sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Bem me lembro


Desse filme “La strada”, e da frase que me ficou nos ouvidos e na memória «Il Matto sta male , Zampanò”, de uma Giulietta Massina absolutamente espantosa no seu papel de rapariguinha doce e maltratada, bem diversa das vistosas, ou mais dengosas, extraordinárias actrizes, Sofia Loren, Rita Hayworth, Elysabeth Taylor, Brigitte Bardot, das minhas pobres referências de encanto de então. Suponho que vi o filme ainda em Coimbra, e não esqueci a visão de um viver mísero e explorado, de uma pobre figura humana específica daqueles tempos de um neorrealismo acusador, sem a estridência, contudo, dos nossos escritores acusadores. Um extraordinário papel, o desempenhado por Giulietta Massina – por Anthony Quinn também. Por isso, a referência de Alexandre Borges ao filme favorito do Papa Francisco me fez recuperar o seu texto, integrado numa análise de um Papa que antes de o ser, viu filmes como era habitual, nas diversões de então, e leu escritores e ouviu compositores, como bem descreve o autor do texto, um texto de grande interesse, que nos revela um papa à escala humana, não circunscrito aos ensinamentos d’”O Livro” – “Biblos” de sua origem.

 

Francisco no cinema: um ciclo para conhecer os filmes favoritos do Papa

Começa com Fellini o programa da Cinemateca para ver nos próximos dias. Afinal, nem só da Bíblia vive a Boa Nova e a palavra de Deus pode estar na boca de Giulietta Masina.

ALEXANDRE BORGES

OBSERVADOR, 26/7/23

A questão começou quando Francisco foi buscar “Turandot”, em vez de uma qualquer passagem bíblica, para falar a António Spadaro da importância da esperança. Afinal, é comum entre homens e mulheres da Igreja que toda a resposta venha do livro “que contém todas as respostas”; no entanto, este Papa habituou-nos, até para choque dos católicos mais conservadores, a viver no mundo. Podemos “procurar e encontrar Deus em todas as coisas”, diz, na mesma entrevista, para então se referir ao primeiro enigma da ópera de Puccini como ilustração para a sua ideia de esperança: “A esperança cristã não é um fantasma e não engana. É uma virtude teologal e, portanto, definitivamente, um presente de Deus que não se pode reduzir ao optimismo, que é apenas humano. Deus não defrauda a esperança, não pode negar-Se a Si mesmo. Deus é todo promessa.”

Spadaro, jornalista e ele próprio jesuíta e padre, ficou curioso e quis saber mais sobre as “referências artísticas e literárias” do bispo de Roma, a sua visão da importância da criatividade, “os artistas e escritores que prefere”. E Francisco respondeu, nomeando Dostoiévski e Hölderlin na literatura, Caravaggio e Chagall na pintura, Mozart, fundamentalmente, na música, mas também Beethoven, Bach e até a “Tetralogia do Anel”, de Wagner. Para então fazer uma ressalva importante: “Deveríamos, também, falar sobre cinema.”

É com base nesta entrevista concedida há 10 anos ao Osservatore Romano, tinha Francisco sido eleito Papa há poucos meses, que se fez a selecção dos filmes para este pequeno ciclo da Cinemateca, em parceria com a Jornada Mundial da Juventude 2023. Nos títulos que, então, citou, e nos que Antonio Spadaro recordava de lhe ter ouvido noutras ocasiões.

Não saberemos, portanto, o que pensa o Papa dos filmes feitos na última década. Do diálogo com o Criador que Terrence Malick tem mantido desde “A Árvore da Vida”, este ainda em 2011, mas que não tem parado de tornar mais evidente desde então. De “A Mão de Deus”, de Sorrentino, que tem quase tudo o que interessa a Francisco: Argentina, Itália, pecadores abundantes e intervenções divinas. Ou até da caracterização dele mesmo feita pelo guionista Anthony McCarten e pelo actor Jonathan Pryce no excelente “Dois Papas”, de Fernando Meirelles, em 2019.

Ainda assim, há muito para ver de 28 a 31 de julho, na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa. “O Cinema Segundo Francisco” confirma a ideia de que a Igreja Católica tem sido liderada, nos últimos 10 anos, por um homem muito inteligente, humano e nada óbvio. Falta “Roma, Cidade Aberta”, de Rossellini, que o Papa refere, explicitamente, como um dos seus filmes preferidos, mas sobram neorrealismo e cinema italiano dos anos 40 e 50, quando Francisco era ainda o pequeno Jorge a crescer na longínqua Argentina, mas filho de uma família de imigrantes italianos. “Devo a minha cultura cinematográfica sobretudo aos meus pais, que nos levavam frequentemente ao cinema”, diz, citado no programa da Cinemateca. No neorrealismo, encontrava “o poder, próprio da grande arte, de saber captar no Inverno aquilo que já era Primavera”. “Em todo o caso”, conclui, “em geral gosto muito dos artistas trágicos, especialmente os mais clássicos.”

Não espere “A Túnica”, nem “Os Dez Mandamentos”. Já não estamos na Galileia nem em Jerusalém. O Papa está mais interessado no que o amor pode fazer pela salvação de cada um de nós, hoje, mesmo o mais imperfeito. No poder da esperança, do milagre e do perdão. Nas coisas em que podemos encontrar Deus, mesmo que mais ninguém O veja.

“A Estrada”

De Federico Fellini (Itália, 1954)

“La Strada de Fellini é talvez o filme de que mais gostei. Identifico-me com aquele filme, no qual está implícita uma referência a São Francisco.” O filme preferido do Papa é o escolhido para abrir o ciclo. Foi o quarto de Fellini, rodado quando tinha apenas 34 anos e o primeiro dos títulos obrigatórios em qualquer visita à sua obra. Duro, polémico, aberto até hoje a diferentes interpretações, acompanha a vida na estrada da jovem Gelsomina e de Zampanò, artista de rua que a comprou para assistente, empregada, esposa, tudo e, portanto, nada. Inesquecíveis interpretações de Anthony Quinn e Giulietta Masina, ela num papel que Walt Disney quis transformar em personagem do seu império e que a própria explicitou, um dia, não ser qualquer metáfora do lugar da mulher no casamento católico, mas uma encarnação do próprio Fellini, seu marido, que cedo trocou a casa de família pela arte dos palhaços e com ela foi pelo mundo a tentar decifrar o sentido da existência. Distinguido com o Óscar para Melhor Filme Estrangeiro no ano em que a categoria foi criada, “La Strada” é, entre outras coisas, um filme sobre o amor. Sobre como toda a gente, independentemente das suas falhas, tem um lugar no mundo e é merecedora de ser amada. É talvez este o motivo franciscano que o Papa encontra nele. Também disponível na Filmin. (Dia 28, 15h30, sala M. Félix Ribeiro)

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