Parece caótico. Mas o descritivo é pleno
de graça sadia, no movimentado arrebatador das várias andanças e andantes, para
além do sentimento de amor pela família, e respectivas amizades que transbordam
num espaço amplo, sem receio de qualquer arremetida irónica dos leitores sobre
a abastança inusual que tal narrativa sugere. O que ressalta mesmo é o dom de alegre
simpatia humana, sem avareza nem mesquinhez, para mais, invejável de resistência
física – além, repito, do sentido de humor do descritivo elegante e justo de Maria João Avillez.
Outra vez a estalajadeira
É aquilo a que vulgarmente se chama o “verão“ mas que cá por casa se
chama caos: casas a deitar por fora, refeições que pegam umas nas outras, o
alarido como instalação sonora.
MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 16 ago. 2023, 00:22
1Tudo parte deste oeste atlântico: houve
dois que abalaram para Londres, quatro que aterraram da Colômbia, outros que
rumaram a sul (“ah mas voltamos logo”) mas todos estacionam para ficar. Nas
duas casas, aqui pousados, a alteração da ordem é automática, as movimentações
ruidosas, os horários perdem-se como se
fossem um chapéu de chuva. É, na
previsibilidade da sua própria repetição, aquilo a que vulgarmente se chama o
“verão” mas que por cá se intitula caos: casas a deitar por fora e o alarido
como instalação sonora. Fui-me habituando. Há anos escrevi algo de parecido
porque já era isto mesmo. Descobri à minha custa – com aquele misto de gratíssima felicidade e de crispação non-stop com
que se tentam domesticar as férias de filhos e netos – que esta estação do
ano deveria ser só um apeadeiro, ou, por exemplo, uma coisa intermédia: ah que
pouco ela coincide com a glória solar da “única
estação” como lhe chamava Ruy Belo, meu poeta, evocando o verão… Ano após ano, os nossos verões – o meu e o do poeta – pouco coincidem:
a bênção de comandar a tribo familiar é sempre imediatamente traída pela
própria impossibilidade da tarefa e denunciada por um sistema nervoso a dar de
si (o meu).
2A nossa morada enche-se alegremente de
residentes – filhos, netos, sobrinhos, primos, parentes – e de passantes:
aqueles amigos de uns e outros que foram adquirindo uma espécie de “direito
natural” a serem passantes com cama, mesa e roupa lavada. As enchentes – aos
solavancos – conseguem ainda a proeza de serem indecifráveis quanto a datas de
chegadas ou partidas, “oh, mãe, eles coitados (coitado de quem?) ainda não
sabem ao certo…”. Qualquer pequena, média ou grande dona de casa se
desnortearia por menos: os víveres
acabam sempre “antes”; os residentes&passantes estão sempre
(impossivelmente) famintos e com pressa; atrás deles há sempre um rasto de
toalhas, mochilas, telemóveis, chaves, iPads, livros, legos, bóias, jornais,
jogos e outros díspares objectos – por vezes misteriosamente abandonados para
todo o sempre, no sítio onde pela primeira vez foram largados. Quando
pergunto a quem pertencem os pertences, “ah, avó, deve ser do…”, ou “não sei,
talvez seja da…”. Deles próprios nunca é. As reclamações são vãs: toalhas,
t-shirt, ténis desirmanados ficarão dias a jazer dentro ou fora de casa. Será o verão uma sucessão de “pintura de cenas em vão”, como aqueles grandes frescos que nos contam
histórias? Não sei, constato.
3Fazem-se e desfazem-se camas a alta
velocidade, avança-se com 32 graus centígrados para lavandarias quando a
máquina de lavar ameaça esvair-se; abrem-se e fecham-se incessantemente
frigoríficos, o seu interior some-se também incessantemente a altíssima
velocidade. Com líquida fluidez, o dinheiro também se some. Até o próprio tempo
(quem diria, em “férias”?…) se dilui em contagem decrescente — é sempre preciso “ir”: ao supermercado, à
praça, aos jornais, à farmácia, ao parque. Ou ao terrível e temível aeroporto,
levar e trazer os membros da tribo que chegam ou partem das geografias onde
vivem.
Não sei se a época é particularmente
propícia mas estão sempre a acontecer coisas inverosímeis. As refeições, por exemplo, são conforme: em vez de um almoço e um
jantar há séries de três ou quatro almoços e sempre mais do que um jantar. E,
com mesa posta e comida já pronta, pode ouvir-se, sem aviso prévio, claro, o
sacrossanto “afinal”: “Afinal hoje não janta ninguém”. Ah bom? O uso do
“afinal” mereceria um tratado.
De vez em quando lembro-me de como
seria fantástico ir sem baldes, pás e chuchas a uma praia – é terrivelmente
melancólico um verão sem todo o mar; ou de como assumiu a configuração de um
sonho ir há dias até à beira do oceano comer o peixe do Pedro, ao “Rio
Cortiço”. A corvina desfazia-se em lascas brancas translúcidas enquanto o
ouvíamos dizer com um orgulho modesto que “ainda sabia grelhar peixe…”. Oh se
sabe.
