Que conduz a uma convicção de permissividade
estatal perante o atrevimento, falsidade, devassidão, sectarismo sórdido, praticados
tanto ao nível das áreas que deviam ser culturais - como nas tais aulas descritas
por Tiago de Oliveira Cavaco, de uma
Faculdade de Ciências Sociais numa Universidade “Nova”, como nessas IURDs e
outras seitas que tais, que se aproveitam do analfabetismo e do sofrimento dos
seres ainda na infância mental para lhes extorquirem – criminosamente – o pouco
que possuem, em troca de promessas de um reino de Deus que, a existir, deve dar
voltas de indignado repúdio nos espaços siderais onde poderá habitar… quem
sabe?
Um erudito manguito
Nos anos noventa ainda havia
professores que, numa Universidade claramente à esquerda, olhavam os consensos
sociais com suspeita. Façam a comparação com a nossa desinspirada era.
TIAGO DE OLIVEIRA CAVACO, pastor
batista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 20
ago. 2023, 00:1912
O que é feito do Moisés Espírito Santo? Para
quem não o conhece, era um daqueles professores universitários inesquecíveis.
Era normal na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa o pessoal arranjar modo de fazer a cadeira dele, de Sociologia das
Religiões, mesmo quando vinha de outros cursos. Foi o meu caso e de mais
uns quantos colegas de Ciências da Comunicação. O Moisés Espírito Santo era um
professor que sacava alunos aos outros professores, if you know what I mean.
As aulas do Moisés Espírito Santo eram, como dizíamos no final dos
anos 90, uma trip. Misturavam matéria académica propriamente dita
(partindo do princípio, claro, que a Sociologia pode ser considerada matéria
académica), relatos das suas experiências ritualístico-rurais (uma vez contou
que chegou a expulsar demónios de uma pessoa quando, na ausência de um padre,
ele, como professor universitário, teve de desenrascar), anedotas desbragadas e
até alguma mímica espontânea (não esqueço os manguitos que fazia para sublinhar
as suas teses mais originais). Não havia aulas como aquelas.
Recordo-me também do Moisés Espírito Santo oferecer os
seus livros aos alunos. Era um punk na Universidade, assumindo que o seu “do it
yourself”, ainda que creditado pelas instâncias institucionais, tinha de chegar
mesmo às pessoas além dos constrangimentos do comércio. Tudo isto permitia que a relação que o aluno tinha com o professor não
se jogasse naquela presunção cognitiva que torna os alunos cada vez mais alunos
e os professores cada vez mais professores. Não objecto contra a diferença
funcional entre professor e aluno dentro de uma sala de aula, mas aquela sala
de aula, a do Moisés Espírito Santo, permitia prodígios únicos.
Recordo com muito prazer um episódio.
Isto seria um pouco antes do ano dois mil e, naquele registo mais franco e
horizontal que o professor suscitava, havia espaço para opiniões e perguntas
dos alunos. Já não me lembro dos detalhes mas, a certo momento, uma aluna, numa
observação que fez, comentou o pouco respeito que lhe suscitava a Igreja
Universal do Reino de Deus. Ninguém esperava pelo que aconteceu. O Moisés
Espírito Santo passou-se. No final dos anos noventa até eu, mais apalermado que
era pelos consensos da multidão, facilmente me juntaria à maioria para bater na
IURD. Diante da reacção intempestiva do professor, temi pela minha integridade
física (eu e todos, acho).
Explico: o Moisés Espírito Santo não fez
propriamente uma defesa da Igreja Universal do Reino de Deus. Mas arrasou com o
ataque que lhe tinha sido feito. Indignadíssimo, afirmou que se algum crédito
houvesse em uma comunidade religiosa representar a fé do povo, por certa ou
errada que estivesse, ele pertenceria à Igreja Universal do Reino de Deus.
Muito mais do que qualquer outro movimento religioso na altura, a IURD tinha a
virtude de se encher de quem nenhum privilégio social acumulava. Quase em ponto
rebuçado, terminou fazendo, lá está, o seu proverbial e erudito manguito. Ouvi
aquilo tudo em sobressalto. Ainda hoje tenho reservas diante dessa substância
popular que o professor elogiou, apreciada sem outros critérios além dos da
suposta representatividade social – mas o eco ficou cá dentro.
Mais de vinte anos depois, admito que sem
o Moisés Espírito Santo eu não quereria defender tanto um princípio sério de
liberdade religiosa. Este pobre país, que ainda agora foi compulsivamente
catequizado durante a visita papal acerca de ser um oásis de diálogo entre
crenças, precisa de uma dúzia de Moisés Espíritos Santos. Portugal, país exemplo de respeito religioso? Não me tramem. Sem o
Moisés Espírito Santo eu aceitaria esta e outras platitudes que, com a
aparência de bem aventurança secularizada, não passam da velha arrogância que
quem monopoliza pode manter sem ser desafiado pelos pequenos.
