E o texto do Historiador e
romancista JOÃO PEDRO MARQUES,
frisando a insistência da comunidade woke na condenação dos energúmenos
descobridores escravizadores de pagar àqueles a quem a seu tempo invadiram as
terras, inspirados de certeza nos vândalos e C.ia que uns milénios antes se tinham
expandido e fundido com os romanos e C.ia, estes, por sua vez, mais uns
séculos antes, tendo ocupado as terras da velha Europa, nem sei se a transformada por
Zeus em bezerra, por via dos ciúmes da Hera, mas o certo é que deu nome ao
continente que percorreu, talvez a querer safar-se das investidas do safado
patrono dos deuses. Com isto, quero mostrar que as ocupações das terras são
coisa antiga e até acho a praticada
pelos navegadores europeus, de que os portugueses foram pioneiros, bem mais
arrojada do que a dos montadores asiáticos e europeus dos
cavalos, embora a guerra de Tróia também se tivesse iniciado por barco, mas foi
travessia de pouca dura, e o Alexandre Magno, esse sim, e transcrevo da
Internet, «passou a maior parte de seus anos no poder em uma
série de campanhas militares sem precedentes através da Ásia e nordeste da África. Até aos
trinta anos havia criado um dos maiores impérios do mundo antigo, que se estendia da Grécia para o Egipto e ao noroeste da Índia». Acho portanto que era aos gregos que os da nossa
cultura woke se deviam dirigir em primeiro lugar, a exigir indemnizações e
devoluções, mas realmente o meu espírito ameno levou-me antes para o velho fado
da Tendinha, que foi o que logo me acudiu com a leitura do JOÃO
PEDRO MARQUES, por isso transcrevo, com devoção a letra, da
Internet,
minha fonte de apoio preferida:
VELHA TENDINHA
Letra: José Galhardo. Música: Raul Ferrão.
Intérpretes: Hermínia Silva / Amália
Rodrigues / Carminho / Dulce Pontes
Junto ao arco do Bandeira há uma loja a
Tendinha
De aspecto rasca e banal
Na história da bebedeira aquela casa velhinha
é um padrão imortal
Velha taberna nesta Lisboa moderna
És a tasca humilde e terna que mantém a
tradição
Velha tendinha és o templo da pinguinha
Dos dois bancos, da gimbrinha, da boémia e do
pifão
Velha tendinha...
Noutros tempos, os fadistas vinham, já grossos
das hortas
P’r’ó seu balcão caturrar,
E os fidalgos e os artistas iam p’r’ ali, horas
mortas
Ouvir o fado e cantar
Velha taberna...
Daí, e
por conta da ginginha, como explicação lógica, a espera infinita e indefinida de
Godot.
À espera de Godot
Tenho uma
posição construtiva, mas tento construir uma coisa muito diferente da dos
activistas woke. É assim que entendo a História e a minha responsabilidade
cívica face a ela e aos meus concidadãos.
JOÃO PEDRO MARQUES
Historiador e romancista
OBSERVADOR, 20 dez. 2024, 00:1833
O meu anterior
artigo no Observador,“Reparações nunca! Seriam um nó cego”, irritou e inquietou o licenciado em direito e historiador João Moreira da Silva, que veio prontamente responder-lhe, o que desde já lhe agradeço.
Aparentemente as
suas irritação e inquietação — que são palpáveis — tê-lo-ão baralhado quanto à
tese central desse meu artigo. Essa
tese não é, como Moreira da Silva afirma, a de que “a gente woke (…) é um inimigo
a abater”, mas sim a de que
reparações históricas seriam um nó que nunca mais conseguiríamos desatar — e
daí o título do artigo. E
porque é que seriam esse nó cego? Porque
se eventuais quotas especiais de acesso às universidades, devoluções de peças
museológicas às ex-colónias e medidas de apoio ou favorecimento dirigidas à
parte negra da nossa população fossem entendidas como uma reparação histórica,
elas seriam irreversíveis porque, como escrevi nesse artigo, “a História, entendida aqui no sentido de
factos passados, estará lá sempre, perpetuamente, a justificá-las e a
avalizá-las”.
Essa é a
ideia central desse meu artigo, que aqui reafirmo: reparações nunca! Seriam um nó cego. Todavia, em vez de a analisar e
contestar, João Moreira da Silva preferiu focar-se nos temas do tempo e do viço
e na seguinte pergunta: será que o movimento reparacionista já murchou em
Portugal, ou estará apenas a começar (ideia e esperança que Moreira da Silva
acalenta)? De facto, quem ler o seu artigo poderá pensar que a
questão das reparações estará agora a nascer e que os reparacionistas ainda se
interrogam sobre o caminho a seguir. “O
que é reparar?” — exemplifica ele — “Como se repara? Que entidades devem reparar? Apenas o Estado? Devem ser
convocadas também outras instituições, como bancos ou a Igreja, que tenham
lucrado com a ocupação colonial? E, ainda mais importante, a quem se deve
pagar? A outros Estados? A descendentes de pessoas que sofreram às mãos do aparelho
colonial português? Quem se deve sentar à mesa para decidir estas questões?”.
