Ivan Pyrsev, cuja fama vinha do tempo de Estaline. Bondarchuck valeu-se claramente do Degelo
e da pressão ditada pela competição com os Estados Unidos e Hollywood. Fora, de
resto, eloquente ao dirigir-se ao Comité Central do Partido:
“Como é que este romance, o orgulho do
carácter nacional russo, foi adaptado na América e passado nas salas de cinema
americanas? E nós, russos, não somos capazes de o adaptar? É uma desgraça para
todos nós!”
É o que se chama aproveitar bem o
Zeitgeist. As duas primeiras partes da Guerra
e Paz de Bondarchuck tiveram, na Rússia, grande sucesso; mas a
terceira e a quarta não tanto. Waterloo, uma produção italo-soviética de
1970 que realizou com um elenco de primeira ordem (Rod Steiger fazia um
excelente Napoleão, Christopher Plummer era Wellington e Orson Welles Luís
XVIII) e 15.000 figurantes-soldados, também não teve grande sucesso.
Uma curiosidade final: Stanley Kubrick
quis fazer um filme sobre Napoleão e o tempo de Napoleão, estudando durante
algum tempo, com o escrúpulo e a minúcia que punha em tudo, os finais do século
XVIII, princípios do século XIX. Chegou à conclusão de que precisaria de 6.000
figurantes para as grandes batalhas e a MGM
recusou-se a financiar a super-produção. Kubrick aproveitou os estudos
preparatórios para os cenários de Barry Lindon. Não se pode dizer que
tivéssemos ficado a perder, mas se Kubrick estivesse na URSS teria podido dispor,
como Bondarchuk, do Exército Popular Soviético. Às vezes o Estado leva vantagem
ao mercado.
COMENTÁRIOS (de 22)
Jorge Tavares: Sem dúvida que nos tempos actuais da "democracia" de pensamento
único que se vive em Portugal, a televisão só serve para ver filmes. Evitar ver
noticiários e acima de tudo evitar ouvir os "comentadeiros" do
regime. Entre ouvir a propaganda mentirosa do camarada Daniel Oliveira e ler João
Pedro Marques a desmontar as mentiras do camarada Daniel Oliveira, mil vezes
ler João Pedro Marques; mil milhões de vezes. Riaz
Carmali: Bem-vindo de
volta caro Jaime. Posso discordar de si em várias matérias mas
respeito-o pelo intelectual que é. Apreciei bastante este texto, a começar
pelas primeiras linhas, que para quem sabe ler nas entrelinhas diz muita coisa
correcta..... Talvez na próxima semana possa as desenvolver melhor. Um bem haja para si e
para os seus
Manuel Cabral: Até agora, escapou ao autor e aos comentadores uma
referência à extraordinária decisão do actual 1.º ministro de despejar dinheiro
em cima dos órgãos de comunicação social por altura da pandemia a fim de esses
órgãos despejarem por seu turno a propaganda socialista em cima dos
telespectadores... O «Observador» foi o único ou um dos pouquíssimos órgãos de
comunicação que recusaram ser comprados pelo 1.º ministro com o nosso dinheiro!
Pergunto-me se essa descarada compra de espaço propagandístico pelo governo do
PS ainda continua, por ex. em nome da guerra a seguir à pandemia e ao «bónus
bilionário» que a UE deu a cada país e que o governo português parece ainda não
tê-lo utilizado a sério enquanto os prazos caducam!
Nenhum comentário:
Postar um comentário