Sobre
o Moisés Espírito Santo poucos diriam ser uma inspiração para uma alma
conservadora como a minha. Mas nos anos noventa ainda havia professores que,
numa Universidade claramente à esquerda, olhavam os consensos sociais com suspeita.
Façam a comparação com a nossa desinspirada era: o Daniel Oliveira, uma das
vozes destacadas da nossa esquerda, provavelmente um pouco entornado pelas
festividades papais que comoveram o país de cima a baixo, da esquerda à
direita, escreveu no Expresso há umas semanas: “apesar de ser ateu, sei que a
sociedade seria pior sem a bússola moral da religião e muito pior se a ICAR
(Igreja Católica Apostólica Romana) for substituída por seitas evangélicas”.
Com o júbilo das jornadas derramado em todas as direcções, talvez o melhor não seja, nesta singela citação,
concentrarmo-nos no factor bússola mas no factor substituição.
Creio que o Moisés Espírito Santo
ensinava Sociologia das Religiões não a pensar em quem substitui quem em termos
de respeitabilidade. Talvez ensinasse Sociologia das Religiões pensando mais em
quem substitui quem no coração do povo. E, nesse sentido, admirava nas seitas
evangélicas uma componente popular que antigamente ainda comovia a esquerda.
Afinal, onde estava o povo que os velhos revolucionários diziam representar? Para
o mal e para o bem, as seitas evangélicas enchem-se de povo a sério, como
tantos partidos de esquerda já não conseguem. O problema destes novos
revolucionários, como supostamente o Daniel Oliveira é, não é não nos merecerem
o respeito. Pelo contrário, é não saberem viver sem ele. O melhor que temos
para lhes dar, ensinou-me o Moisés Espírito Santo, é um erudito manguito.
RELIGIÃO SOCIEDADE SOCIOLOGIA CIÊNCIAS
SOCIAIS CIÊNCIA
COMENTÁRIOS:
João Floriano: Muito mais do que qualquer
outro movimento religioso na altura, a IURD tinha a virtude de se encher de
quem nenhum privilégio social acumulava. O professor Moisés devia ter
acrescentado que a IURD para além de se encher dos mais falhos de privilégios
sociais também os sabia explorar muito bem. Tive a infelicidade de me
confrontar com o pior que a IURD tem para oferecer quando há cerca de 20 anos
tive de reclamar partilhas em tribunal porque a segunda esposa do meu falecido
pai dizia que eu não tinha qualquer direito ao espólio familiar. Claro que não
era a senhora que dizia isto mas a IURD que a aconselhava, já que a viúva não
sabia ler, esteve ilegal em Portugal até o meu pai decidir casar com ela e
tratar das papeladas, trabalhava como empregada de limpeza e entregava parte do
que ganhava à Igreja. Foi igualmente a IURD que me ameaçava quase diariamente
por telefone dizendo que eu não sabia com quem me estava a meter e
pressionando-me a desistir das partilhas judiciais. Não desisti, fizemos
partilhas perante uma juíza e fiquei a conhecer melhor a IURD. O professor
Moisés não deve ter passado por semelhantes peripécias. Quanto a Daniel
Oliveira, o manguito justifica-se completamente. O bloquista tem de agradar ao
PS e sobretudo à SIC. O melhor é não levantar ondas.
Paula Dias: Caro Tiago, Os seus textos são
maravilhosos. Sou católica, mas consigo, ao lê-lo, chegar um pouco mais às
vivências dos irmãos cristãos não católicos. Vejo neles (nos textos) mais
inquietude, diálogo com a essência da fé e da palavra, liberdade para meditar e
aplicar, assumindo a imperfeição que cada um de nós carrega. Na casa do Pai há
muitas salas. A sua, tem as janelas abertas. Na minha, com tristeza vejo o
fechamento nas questões disciplinares, na eclesiologia, na armadilha do
"que é proibido e permitido" na vida íntima, na proximidade com os
poderosos e com quem manda, que escandaliza. E afinal, a génese de tudo, Jesus
foi o maior dos "outcasts", comendo com publicanos e prostitutas. Que
diferença do que temos hoje!
Rosa Silvestre: Daniel Oliveira, como toda a esquerda, continua a não
gostar da Igreja Católica, mas adora o Papa Francisco, daí as concessões...
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