Foi, apesar da simpatia do Papa
Francisco, algo de muito injusto e de muito forçado, quer do ponto de vista
ucraniano, quer do ponto de vista de qualquer um que não possa admitir argumentos
tão pouco recicláveis, como os de Putin - neste momento, em relação à Ucrânia, mas
aspirando a mais e mais Ucrânias da sua ambição de caixote do lixo definitivo…
Esperava que o Papa agradecesse a todos os que não deixaram a Ucrânia sozinha
Como ucraniano, esperava que o Papa
Francisco admitisse que o encontro com o Patriarca Kirill, em Havana não levou
à paz, antes alimentou a autoconfiança da Rússia.
PAVLO SADOKHA Presidente da Associação dos ucranianos em Portugal
OBSERVADOR, 15 ago. 2023, 00:176
Entre
outras muito importantes mensagens que o Papa Francisco transmitiu durante a
JMJ 2023, para mim, enquanto ucraniano, as palavras mais notáveis foram
proferidas no último dia da Jornada Mundial da Juventude.
No
final da liturgia, o Papa disse: “se Deus te chama pelo nome,
isso significa que, para Ele, não és um número, mas um rosto, um coração”.
Como cristão, entendo isso como um diálogo directo de cada pessoa
com Deus. Mas, como ucraniano, que vive a dor das perdas diárias dos meus
compatriotas, essas palavras foram interpretadas por mim também no contexto da
guerra na Ucrânia.
Seria
utópico acreditar que é possível construir uma sociedade perfeita apenas por
vigorarem as leis sobre os direitos humanos.
Em todo o caso, os princípios do “Sermão da Montanha de Jesus Cristo”
– que lemos no Evangelho de Mateus e de Lucas e onde Jesus Cristo dá lições de
conduta moral, normativa, e orienta a vida cristã – foram de certo modo
incluídos na maioria das legislações dos países democráticos (especialmente
europeus).
As
guerras nunca foram uma solução para as relações humanas. Mas cada uma das
partes sempre teve as suas próprias razões “morais” para matar os outros
homens. Graças ao desenvolvimento das formas do registo de testemunhos, temos a
oportunidade de analisar com mais imparcialidade as causas dos conflitos
militares, pelo menos nos últimos três séculos.
Mesmo
declaradas como “religiosas”, as guerras sempre tiveram motivos pragmáticos,
humanos (demasiado humanos) – seja a afirmação do poder de um determinado grupo
social, seja a solução de problemas económicos e políticos (e não raro as
razões invocadas até mudaram ao sabor das circunstâncias).
Lembro-me
de que a primeira visita do Papa (João Paulo II) à Ucrânia, em 2001, causou uma
enxurrada de críticas de Moscovo. Esta peregrinação foi condenada pela Igreja
Ortodoxa Russa (patriarcado de Moscovo), em particular pelo Patriarca Alexy II,
o qual declarou que esta visita era uma invasão do território “canónico russo”
(algo que pode ser comparado com as reivindicações de Moscovo em relação à
expansão da OTAN).
Mas, 15 anos depois, o Papa Francisco
encontrou-se com o Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, Kirill, no território da
Cuba comunista, onde foram assinadas as chamadas “Declarações de Havana”.
Nestas declarações, a Ucrânia foi
sacrificada em prol da paz. Pois o Papa reconheceu que há um conflito interno
na Ucrânia e que a Igreja Ortodoxa Russa tem direito canónico aos territórios
ucranianos.
Mais tarde, em 2019, o Patriarca da
Igreja de Constantinopla (Vorfolomeus) concedeu Tomos (autonomia nacional, com
patriarcado próprio) à Igreja Ortodoxa da Ucrânia. Com isso, negou as exigências ilegais da Igreja
Ortodoxa Russa sobre a Ucrânia. O encontro do Papa com patriarca do Moscovo, em
Havana, foi uma boa iniciativa para encontrar o entendimento entre as duas
confissões religiosas. Mas não trouxe a paz no Leste da Europa.
