sábado, 21 de dezembro de 2024

Antiguidades


E o texto do Historiador e romancista JOÃO PEDRO MARQUES, frisando a insistência da comunidade woke na condenação dos energúmenos descobridores escravizadores de pagar àqueles a quem a seu tempo invadiram as terras, inspirados de certeza nos vândalos e C.ia que uns milénios antes se tinham expandido e fundido com os romanos e C.ia, estes, por sua vez, mais uns séculos antes, tendo ocupado as terras da velha Europa, nem sei se a transformada por Zeus em bezerra, por via dos ciúmes da Hera, mas o certo é que deu nome ao continente que percorreu, talvez a querer safar-se das investidas do safado patrono dos deuses. Com isto, quero mostrar que as ocupações das terras são coisa antiga e até acho a  praticada pelos navegadores europeus, de que os portugueses foram pioneiros, bem mais arrojada do que a dos montadores asiáticos e europeus dos cavalos, embora a guerra de Tróia também se tivesse iniciado por barco, mas foi travessia de pouca dura, e o Alexandre Magno, esse sim, e transcrevo da Internet, «passou a maior parte de seus anos no poder em uma série de campanhas militares sem precedentes através da Ásia e nordeste da África. Até aos trinta anos havia criado um dos maiores impérios do mundo antigo, que se estendia da Grécia para o Egipto e ao noroeste da Índia». Acho portanto que era aos gregos que os da nossa cultura woke se deviam dirigir em primeiro lugar, a exigir indemnizações e devoluções, mas realmente o meu espírito ameno levou-me antes para o velho fado da Tendinha, que foi o que logo me acudiu com a leitura do JOÃO PEDRO MARQUES, por isso transcrevo, com devoção a letra, da Internet, minha fonte de apoio preferida:

VELHA TENDINHA
Letra: José Galhardo. Música: Raul Ferrão.
Intérpretes: Hermínia Silva / Amália Rodrigues / Carminho / Dulce Pontes

Junto ao arco do Bandeira há uma loja a Tendinha
De aspecto rasca e banal
Na história da bebedeira aquela casa velhinha
é um padrão imortal

Velha taberna nesta Lisboa moderna
És a tasca humilde e terna que mantém a tradição
Velha tendinha és o templo da pinguinha
Dos dois bancos, da gimbrinha, da boémia e do pifão
Velha tendinha...

Noutros tempos, os fadistas vinham, já grossos das hortas
P’r’ó seu balcão caturrar,
E os fidalgos e os artistas iam p’r’ ali, horas mortas
Ouvir o fado e cantar

Velha taberna...

Daí, e por conta da ginginha, como explicação lógica, a espera infinita e indefinida de Godot.

À espera de Godot

Tenho uma posição construtiva, mas tento construir uma coisa muito diferente da dos activistas woke. É assim que entendo a História e a minha responsabilidade cívica face a ela e aos meus concidadãos.

JOÃO PEDRO MARQUES Historiador e romancista

OBSERVADOR, 20 dez. 2024, 00:1833

Descobrir

O meu anterior artigo no Observador,“Reparações nunca! Seriam um nó cego”, irritou e inquietou o licenciado em direito e historiador João Moreira da Silva, que veio prontamente responder-lhe, o que desde já lhe agradeço.

Aparentemente as suas irritação e inquietação — que são palpáveis — tê-lo-ão baralhado quanto à tese central desse meu artigo. Essa tese não é, como Moreira da Silva afirma, a de que “a gente woke (…) é um inimigo a abater”, mas sim a de que reparações históricas seriam um nó que nunca mais conseguiríamos desatar — e daí o título do artigo. E porque é que seriam esse nó cego? Porque se eventuais quotas especiais de acesso às universidades, devoluções de peças museológicas às ex-colónias e medidas de apoio ou favorecimento dirigidas à parte negra da nossa população fossem entendidas como uma reparação histórica, elas seriam irreversíveis porque, como escrevi nesse artigo, “a História, entendida aqui no sentido de factos passados, estará lá sempre, perpetuamente, a justificá-las e a avalizá-las”.

Essa é a ideia central desse meu artigo, que aqui reafirmo: reparações nunca! Seriam um nó cego. Todavia, em vez de a analisar e contestar, João Moreira da Silva preferiu focar-se nos temas do tempo e do viço e na seguinte pergunta: será que o movimento reparacionista já murchou em Portugal, ou estará apenas a começar (ideia e esperança que Moreira da Silva acalenta)? De facto, quem ler o seu artigo poderá pensar que a questão das reparações estará agora a nascer e que os reparacionistas ainda se interrogam sobre o caminho a seguir. “O que é reparar?” — exemplifica ele — “Como se repara? Que entidades devem reparar? Apenas o Estado? Devem ser convocadas também outras instituições, como bancos ou a Igreja, que tenham lucrado com a ocupação colonial? E, ainda mais importante, a quem se deve pagar? A outros Estados? A descendentes de pessoas que sofreram às mãos do aparelho colonial português? Quem se deve sentar à mesa para decidir estas questões?”.

