Bebedeira de ideias forjadas no
sentimento anestesiante da razão – o que significa isso de razão? – estimulada
pelos ódios ancestrais contra os que dão
um qualquer contributo de desenvoltura quer material quer espiritual, com que preenchem
o seu sentido existencial, e isso não se permite nos beneméritos da nova ordem
da harmonia acusatória contra a tal mesma burguesia do convencionalismo
tradicional contra a qual o pioneirismo revolucionário dos profetas do
sentimento ou da vaidade intelectual formaram casta acusatória nos últimos
séculos, hoje mais destituída do estudo exigente, porque centrado no “baldar-se
a regras” ou numa falsa simpatia pelos deserdados sociais do outrora de
miséria, miséria hoje multiplicada pela difusão dos produtos do entorpecimento criminosamente
destruidor de saúde e de valores.
Uma análise de excelente nível do fenómeno hoje, pelo Professor de
Filosofia PEDRO PINHEIRO, a quem se agradece, e juntamente, ao OBSERVADOR, que
tem o Professor nas suas fileiras de Justiça e de Racionalidade.
A polarização da esquerda
A identidade do populismo de esquerda
afirma-se na medida em que nega o outro, seja ele a casta, a elite, a
oligarquia ou o status quo, o neoliberalismo ou os que procuram consenso
racional.
PEDRO PINHEIRO, Professor de Filosofia,
CEPS, Universidade do Minho
OBSERVADOR, 03 ago. 2023, 00:148
Nos últimos dias, em Dresden, cidade alemã bombardeada há quase 80 anos por ingleses
e norte-americanos, foi publicado um estudo acerca da polarização política afetiva. Os cientistas concluíram que a esquerda se
polariza afectivamente principalmente com questões ambientais e a direita com
questões de imigração.
Concluiu-se que pessoas
mais velhas, com graus de educação mais elevados, mais rendimentos e residentes
em grandes cidades têm emoções negativas mais fortes face aos que pensam de
maneira diferente. Para
além disso, concluiu-se também que, em média, os que se assumem de esquerda
polarizam-se mais do que os que se assumem de direita. Aqueles que votam em partidos de esquerda,
extrema-esquerda, verdes ou ecologistas
demonstraram-se substancialmente mais polarizados. Contrapondo-se a esse comportamento, aqueles que votam em partidos cristão democráticos ou
conservadores demonstraram-se menos avessos às
pessoas com opiniões diferentes ou contrárias às suas.
Será que faz sentido que a esquerda seja emocionalmente mais
polarizada? No extremo
esquerdo do espectro político encontramos o populismo de esquerda que nos
poderá dar algumas respostas. A
teorização do populismo de esquerda propõe a defesa do dissenso, cordões
sanitários aos demonizados opositores políticos, obstáculos para chegar a
negociações e o uso das emoções em detrimento da razão. A dinâmica conflitual do populismo de
esquerda existe tanto perante o exterior como no interior. Isso explica porque
é que, da mesma forma que Chantal Mouffe, Slavoj Žižek caracteriza o “nós” do populismo de esquerda como
internamente conflituante e não homogéneo.
O conflito permanente existe graças à
negação de categorias essencializadoras
como a categoria de classe que
definiu o marxismo até que o
pensamento soixant-huitard o viesse transformar. Os
desenvolvimentos da psicanálise, da linguística e da desconstrução levaram ao
abandono de qualquer definição essencialista da própria esquerda e levaram-na a
abraçar a revolução permanente de inspiração trotskista. É neste
âmbito que a teorização populista de esquerda, permanentemente antagonística,
faz com que a esquerda dependa do seu contrário para se definir. Como Alexandre
Franco de Sá aponta, o populismo de esquerda define a sua identidade
exogenamente enquanto negação do seu opositor. A identidade do populismo de esquerda afirma-se na medida em que
nega o outro, seja ele a casta, a elite, a oligarquia ou o status
quo, o neoliberalismo ou os que procuram consenso racional.
Face ao paradigma de pós-democracia
descrito por autores como Colin Crouch ou Jacques Rancière, ao
verem que os cidadãos têm acesso aos procedimentos democráticos sem que isso
garanta uma democracia viva, os teóricos populistas de esquerda defenderam a necessidade de politizar o espaço público. Mais: não
só politizar como politizar emotivamente. Para sair da falsa democracia, da «democracia sequestrada,
condicionada, amputada» como Saramago descreveu,
o populismo de esquerda valoriza o antagonismo em que as emoções ocupam um
lugar primordial para que se politize o espaço público e, consequentemente, se
secundarize o lugar da racionalidade (que é vista como responsável pela despolitização).
