Laços, é bom. Sobretudo se existir urânio
nos nós. Mas fixemo-nos antes no provérbio “Guardado está o bocado...”, também
fornecedor do urânio e outros produtos da troca de favores, a coberto dos
amores
"Longa vida a Putin." O Níer
ilustra as "fissuras" em África prontas a serem exploradas pela Rússia
Um golpe de
Estado por razões "egoístas" teve eco devido ao legado do passado
colonial. Mas o Níger é o mais recente palco onde se desenrola a competição
entre Rússia e Ocidente.
CÁTIA BRUNO: Texto
OBSERVADOR, 11 ago. 2023, 21:5615
Índice
O
descontentamento com a Françafrique para mascarar um golpe pessoal
A Rússia “oportunista” que explora o
ressentimento pós-colonial
“A Wagner não vai deixar África.”
Prigozhin está para durar e quer estender-se ao Níger
Ameaça de intervenção militar do
CEDEAO pode ser só táctica negocial
Eram três da manhã quando os soldados se
dirigiram ao palácio presidencial. A cidade de Niamey estava em silêncio e o Presidente, Mohamed Bazoum, dormia dentro do palácio, onde há gazelas espalhadas pelos jardins.
Não foi difícil para oshomens armados
tomarem conta do edifício— embora o Presidente tenha conseguido fechar-se numa sala de pânico, de onde
telefonou aos conselheiros para dar conta do golpe de Estado em curso.
Pouco depois,
na televisão, o auto-proclamado Conselho
Nacional pela Salvaguarda da Pátria (CNSP) anunciava
que derrubara o governo e tomara o poder. O major-coronel Amadou Abradamane citou o deteriorar da
“situação de segurança e a economia pobre” como razões para o golpe de Estado.
▲ O momento do anúncio do CNSP à
população do Níger ORTN - TÉLÉ SAHEL/AFP VIA GETTY
Rapidamente as
ruas da capital se encheram de manifestantes que apoiavam a intervenção
militar. “Abaixo a França!”gritavam
alguns, que atiraram pedras ao edifício da embaixada francesa e acabaram por
deitar fogo à porta. “Longa vida a Putin!”, gritavam outros, muitos deles com
bandeiras da Rússia.
Dentro do palácio presidencial, Bazoum
telefonou para o embaixador do Níger em Washington e ditou-lhe um artigo, que seria
publicado depois no Washington Post. “Escrevo este artigo como refém”, pode
ler-se na primeira linha. A conclusão é um pedido directo: “Peço ao governo dos
Estados Unidos e a toda a comunidade internacional que nos ajudem a restaurar a
ordem constitucional.”
Estávamos a 26 de julho de 2023. Agora, mais de duas semanas depois, a
situação continua num impasse. Bazoum continua refém — em “condições desumanas”, segundo a
filha —, a nova
junta militar não é reconhecida como legítima por praticamente nenhum país e os
países que compõem a Comissão da Comunidade Económica dos Estados da África
Ocidental (CEDEAO) ameaçam com uma intervenção militar.
A instabilidade em África tem-se
agudizado ao longo dos últimos anos: esta é a 11.ª
tentativa de um golpe de Estado no continente ao longo
dos últimos dois anos. O caso do
Níger, como o de tantos outros, é alimentado por sentimentos anti-coloniais, com França a assumir o lugar de alvo.
Mas, no meio de tudo isto, por que há bandeiras russas entre a multidão e
gritos a aclamar o Presidente Vladimir Putin?
O descontentamento com a Françafrique para
mascarar um golpe pessoal
Cameron Hudson
não tem dúvidas. “As razões que levaram
ao golpe são todas locais”, diz o analista do norte-americano Centro de
Estudos Estratégicos Internacionais (CSIS na sigla original), que chegou a
trabalhar sobre África para a CIA. Hudson aponta ao Observador uma justificação
específica para este levantamento militar: “A raiva do comandante da guarda
presidencial [o general Abdourahamane Tchiani, que lidera a junta militar] por
ter sido substituído e por a sua unidade receber menos equipamento e treino e
ter menos prestígio do que outras envolvidas em contraterrorismo.”
▲ Os líderes da
junta militar do Níger numa manifestação de apoio ANADOLU AGENCY VIA GETTY
IMAGES
A
motivação pode ter sido pessoal, mas o movimento rapidamente granjeou apoios um
pouco por toda a sociedade. Em concreto por assentar na ideia de que o governo
de Bazoum era demasiado próximo do Executivo de Emmanuel Macron: “Bazoum
era uma marioneta dos franceses”, comentou com a
Der Spiegel Boubaca Adamou, professor
de 54 anos e um dos manifestantes que saíram à rua em Niamey após o golpe.