Ao contrário de João Moreira
da Silva eu afirmo que o movimento está murcho — afirmo, aliás, que não
floresceu em Portugal e espero que nunca floresça — e digo que o seu rumo está
definido há muito tempo e as suas exigências também. De facto, a questão das
reparações agita-se desde 2001, ano em que foi apresentada pelo historiador
Hilary Beckles na Conferência Mundial Contra o Racismo, em Durban. Eu combato-a desde essa
data madrugadora, como se pode ver neste artigo no Público. Beckles e outras pessoas da
sua equipa escreveram vários livros sobre o assunto, nos quais Portugal é
visado, bateram a várias portas com as suas exigências e as contas que querem
apresentar-nos estão feitas: seriam 20 biliões de
dólares de reparação ao Brasil se aceitássemos
alinhar nesse discurso de assunção de culpas e nessa loucura. Ou seja, a questão e o debate não estão
agora a começar, estão na agenda há 23 anos, com mais insistência desde 2017 e
com um fugaz pico de premência em Abril-Maio de 2024, em virtude das
declarações de Marcelo. Mas os cidadãos portugueses
não lhe têm dado eco e ainda bem porque as reparações que havia a fazer já
foram feitas. A partir de finais da década de 1830, Portugal esforçou-se para pôr fim ao tráfico de escravos; pôs, depois, termo à
escravidão e ao trabalho forçado e deixou nas suas ex-colónias — Brasil
incluído — muito do que lá conseguiu criar nos anos em que as administrou:
estruturas habitacionais, viárias, portuárias, grandes obras de engenharia,
hospitais, escolas, etc. Estamos em paz com esses países, não temos
entre nós muitos descendentes dos africanos traficados para as Américas, nada
há a reparar. Há muito a apoiar, reconheço, mas nada a reparar.
Sim, João Moreira da Silva, essa é uma gaveta fechada, ainda que as mãos da
gente woke a queiram constantemente reabrir. É verdade que as desigualdades do
presente — o meu contraditor tem razão nisso — nascem do passado. Mas até onde
quererá ele recuar para as apurar? Até à queda de Corinto? Até Adão e Eva? E
por que razão não estão os woke interessados em lutar contra certas
desigualdades, como, por exemplo, as que dizem respeito aos brancos pobres? As gavetas da escravatura e do colonialismo estão fechadas, esses
assuntos estão resolvidos como foi possível fazê-lo e os portugueses têm essas questões
pacificadas. Como sei isso? Basta interpretar as manifestações (ou ausência
delas) nestes últimos anos, e ler o que se escreve nas redes sociais e nas
caixas de comentários dos jornais. Terá Moreira da Silva lido o
que os seus leitores no Público e no Observador pensam do que lá
escreve? Talvez por estar em Inglaterra, onde o wokismo — ou wokeness,
como lá se diz — é mais visível (e risível), o meu interlocutor tem uma ideia errada
do que aqui se passa e está ansiosamente à espera de, como diz, “um debate que
explodirá, inevitavelmente, no solo nacional”. Esse seu sentimento lembra-me certas passagens de uma peça de Samuel
Beckett em que os actores usam a frase “à espera de
Godot” para
descrever uma situação em que esperam qualquer coisa que provavelmente nunca
acontecerá. A peça, aliás, termina da seguinte forma: “Então, vamos?”, sugere Valdimir; “Sim, vamos”, diz Estragon; mas nenhum dos dois se move.
Estará João Moreira da Silva
igualmente à espera de Godot? É o que parece, de facto.
Alude, até, à Declaração do Porto como prova de vida do movimento
reparacionista e como exemplo de que não há incompatibilidade entre visar reparações pelo passado e pelas
circunstâncias do presente. Vejamos uma
coisa de cada vez, começando pela Declaração do
Porto como alegado testemunho da pujança do wokismo em
Portugal. Na verdade, esse documento mostra precisamente
o contrário. No verão de 2023 dez pessoas woke
originárias do Senegal, de Angola, de Portugal e do Brasil, entre as quais o
conhecido activista Mamadou Ba, reuniram-se no Porto para um encontro dito académico a que chamaram “Oficina de Reparações” e produziram
uma pomposamente designada “Declaração do Porto”, ou seja, um caderno reivindicativo
no qual, entre outras coisas, se exigia ao Estado português que formalizasse
pedidos de desculpa pela existência, no passado, de escravatura e trabalho
forçado; que anulasse todas as dívidas contraídas pelos países colonizados por Portugal
e que pagasse indemnizações às pessoas lesadas pelo colonialismo; que
garantisse a condenação efectiva de pessoas acusadas — simplesmente acusadas,
note-se — de racismo; que descolonizasse os manuais escolares, submetendo-os à
apreciação de uma comissão formada por pessoas racializadas; que restituísse os
objectos museológicos às comunidades colonizadas; que procedesse ao
desmantelamento de estátuas e monumentos que os activistas consideram racistas;
e que descolonizasse o hino e todos os símbolos nacionais que de alguma forma
exaltassem o passado colonial. Insuflada de entusiasmo militante essa dezena de
activistas wokepôs a sua
“Declaração do Porto” a circular na internet com vista à recolha de assinaturas.