Para Putin, esta reunião propiciou ou
reforçou o entendimento de que o Vaticano não condenaria a intervenção militar
dos russos contra a Ucrânia e a anexação da Crimeia em 2014. E é indubitável
que aquilo que sucedeu em 2014 foi um importante factor no processo que levou a
uma agressão em larga escala, tal como veio a ocorrer em 24 de fevereiro de
2022.
Na
verdade, os ucranianos foram sacrificados ao “dragão do mal” pelo bem da paz na
Terra.
Vários
inquéritos de opinião feitos até 2022 mostraram que uma parte bastante
significativa da sociedade ucraniana estava disposta a aceitar a ideia de
desistir da Crimeia e do Donbass para acabar com a guerra. Portanto, até certo
ponto, é possível entender a posição dos políticos ocidentais em relação ao
apoio à Ucrânia após 2014.
Mas em 24 de fevereiro de 2022, os Ucranianos pareceram acordar para
a realidade: o objectivo dos russos não é
o controle dos territórios da Ucrânia onde dominava a língua russa, mas sim
acabar de uma vez por todas com o próprio estado ucraniano, no seu todo – ou
seja, liquidar os ucranianos como nação.
Assim,
se interpretarmos as palavras ditas pelo Papa Francisco em Lisboa: os russos
decidiram que os ucranianos deveriam ser despojados do seu nome e de seu rosto
nacional.
Na escala global, era muito
importante que o Papa Francisco, durante a JMJ em Lisboa, mostrasse que a
Igreja Católica está aberta ao diálogo e sabe admitir os seus próprios “erros
humanos”. Mas os interesses globais e universais não podem ser resolvidos pelo
preço do sofrimento de cada pessoa individual, com seu nome e rosto únicos.
Como ucraniano, esperava que o Papa Francisco admitisse que o
encontro com o Patriarca Kirill, em Havana, não levou à paz, antes alimentou a
autoconfiança da Rússia e a sua disposição para iniciar o genocídio dos
ucranianos.
Infelizmente,
em vez disso, ouvi palavras de crítica aos países europeus sobre o humanismo
insuficiente – palavras com as quais não posso concordar. Pois, para dar só um
exemplo, toda a comunidade ucraniana em Portugal há já um ano e meio que vem
testemunhando como os portugueses ajudam os ucranianos, embora estejam
distantes do teatro de guerra e aqui não haja explosões de foguetes russos.
PAPA
FRANCISCO IGREJA
CATÓLICA RELIGIÃO SOCIEDADE GUERRA NA
UCRÂNIA UCRÂNIA EUROPA MUNDO JMJ 2023
COMENTÁRIOS (de 6):
João Floriano 9 h: Estou de alma
e coração com o povo ucraniano e posso fazer muito pouco para além disto. ..........palavras
de crítica aos países europeus sobre o humanismo insuficiente. O humanismo
insuficiente a que o papa se refere não tem a ver com os ucranianos, pois
percebe-se de que lado o Papa Francisco se posicionou. Também entre os
políticos portugueses temos muitos casos semelhantes, certamente porque é a
posição mais confortável. E já nem falo do caso do PCP, que eu considero uma
vergonha para todos os comunistas portugueses e uma mancha que vai fazer ainda
baixar mais o grupo parlamentar nas próximas eleições. O Papa está preocupado
com outro tipo muito diferente de migrantes: os que atravessam o Mediterrâneo e
outros que têm origem na América do Sul. Não era aos ucranianos que o papa se
referia. Os ucranianos são chatos, incomodam e não compreendem como seria tudo
muito melhor se se entregassem sem luta, se deixassem a Rússia acabar com eles,
sem incomodar a comunidade internacional e as boas relações ecuménicas do
Vaticano católico com o leste ortodoxo. Se Pavlo tinha expectativas altas sobre
a visita do papa e o que iria dizer, eu não as tinha, pelo que não fiquei
minimamente desapontado. Os meus melhores votos para o bravo povo ucraniano que
resiste, luta e vai vencer. Um dia toda esta euforia, subjectividade,
emotividade à volta do papa vai passar e racionalmente a História olhará para
as posições do Vaticano, como fez anteriormente em períodos muito conturbados e
violentos da História recente da Europa. Os papas também erram! Abílio Silva: Muito bem Pavlo. Força Ukránia!
Nenhum comentário:
Postar um comentário