Num contexto de fragilidade
democrática e de polarização emotiva das opiniões, o aprofundamento da
politização do espaço público impossibilita o questionamento crítico das
verdades individuais ou tribais. Dentro deste novo paradigma de politização e
polarização afectiva do espaço público, o diálogo negociante entre as partes
torna-se diminuto. A
democracia abandona a possibilidade de gravitar em torno da verdade ou
conhecimento. Ela
gravita em torno da doxa. É a opinião pública, à esquerda e à direita,
fabricada de variadíssimas formas e tendo as emoções como grande
arma para pôr um elefante dentro de uma garrafa de vinho, que ganha eleições democráticas. Talvez tenha sido sempre essa a
grande virtude e fragilidade da democracia, a saber, que ela está na esteira da
filodoxia, não na esteira da filosofia, como apontara
Alexandre Franco de Sá.
De qualquer forma, o valor dado, na
democracia de hoje, à opinião e o lugar privilegiado das emoções nas discussões
políticas aparecem-nos como uma grande fragilidade.
A teoria do populismo de
esquerda, nomeadamente com a
empresa do Pós-Marxismo e a sua abordagem discursiva
focada nas emoções, aprofunda esta debilidade. Acreditam que é necessária a criação
de uma fronteira transversalmente populista para eliminar o consenso neoliberal
e a via escolhida para tal intento é a criação de um antagonismo, de inspiração schmittiana, entre
amigos e adversários. Não
se atenta contra a vida, apenas se combatem as ideias. Mas apenas se combatem
as ideias dos que não são inimigos (mas sim adversários), pelo que a categoria
de inimigo não desaparece, é expulsa.
Tendo as emoções um papel central para a
transformação do antagonismo que mataria o inimigo num antagonismo que só mata
ideias, bem como um papel para definir o povo como oposto da elite e dos que
estão à direita, o populismo de esquerda acaba por ser assumidamente
emocionalmente polarizado.
Esta adoração dos afectos acaba por
exacerbar o fechamento da discussão em bolhas acríticas das suas crenças. São
lugares sem abertura perante o futuro, que nos levam, como Susan Neiman aponta, para
a prisão da marginalização em que o foco não está naquilo que fizemos ao mundo,
mas naquilo que o mundo nos fez. Esta polarização afectiva, que o estudo
do Mercator Forum Migration und Demokratie demonstra como sendo mais visível à
esquerda, coloca desafios à
democracia que ainda não foram devidamente considerados porque, embora as emoções vivam à flor da pele e
dos tempos, elas são muitas vezes cegas e insensíveis. As emoções conseguem biologizar o que não é biológico; construir
verdades acerca do passado a partir de memórias fabricadas; relatar a realidade
presente a partir da experiência individualmente existencial. É por essa razão
que as emoções da esquerda populista ainda não reconheceram, nem prática nem
teoricamente, os novos ventos de máxima politização que fazem com que os barcos
regressem para o outro lado da costa da ilha da pós-democracia. Nem
se espera que consigam algum dia fazer.
EXTREMA ESQUERDA POLÍTICA EXTREMISMO SOCIEDADE
COMENTÁRIOS:
Cisca Impllit: Que bem
escrito. Gostei imenso de ler. Vou reler! João Floriano: Excelente texto, mas de leitura difícil. Os cronistas
esquecem frequentemente que são raros os leitores que têm o conhecimento das
obras citadas, o que torna a leitura mais árdua. Mas em linhas gerais a crónica aborda a questão emotiva na «mensagem» da
extrema esquerda, explorando o «nós e os outros». Entre nós e os outros não
pode haver diálogo, porque o Nós da extrema-esquerda está sempre certo e alinhado
pelas melhores intenções. Os Outros pelo contrário são os que impedem que a
sociedade maravilhosa pintada pela extrema-esquerda consiga ir em frente. E nem
interessa que consiga melhorar sequer, porque a extrema-esquerda vive
precisamente dessa luta entre o Nós e os Outros. Quanto mais desgraçada for a sociedade, mais
próspera será a extrema-esquerda. É para isso que trabalham.
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