Antiga
colónia que apenas se tornou independente em 1960, o Níger
ainda mantém muitos laços ao país europeu, evidentes sobretudo no urânio
que exporta para França. “Os
sentimentos anti-francófonos estão sempre presentes no cenário de fundo da
política do Níger”, aponta Hudson. “E agora que o golpe aconteceu,
esses sentimentos estão a ser usados para criar apoio em torno dos
golpistas e justificar as suas acções, muito embora elas tenham ocorrido por
motivos egoístas e não como um statement político mais lato sobre a influência
francesa.”
Mas ela existe. “É a Françafrique,
uma rede intrincada neocolonial que se espalha pelas dimensões económica,
política, de segurança e cultural, e que é centrada na linguagem e nos valores
franceses”, ilustra ao Observador Isabella Currie, especialista em
relações internacionais da Universidade La Trobe.“O impacto de
França é claro nos conselheiros militares e no envolvimento com sucessivas
administrações do Níger, incluindo a recém-deposta.”
▲"Macron
inferior à liberdade do povo africano", pode ler-se num cartaz numa
manifestação de apoio ao golpe de Estado AFP VIA GETTY IMAGES
A política da Françafrique,
contudo, está em transformação, de acordo com o Presidente Emmanuel Macron, que
em fevereiro deste ano anunciou “uma nova era” na relação do país com o
continente africano. “África não é o quintal de ninguém
e menos ainda um continente onde os europeus e os franceses devam ditar a
conjuntura para o seu desenvolvimento”, declarou Macron.
Só que das
palavras aos actos vai uma distância. Ainda há actualmente 1.500 tropas francesas no Níger, a que se somam outras 1.100 norte-americanas. Tudo por causa
da guerra contra o jihadismo islâmico, que abala particularmente a faixa do
Sahel, região onde se inclui o Níger. E a cooperação militar entre este país e o Ocidente
reforçou-se particularmente nos últimos anos, à medida que outros países do
Sahel como o Mali e o Burkina Faso levaram a cabo os seus próprios golpes de
Estado e se afastaram de vez da órbita de Paris. Agora, essa cooperação está totalmente em
risco.
A Rússia “oportunista” que explora o ressentimento
pós-colonial
E é aqui que
entra um novo actor: a Rússia.
O
descontentamento com a influência francesa já é visível há muito no Níger —
país que ocupa a 189.ª posição dos 191 países incluídos no Índice de
Desenvolvimento Humano das Nações Unidas. Em meados de 2022, foi formado o
movimento M62, uma coligação de activistas e figuras da sociedade
civil que tem questionado a presença francesa no país.
“É de notar a emergência dos
movimentos UNPP e PARADE no Níger, o segundo abertamente associado à embaixada
da Rússia." Isabella
Currie, investigadora que estuda a influência russa
em África
Mas Isabella
Currie, que tem investigado a influência russa em África (em particular a do
Grupo Wagner), garante que a Rússia já
se “infiltrou” nos grupos da sociedade civil no terreno. “É de notar a emergência dos
movimentos UNPP e PARADE no Níger, o segundo abertamente associado à embaixada
da Rússia. O PARADE tem ramos em vários países africanos e promove uma parceria
económica entre Rússia e África. A ligação à Rússia é evidente na sua
comunicação e presença, o que nota uma tentativa de influência significativa
[no continente]”, diz.
O especialista
militar francês Pierre Servent também assegura à Der Spiegel que o M62 tem sido
o principal fornecedor de bandeiras nos protestos dos últimos dias: bandeiras russas para serem
agitadas e bandeiras francesas para serem queimadas.
Nos últimos anos, a Rússia tem reforçado a sua ligação ao
continente africano, em várias frentes: exporta produtos como trigo e
fertilizantes, mas também armamento — é, neste momento, o fornecedor de 40% do armamento comprado pelos
países africanos.
E Moscovo começou a expandir a influência da economia
para a política: em 2019, realizou a primeira cimeira Rússia-África; agora, em 2023, acolheu a segunda, que
não contou com a presença de tantos chefes de Estado devido ao impacto da
guerra da Ucrânia.