Ao contrário de João Moreira da Silva eu afirmo que o movimento está murcho — afirmo, aliás, que não floresceu em Portugal e espero que nunca floresça — e digo que o seu rumo está definido há muito tempo e as suas exigências também. De facto, a questão das reparações agita-se desde 2001, ano em que foi apresentada pelo historiador Hilary Beckles na Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban. Eu combato-a desde essa data madrugadora, como se pode ver neste artigo no Público. Beckles e outras pessoas da sua equipa escreveram vários livros sobre o assunto, nos quais Portugal é visado, bateram a várias portas com as suas exigências e as contas que querem apresentar-nos estão feitas: seriam 20 biliões de dólares de reparação ao Brasil se aceitássemos alinhar nesse discurso de assunção de culpas e nessa loucura. Ou seja, a questão e o debate não estão agora a começar, estão na agenda há 23 anos, com mais insistência desde 2017 e com um fugaz pico de premência em Abril-Maio de 2024, em virtude das declarações de Marcelo. Mas os cidadãos portugueses não lhe têm dado eco e ainda bem porque as reparações que havia a fazer já foram feitas. A partir de finais da década de 1830, Portugal esforçou-se para pôr fim ao tráfico de escravos; pôs, depois, termo à escravidão e ao trabalho forçado e deixou nas suas ex-colónias — Brasil incluído — muito do que lá conseguiu criar nos anos em que as administrou: estruturas habitacionais, viárias, portuárias, grandes obras de engenharia, hospitais, escolas, etc. Estamos em paz com esses países, não temos entre nós muitos descendentes dos africanos traficados para as Américas, nada há a reparar. Há muito a apoiar, reconheço, mas nada a reparar.

Sim, João Moreira da Silva, essa é uma gaveta fechada, ainda que as mãos da gente woke a queiram constantemente reabrir. É verdade que as desigualdades do presente — o meu contraditor tem razão nisso — nascem do passado. Mas até onde quererá ele recuar para as apurar? Até à queda de Corinto? Até Adão e Eva? E por que razão não estão os woke interessados em lutar contra certas desigualdades, como, por exemplo, as que dizem respeito aos brancos pobres? As gavetas da escravatura e do colonialismo estão fechadas, esses assuntos estão resolvidos como foi possível fazê-lo e os portugueses têm essas questões pacificadas. Como sei isso? Basta interpretar as manifestações (ou ausência delas) nestes últimos anos, e ler o que se escreve nas redes sociais e nas caixas de comentários dos jornais. Terá Moreira da Silva lido o que os seus leitores no Público e no Observador pensam do que lá escreve? Talvez por estar em Inglaterra, onde o wokismo — ou wokeness, como lá se diz — é mais visível (e risível), o meu interlocutor tem uma ideia errada do que aqui se passa e está ansiosamente à espera de, como diz, “um debate que explodirá, inevitavelmente, no solo nacional”. Esse seu sentimento lembra-me certas passagens de uma peça de Samuel Beckett em que os actores usam a frase à espera de Godot” para descrever uma situação em que esperam qualquer coisa que provavelmente nunca acontecerá. A peça, aliás, termina da seguinte forma: “Então, vamos?”, sugere Valdimir; “Sim, vamos”, diz Estragon; mas nenhum dos dois se move.