4Talvez não haja porém estação mais
fornecedora de impulsos inverosímeis do que o verão: de repente há uns que
montam armários pré-fabricados ao vivo e “in loco” na sala no minuto em que nos
sentaríamos à mesa; há crianças que perguntam inopinadamente “e hoje onde é que
eu durmo?” tal a rotatividade da casa; há trabalhadores em tele-trabalho cujo
apetite pelo “padle” os leva a fazer uns 30 quilómetros SEMPRE à hora do
jantar; há a Sofia Helena que pinta coloridamente pedras com a Camila e cujos
três gloriosos anos necessitam imperiosamente de contadores de histórias
“privativos” — não havendo voluntários disponíveis, acaba pessimamente: nem ela
nem nós dormimos.
O
futebol este ano tornou-se um desporto compulsivo em vez de um desporto normal.
Sete, dez, doze, catorze rapazes e raparigas entre os 6 e os 18 anos jogam
quase ininterruptamente à bola a 5 metros do terraço onde vivemos. Com o calor
invulgar que tem estado, voltam “ao relvado” à noite, acendendo as luzes do
jardim (que se esquecem de apagar depois). Nos intervalos desta inverosímil
compulsividade, invadem a “Colónia Balnear do Século” em que se transforma a
piscina no verão, deixando os diversos pais e avós dos
jogadores-residentes-passantes confinados a uma espera incerta para gozar de
natação-livre. Ou da apetecida possibilidade de em comum beberem vinho branco e
discutirem o estado do país, a Ucrânia, a “direita” ou esta coisa da vida.
5Assim
descrito, parece que só conversamos entre adultos e que os
residentes&passantes só falam entre eles. Não. Há conversas, risos,
diatribes inter-geracionais. Como
é óbvio o tema Jornada foi um deles, ocupando mentes, tempo e argumentação
numa população de jovens e muito jovens onde havia militantes católicos,
crentes, agnósticos, ateus ou simplesmente desinteressados. Diversidade não nos
falta, o que talvez explique alguma coisa. Ou muita coisa.
Há porém nisto algo de absolutamente
extraordinário: é quando finalmente descobrimos que há que substituir de vez
um erro por uma certeza. Trocar o erro de achar que “assim nada funciona nesta
desordem familiar” pela certeza de que talvez não haja nada mais gerador de
vida do que as sementes que há anos e anos germinam neste solo. Escolhidas por
nós.
Mesmo que no regresso à normalidade, lá
para meados de Setembro, o pater famílias
(ainda) se surpreenda com a contagem dos
estragos dentro e fora de casa, ou que, genuinamente contristado, constate que
a relva se tenha transfigurado numa ruína de si mesma. Sim, mesmo assim. Há
verões sem preço mesmo que não sejam parecidos com os do Ruy Belo.
PS: Três notas não despiciendas:
a) quem pode desmentir que quase dia sim,
dia não, o país, siderado, acorde a nadar sobre as ondas da corrupção? Que ela
está na ordem do dia? Agora foi o caso de um membro do gabinete do próprio primeiro
ministro, afastado por suspeitas de maus comportamentos ao
serviço do Estado; ontem foi a Altice (e a Altice não são trocos, é muito,
muito dinheiro), amanhã o que será?
Que chão range debaixo dos nossos pés?
Não é de estranhar a tenacidade da All4Integrity – aqui já referida,
aliás – procurando mobilizar a preguiçosa sociedade civil na luta contra este
flagelo através da iniciativa do Prémio Tágides. O prémio distinguirá qual o português
ou portuguesa que mais se distingue – ou distinguiu – no combate à corrupção:
pelo exemplo, pelo legado, pelo atitude, pelo mérito, pela sua preocupação com
esta ferida alastrante. Esperam-se candidaturas, muitas se possível, era bom
sinal, e quanto mais cedo melhor. O prazo expira a 25. (Qualquer um pode votar
em www.all4integrity.org) Porque
falo nisto? Por ser mais que uma boa ideia. É uma necessidade.
b) Há oito dias confessei aqui ignorar os
nomes dos encenadores dos momentos mais belos, fortes e substanciais da Jornada
Mundial da Juventude. Ou melhor, sabia de dois mas temendo serem mais – com
tamanha tarefa! – optei por não escrever nenhum, não querendo suscetibilizar os
outros. Afinal foram três: Matilde Trocado, Peu Madureira (ouçam por favor o
seu último disco…) e Isabel Maria Mónica. Não se sabe como agradecer-lhes.
c) E… boas férias a quem ainda as não
teve! Eu tentarei tomar banhos de ondas. Até breve!
VERÃO NATUREZA AMBIENTE CIÊNCIA FÉRIAS SOCIEDADE
Jornalista, colunista do Observador
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