Apesar disso, muitos governos
africanos mantêm-se ao lado de Putin, como é visível em muitas das votações nas
Nações Unidas sobre o tema da Ucrânia; mesmo que não votem claramente a favor
de Moscovo, é frequente absterem-se quando o tema é a guerra. O discurso da
Rússia para o continente é o de que há pontes entre as duas regiões, que,
juntas, podem combater a “hegemonia” ocidental — e que assenta muito na
exploração do descontentamento pós-colonial.
Apesar de não
considerarem que a Rússia está na origem do mais recente golpe de Estado no
Níger, os especialistas ouvidos pelo Observador não têm dúvidas de que o país
explorará a situação a seu favor. “Devido às sanções ocidentais, a Rússia está
à procura de novos mercados e de novos aliados e África é um desses focos”,
resume Alex Vines, investigador especializado em África da Chatham House.
Cameron Hudson
vai ainda mais longe. “A Rússia é oportunista”, afirma, sem margem para dúvidas. “O que quer que
crie um fosso entre o Ocidente e o
resto do mundo é benéfico para a Rússia. Moscovo não está poderosa o
suficiente para criar as fissuras, mas está
completamente preparada para as alargar e para as explorar.”
▲Vladimir
Putin com vários chefes de Estado africanos na última cimeira Rússia-África SPUTNIK/AFP VIA GETTY IMAGES
Não por acaso, os Estados Unidos têm-se
mostrado particularmente preocupados com o golpe no Níger, com o secretário de
Estado, Anthony Blinken, a denunciar mesmo o papel da Rússia: “Não creio que o
que aconteceu no Níger tenha sido instigado pela Rússia, mas eles tentam
aproveitar-se”, alertou numa entrevista à BBC.
Ainda
é cedo para falar num conflito por procuração entre norte-americanos e russos
em território africano, garantem os especialistas. Mas não há dúvidas de que há
uma competição por influência: “Os africanos agora têm escolhas sobre as
relações que mantêm e muitos sentem-se confortáveis em trabalhar com a Rússia,
que não lhes exige nada”, resume Cameron Hudson. Isabella Currie diz que
estamos perante “uma competição por influência, poder e acesso” que opõe
Ocidente e Rússia. “E não podemos deixar de sublinhar o legado deixado pelo
colonialismo nestes países, que cria uma situação complexa.”
A Rússia sabe-o e tem explorado esse
tema. No verão de 2022, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei
Lavrov, publicou um
artigo de opinião em vários jornais de países africanos onde relembrava
que a Rússia “não se manchou com
os crimes sangrentos do colonialismo” e que sempre “apoiou com sinceridade
os africanos na sua luta pela libertação da opressão colonial”.
“A Wagner não vai deixar África.” Prigozhin
está para durar e quer estender-se ao Níger
Este é o discurso oficial. Mas, na
sombra, as ligações entre a Rússia e vários países africanos — com destaque
para a região do Sahel, onde se inclui o Níger — têm outro elemento que ajuda a
forjar lealdade entre vários governos do continente. Um elemento chamado
Grupo Wagner, a milícia de Yevgeny Prigozhin, cuja forte presença em África não
parece ter sido abalada pela tentativa de golpe de Estado em Moscovo.
“Neste
momento não temos pilotos suficientes, a maioria dos nossos aviões militares e
helicópteros de combate são pilotados por homens da Wagner”, confessou um
oficial da Força Aérea do Mali recentemente à Associated Press.
A Wagner
infiltrou-se de tal forma entre as Forças Armadas de vários países africanos
que, com o combate ao jihadismo que ainda perdura, se tornou indispensável em
países como o Mali, a República
Centro-Africana e até Moçambique (onde tropas da Wagner ajudaram a combater os
islamistas em Cabo Delgado). Em
troca, ganham acesso “à exploração de recursos naturais e concessões mineiras”,
que a investigadora Currie define como “operações de negócios questionáveis”.
▲"A
Rússia e nós adoramos a Wagner", diz um cartaz numa manifestação em
Bangui, na República Centro-Africana AFP VIA GETTY IMAGES
Essa influência é tal que o
norte-americano Cameron Hudson não tem dúvidas em fazer uma previsão: “A
Wagner não vai deixar África”, garante, apesar do desafio de Prigozhin a Putin.
“É uma ferramenta valiosa para a política russa e há muitos mercados em
África que potencialmente se podem interessar pela Wagner.”