Estará João Moreira da Silva igualmente à espera de Godot? É o que parece, de facto. Alude, até, à Declaração do Porto como prova de vida do movimento reparacionista e como exemplo de que não há incompatibilidade entre visar reparações pelo passado e pelas circunstâncias do presente. Vejamos uma coisa de cada vez, começando pela Declaração do Porto como alegado testemunho da pujança do wokismo em Portugal. Na verdade, esse documento mostra precisamente o contrário. No verão de 2023 dez pessoas woke originárias do Senegal, de Angola, de Portugal e do Brasil, entre as quais o conhecido activista Mamadou Ba, reuniram-se no Porto para um encontro dito académico a que chamaram “Oficina de Reparações” e produziram uma pomposamente designada “Declaração do Porto”, ou seja, um caderno reivindicativo no qual, entre outras coisas, se exigia ao Estado português que formalizasse pedidos de desculpa pela existência, no passado, de escravatura e trabalho forçado; que anulasse todas as dívidas contraídas pelos países colonizados por Portugal e que pagasse indemnizações às pessoas lesadas pelo colonialismo; que garantisse a condenação efectiva de pessoas acusadas — simplesmente acusadas, note-se — de racismo; que descolonizasse os manuais escolares, submetendo-os à apreciação de uma comissão formada por pessoas racializadas; que restituísse os objectos museológicos às comunidades colonizadas; que procedesse ao desmantelamento de estátuas e monumentos que os activistas consideram racistas; e que descolonizasse o hino e todos os símbolos nacionais que de alguma forma exaltassem o passado colonial. Insuflada de entusiasmo militante essa dezena de activistas wokepôs a sua “Declaração do Porto” a circular na internet com vista à recolha de assinaturas. Esperavam, obviamente, uma grande adesão à iniciativa, mas o resultado foi tão escasso, tão aquém das metas dos activistas, que a “Declaração” morreu à nascença e se teve alguma projecção nacional terá sido graças a um artigo que então sobre ela escrevi — o que uma das woke envolvidas, Inês Beleza Barreiros, expressamente me agradeceu.

Moreira da Silva alega que a “Declaração” junta o desejo de reparar injustiças recentes e de crimes passados, e que isso mostraria como eu estava errado em ter separado esses desejos, como se fossem opostos. Mas na verdade eu não os separei, foi o meu opositor que o fez, imaginando que eu havia operado uma divisão ou contraposição entre “wokes aceitáveis” e “wokes deploráveis”. Essa é uma terminologia que o meu contraditor decidiu pôr na minha boca, coisa que, aliás e lamentavelmente, faz por diversas vezes no seu artigo. Se eu quisesse usar algum adjectivo para, naquele contexto, me referir aos woke que querem reparações históricas, nunca usaria a palavra “deploráveis”, mas sim “argutos”, pois estão a tentar dar-nos um nó cego com essa ideia das reparações. Também nunca falaria em “wokes aceitáveis” porque para mim são todos insuportáveis. Eu combato o pensamento pós-moderno que está na origem do que chamamos wokismo, esse ansioso neto do pós-modernismo, esse flagelo colectivo que leva a que pessoas se penitenciem pelo facto de ascendentes seus terem tirado vantagem económica da escravatura. Isso é comum no Reino Unido, como João Moreira da Silva saberá, mas aqui em Portugal é felizmente raríssimo. Apenas conheço o caso de uma jovem jornalista, curiosamente residente há largos anos em Inglaterra, que se sente culpada por descender de gente que nos séculos XVIII e XIX esteve ligada, em Angola, ao tráfico transatlântico de escravos, e que vem, através de uma confissão pública, tentar remir os pecados e faltas desses seus distantes parentes.

João Moreira da Silva termina o seu artigo com uma recriminação. Diz ele o seguinte: “um historiador como João Pedro Marques, com uma vasta obra publicada sobre a história da escravatura e do Império Português, poderia ter uma contribuição construtiva para um debate que explodirá, inevitavelmente, no solo nacional.” Infelizmente, lamenta Moreira da Silva, eu ter-me-ia demitido de “um papel construtivo nesse debate” ao considerar que “o colonialismo português é um assunto terminado, fechado e arrumado na gaveta do passado”. Mas há aqui um óbvio mal-entendido que decorre de termos conceitos diferentes sobre o significado da palavra “construtivo. Na verdade, não me demiti do debate, assumi-o desde o início e mantenho-me nele. Sem contar com o que escrevi e disse em entrevistas, livros, artigos académicos, debates televisivos e intervenções na rádio, produzi, nos últimos sete anos, e no contexto desse debate, perto de 150 artigos em jornais. Penso que por essa e outras vias fui construtivo no sentido de ter eventualmente contribuído para que os meus concidadãos pudessem formar uma opinião mais verdadeira — eu sei que para os woke a verdade histórica é uma coisa vaga e ajustável a todos os gostos, mas para mim não o é — sobre o tráfico transatlântico de escravos e as várias formas de escravidão. Ou seja, eu tenho uma posição construtiva, mas tento construir uma coisa muito diferente — simétrica, até — do que os activistas woke (ou do Social Justice Movement se João Moreira da Silva preferir) procuram fazer. É assim que entendo a História e a minha responsabilidade intelectual e cívica face a ela e aos meus concidadãos. Exponho aquilo que sei. Depois cada pessoa, com as suas inclinações políticas, a sua sensibilidade e a informação que foi recolhendo formará a sua opinião sem ter de ficar à espera de Godot.

 

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