Esperavam, obviamente, uma grande adesão à iniciativa, mas o resultado foi
tão escasso, tão aquém das metas dos activistas, que a “Declaração” morreu à
nascença e se teve alguma projecção nacional terá sido graças a um artigo que então sobre ela escrevi — o que uma das woke
envolvidas, Inês Beleza Barreiros, expressamente me agradeceu.
Moreira da Silva alega que a “Declaração” junta o
desejo de reparar injustiças recentes e de crimes passados, e que isso
mostraria como eu estava errado em ter separado esses desejos, como se fossem
opostos. Mas na verdade eu não os separei, foi o meu opositor que o fez,
imaginando que eu havia operado uma divisão ou contraposição entre “wokes
aceitáveis” e “wokes deploráveis”. Essa é uma
terminologia que o meu contraditor decidiu pôr na minha boca, coisa que, aliás
e lamentavelmente, faz por diversas vezes no seu artigo. Se eu quisesse usar
algum adjectivo para, naquele contexto, me referir aos woke que querem
reparações históricas, nunca usaria a palavra “deploráveis”, mas sim “argutos”, pois estão
a tentar dar-nos um nó cego com essa ideia das reparações. Também nunca
falaria em “wokes aceitáveis” porque
para mim são todos insuportáveis. Eu combato o pensamento
pós-moderno que está na origem do que chamamos wokismo, esse ansioso neto do
pós-modernismo, esse flagelo colectivo que leva a que pessoas se penitenciem
pelo facto de ascendentes seus terem tirado vantagem económica da escravatura.
Isso é comum no Reino Unido, como João Moreira da Silva saberá, mas aqui em
Portugal é felizmente raríssimo. Apenas conheço
o caso de uma jovem jornalista, curiosamente residente há largos anos em Inglaterra, que se sente
culpada por descender de gente que nos séculos XVIII e XIX esteve ligada, em
Angola, ao tráfico transatlântico de escravos, e que vem, através de uma
confissão pública, tentar remir os pecados e faltas desses seus distantes
parentes.
João Moreira
da Silva termina o seu artigo com uma recriminação. Diz ele o seguinte: “um historiador como João Pedro Marques, com uma
vasta obra publicada sobre a história da escravatura e do Império Português, poderia
ter uma contribuição construtiva para um debate que explodirá, inevitavelmente,
no solo nacional.” Infelizmente, lamenta Moreira da Silva, eu ter-me-ia
demitido de “um papel construtivo nesse debate” ao considerar que “o
colonialismo português é um assunto terminado, fechado e arrumado na gaveta do
passado”. Mas há aqui um óbvio mal-entendido que decorre de termos conceitos
diferentes sobre o significado da palavra “construtivo”. Na verdade, não me demiti do debate,
assumi-o desde o início e mantenho-me nele. Sem contar com o que escrevi e
disse em entrevistas, livros, artigos
académicos, debates televisivos e intervenções na rádio, produzi, nos últimos
sete anos, e no contexto desse debate, perto de 150 artigos em
jornais. Penso que por essa e outras vias fui construtivo no sentido de ter
eventualmente contribuído para que os meus concidadãos pudessem formar uma
opinião mais verdadeira — eu sei que para os woke a verdade histórica é uma
coisa vaga e ajustável a todos os gostos, mas para mim não o é — sobre o
tráfico transatlântico de escravos e as várias formas de escravidão. Ou
seja, eu tenho uma posição construtiva, mas tento construir uma coisa muito
diferente — simétrica, até — do que os activistas woke (ou do Social Justice
Movement se João Moreira da Silva preferir) procuram fazer. É assim que entendo
a História e a minha responsabilidade intelectual e cívica face a ela e aos
meus concidadãos. Exponho aquilo que sei. Depois cada pessoa, com as suas
inclinações políticas, a sua sensibilidade e a informação que foi recolhendo
formará a sua opinião sem ter de ficar à espera de Godot.
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