Alguns dados apontam para esta ideia de
que os problemas na Rússia não beliscaram as operações da milícia no continente
africano. Segundo um
responsável da Líbia confirmou ao The
Guardian, quatro
dias depois da insurreição em Moscovo, o Kremlin mandou um enviado a Benghazi
para garantir ao general Khalifa Haftar que tudo se manteria igual no que diz
respeito à presença da Wagner. E o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros
russo, Sergei Lavrov, anunciou a 30 de junho que os soldados da Wagner permaneceriam
no Mali e na República Centro Africana como “instrutores” dos exércitos locais.
“Há presidentes a quem dei a minha
palavra de que os defenderia. Se retirar 100, 200 ou 500 combatentes de lá,
muitos países deixam simplesmente de existir”, rematou o próprio Prigozhin no
seu canal de Telegram.
Oficialmente,
a Rússia não reconhece este golpe de Estado no Níger, que classifica de
inconstitucional. Mas Prigozhin tem um discurso diferente e já ofereceu os
serviços da sua milícia ao país, numa outra mensagem onde culpou “os antigos
colonizadores” pela crise de segurança no país.
Os
passos para trazer a milícia russa para o país já estarão a ser dados. Várias
fontes confirmaram à France 24 e à Al-Jazeera que a recente viagem de um dos generais do Níger ao
Mali serviu para pôr a junta militar em contacto com o grupo Wagner.
Ameaça de intervenção militar do
CEDEAO pode ser só táctica negocial
Enquanto
o Níger vai reforçando os seus laços com Putin e Prigozhin, alguns países
vizinhos inquietam-se. A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) tem ameaçado claramente a junta militar com a
possibilidade de intervir militarmente no país, caso não coloque novamente
Bazoum na presidência.
Mas outros países da região, como o Mali
e o Burkina Faso, já se
colocaram firmemente ao lado dos novos líderes do Níger, elevando o risco de um
conflito na região. Já para
não falar na possibilidade de os soldados da Wagner se colocarem entretanto ao
lado dos militares golpistas.
“Seria
uma loucura, o CEDEAO nem sequer tem treino para uma missão desse tipo. Se o
fizesse, rapidamente transformaria um golpe sem derramamento de sangue numa
guerra regional, o que seria o pior resultado possível.”
Cameron Hudson, investigador do CSIS, sobre uma intervenção militar
do CEDEAO
É precisamente por isso que os especialistas
não acreditam que o CEDEAO venha a cumprir a sua ameaça. “A intervenção militar não é a prioridade deles”, assegura
Alex Vines. “A prioridade é chegar a
um acordo político para afastar a junta.” Cameron
Hudson reforça: “Seria uma
loucura, o CEDEAO nem sequer tem treino para uma missão desse tipo. Se o
fizesse, rapidamente transformaria um golpe sem derramamento de sangue
numa guerra regional, o que seria o pior resultado possível.”
Aquilo de que não há dúvidas, porém, é que a situação em África está em
efervescência e o Ocidente não pode tomar como garantidos determinados aliados.
“O Níger não é o único Estado na região que enfrenta instituições frágeis,
pobreza e desafios crescentes de segurança”, avisa o investigador norte-americano,
para quem “a era dos golpes de Estado em África ainda não acabou”.
“O que o caso do Níger nos diz é que até países que considerávamos
estáveis e firmemente pró-ocidentais já não o são. Ou então nunca o foram e
avaliámos mal”, diz.
ÁFRICA MUNDO RÚSSIA GUERRA CONFLITOS
COMENTÁRIOS (de 15)
Filipe Costa: Passado colonial é treta, usam isso para acicatar os ânimos. Desculpem, mas os Russos roubam
os recursos naturais de todos os países a que dá "protecção Wagner",
não se iludam, os colonos construíram países, os Russos roubam, Quem é o
COLONO? Rosa
Lourenço: E lá vai mais a destruição de um povo e
de um país. É isto que a Rússia pretende! Ter liberdade para oprimir e
reprimir. É triste que ainda haja quem partilhe ideias de
"vingança"... A guerra só produz vencidos, miséria e caos. Quem
defende a PAZ, a LIBERDADE, a Tolerância mundial e o respeito entre países
independentes?
joão Teixeira: África mostra-se. Para quem ainda tinha ilusões… Jorge Santos: A culpa é do homem branco. Por
isso vamos pedir ajuda a outro homem branco. Tudo certo. É deixar arder. Tone da Eira > Liberales
Semper Erexitque: A Rússia semeou e agora vai colher? É isso que sua inteligência
quer dizer?
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