Desse filme “La
strada”, e da
frase que me ficou nos ouvidos e na memória «Il
Matto sta male , Zampanò”, de uma
Giulietta Massina absolutamente
espantosa no seu papel de rapariguinha doce e maltratada, bem diversa das vistosas,
ou mais dengosas, extraordinárias actrizes, Sofia Loren, Rita Hayworth, Elysabeth Taylor, Brigitte Bardot, das minhas pobres referências de encanto
de então. Suponho que vi o filme ainda em Coimbra, e não esqueci a visão de um
viver mísero e explorado, de uma pobre figura humana específica daqueles tempos
de um neorrealismo acusador, sem a estridência, contudo, dos nossos escritores acusadores. Um extraordinário papel, o
desempenhado por Giulietta Massina – por Anthony Quinn também. Por isso, a
referência de Alexandre Borges ao filme favorito do Papa Francisco me fez recuperar
o seu texto, integrado numa análise de um Papa que antes de o ser, viu filmes
como era habitual, nas diversões de então, e leu escritores e ouviu
compositores, como bem descreve o autor do texto, um texto de grande interesse,
que nos revela um papa à escala humana, não circunscrito aos ensinamentos d’”O
Livro” – “Biblos” de sua origem.
Francisco
no cinema: um ciclo para conhecer os filmes favoritos do Papa
Começa com Fellini o programa da
Cinemateca para ver nos próximos dias. Afinal, nem só da Bíblia vive a Boa Nova
e a palavra de Deus pode estar na boca de Giulietta Masina.
ALEXANDRE BORGES
OBSERVADOR, 26/7/23
A questão começou quando Francisco foi buscar “Turandot”, em vez de uma qualquer passagem bíblica, para falar
a António Spadaro da importância da esperança. Afinal, é comum entre homens e
mulheres da Igreja que toda a resposta venha do livro “que contém todas as
respostas”; no entanto, este Papa habituou-nos, até para choque dos católicos
mais conservadores, a viver no mundo. Podemos “procurar e encontrar Deus
em todas as coisas”, diz, na mesma entrevista, para então se referir ao
primeiro enigma da ópera de Puccini como ilustração para a sua ideia de
esperança: “A esperança cristã não é um fantasma e não engana. É uma
virtude teologal e, portanto, definitivamente, um presente de Deus que não se
pode reduzir ao optimismo, que é apenas humano. Deus não defrauda a esperança,
não pode negar-Se a Si mesmo. Deus é todo promessa.”
Spadaro, jornalista e ele próprio jesuíta e padre, ficou curioso e quis
saber mais sobre as “referências artísticas e literárias” do bispo de Roma, a
sua visão da importância da criatividade, “os artistas e escritores que prefere”. E Francisco respondeu, nomeando Dostoiévski e
Hölderlin na literatura, Caravaggio e Chagall na pintura, Mozart,
fundamentalmente, na música, mas também Beethoven, Bach e até a “Tetralogia do
Anel”, de Wagner. Para então fazer uma ressalva importante: “Deveríamos, também, falar sobre
cinema.”
É com base nesta entrevista concedida
há 10 anos ao Osservatore Romano,
tinha Francisco sido eleito Papa há poucos meses, que se fez a selecção dos
filmes para este pequeno ciclo da Cinemateca, em parceria com a Jornada Mundial
da Juventude 2023. Nos títulos que, então, citou, e nos que Antonio Spadaro
recordava de lhe ter ouvido noutras ocasiões.
Não saberemos, portanto, o que pensa o Papa dos filmes
feitos na última década. Do diálogo com o Criador que Terrence Malick tem
mantido desde “A Árvore da Vida”, este ainda em 2011, mas que não tem parado de
tornar mais evidente desde então. De “A Mão de Deus”, de Sorrentino, que tem
quase tudo o que interessa a Francisco: Argentina, Itália, pecadores abundantes
e intervenções divinas. Ou até da caracterização dele mesmo feita pelo
guionista Anthony McCarten e pelo actor Jonathan Pryce no excelente “Dois
Papas”, de Fernando Meirelles, em 2019.
Ainda assim, há muito para ver de 28 a 31 de julho, na
Cinemateca Portuguesa, em Lisboa. “O Cinema Segundo Francisco” confirma a
ideia de que a Igreja Católica tem sido liderada, nos últimos 10 anos, por um
homem muito inteligente, humano e nada óbvio. Falta “Roma, Cidade
Aberta”, de Rossellini, que o Papa refere, explicitamente, como um dos seus
filmes preferidos, mas sobram neorrealismo e cinema italiano dos anos 40 e 50,
quando Francisco era ainda o pequeno Jorge a crescer na longínqua Argentina,
mas filho de uma família de imigrantes italianos. “Devo a minha cultura
cinematográfica sobretudo aos meus pais, que nos levavam frequentemente ao
cinema”, diz, citado no programa da Cinemateca. No neorrealismo,
encontrava “o poder, próprio da grande arte, de saber captar no Inverno aquilo
que já era Primavera”. “Em todo o caso”, conclui, “em geral gosto muito
dos artistas trágicos, especialmente os mais clássicos.”
Não espere “A Túnica”, nem “Os Dez Mandamentos”. Já
não estamos na Galileia nem em Jerusalém. O Papa está mais interessado no que o
amor pode fazer pela salvação de cada um de nós, hoje, mesmo o mais imperfeito.
No poder da esperança, do milagre e do perdão. Nas coisas em que podemos
encontrar Deus, mesmo que mais ninguém O veja.
“A Estrada”
De Federico Fellini (Itália,
1954)
“La Strada de Fellini é talvez o
filme de que mais gostei. Identifico-me com aquele filme, no qual está
implícita uma referência a São Francisco.” O filme preferido do Papa é o
escolhido para abrir o ciclo. Foi o quarto de Fellini, rodado quando
tinha apenas 34 anos e o primeiro dos títulos obrigatórios em qualquer visita à
sua obra. Duro, polémico, aberto até hoje a diferentes interpretações,
acompanha a vida na estrada da jovem Gelsomina e de Zampanò, artista de rua que
a comprou para assistente, empregada, esposa, tudo e, portanto, nada. Inesquecíveis interpretações de Anthony
Quinn e Giulietta Masina, ela num papel que Walt Disney quis
transformar em personagem do seu império e que a própria explicitou, um dia,
não ser qualquer metáfora do lugar da mulher no casamento católico, mas uma
encarnação do próprio Fellini, seu marido, que cedo trocou a casa de família
pela arte dos palhaços e com ela foi pelo mundo a tentar decifrar o sentido da
existência. Distinguido com o Óscar
para Melhor Filme Estrangeiro no ano em que a categoria foi criada, “La Strada”
é, entre outras coisas, um filme sobre o amor. Sobre como toda a gente, independentemente
das suas falhas, tem um lugar no mundo e é merecedora de ser amada. É
talvez este o motivo franciscano que o Papa encontra nele. Também disponível na
Filmin. (Dia 28, 15h30, sala M. Félix Ribeiro)
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