Repugnante de bestialidade.
Que inventou as boas fadas, mas
igualmente as bruxas malvadas, para aprendermos cedo, tal o pepino, torcido de
pequenino, quais os pequeninos que hoje se vêem, nas imagens monstruosas do
mundo implacável. Mas os dados de pesadelo, revelados neste texto, deixam-nos
incrédulos sobre tanta crueldade sofrida, que aqui se denuncia. Será gente,
essa que protagonizou tanta imundície moral no seu poder de actuação?
O fim do "matadouro" de Assad,
a mais brutal prisão síria. Os relatos de Sednaya e o mistério das celas
subterrâneas
Com a queda
de Assad, rebeldes e civis invadiram as prisões do regime para encontrar
familiares. Na maior e mais mortal prisão, há milhares de desaparecidos — que
poderão estar em prisões secretas.
MADALENA MOREIRA: Texto
OBSERVADOR, 09 dez. 2024, 23:055
Índice
As
buscas pelos prisioneiros nos subterrâneos de Sednaya, que ninguém encontrou
Tortura,
“exterminação” e um crematório. O “matadouro” de Damasco que suportou a guerra
de Assad
Os
libertados de Alepo e Hama, os reencontros e as chamadas para o estrangeiro
Dezenas de homens correm pelas ruas. “O que está a acontecer?”,
pergunta um deles. “O regime caiu“, responde a voz atrás da câmara.
“Ah”, responde o homem, e continua a correr. Este vídeo é um de muitas centenas que foram gravados ao longo de
domingo — horas depois de os rebeldes sírios terem deitado abaixo o
regime de Bashar al-Bassad — e foi gravado perto da prisão de Sednaya, nos
arredores de Damasco, onde milhares de presos foram libertados pela oposição.
Sednaya, conhecida como “o
matadouro”, era o “centro de uma rede industrial” de prisões do regime. Estima-se que, ao todo, estivessem
detidas por toda a Síria 136 mil pessoas, muitas delas vítimas da brutal
repressão do regime, que este sistema de detenção ajudou a manter. A entrada
dos rebeldes na prisão revelou um cenário de violência que Assad negou
continuamente: presos esfomeados, doentes, com marcas de tortura, sem acesso a
higiene.
Não só em Damasco, mas um pouco por todo
o país, autoridades civis, cidadãos e jornalistas juntaram-se aos rebeldes
dentro das prisões. As autoridades desdobraram-se em esforços para encontrar
pessoas que estariam em celas subterrâneas. Os civis procuravam familiares
presos que estavam desaparecidos há anos e dos quais desconheciam o paradeiro. Alguns prisioneiros desconheciam até que Assad filho
tinha substituído Assad pai no poder, quanto mais que esse poder tinha caído.
Os jornalistas capturaram imagens brutais, mas também histórias de
esperança e de reencontros.
As buscas pelos prisioneiros nos subterrâneos de
Sednaya, que ninguém encontrou
Quando os rebeldes invadiram
Sednaya, as primeiras imagens foram semelhantes às que já tinham sido vistas noutras
cidades: principalmente homens, magros, de cabeça rapada,
muitos deles com dificuldades em andar ou falar. O The Guardian relata a história de um estudante de medicina que foi
preso há 13 anos. A história foi partilhada pela família, porque o homem, agora
com 33 anos, perdeu a memória e mal consegue falar.
Outras imagens mostram os rebeldes a entrar numa parte da prisão em
que estão detidas mulheres. As
vozes atrás das câmaras dizem-lhes para não terem medo, que as vão libertar. Vê-se também uma criança pequena, que vivia dentro da
prisão com a mãe. Uma imagem viral, o “rosto”da nova Síria, chamam-lhe. Rapidamente,
os civis juntaram-se aos rebeldes dentro das prisões e instala-se o caos quando
circularam relatos de que Sednaya teria uma ala subterrânea com milhares de
detidos — a ala vermelha. Muitos deles, estariam “a sufocar até à morte”,
devido à falta de ventilação.
A administração local de
Damasco recorreu às redes sociais para fazer um apelo a soldados e guardas
prisionais do regime, que tinham abandonado os seus postos quando os rebeldes
se aproximaram da cidade. Pediam-lhes, conta a BBC, que divulgassem
os códigos de acesso electrónico à ala subterrânea para libertar prisioneiros
“que podiam ser vistos nas imagens de videovigilância”.
Face aos relatos, a Defesa Civil
da Síria — a organização conhecida como os Capacetes
Brancos — activou
equipas de busca e salvamento, que incluíam especialistas de arrombamento,
unidades caninas, pessoal médico e guias que conheciam a prisão. “Os Capacetes Brancos enviaram cinco
equipas de emergência especializadas para a prisão de Sednaya para investigar
celas subterrâneas escondidas, que, segundo os sobreviventes, albergam detidos”,
escreveram no X.
Imagens captadas por um repórter
do The Guardian em
Damasco mostram os rebeldes a tentar decifrar plantas da prisão para encontrar
as celas que podiam ver nas câmaras, mas às quais não tinham acesso. Noutras,
partilhadas pela Al
Jazeera, estão civis a
destruir o chão e as paredes para forçarem acessos.
Milhares de pessoas entravam nas celas à
procura de familiares. “Disseram-nos que havia três níveis subterrâneos e que
as pessoas estavam a sufocar, mas não sabemos onde são”, diz um
homem ao jornal britânico, dentro da prisão. “Os que saíram daqui pareciam esqueletos.
Imagine como estarão os que estão no subterrâneo“, acrescenta.
As buscas duraram toda a
noite, mas os prisioneiros da ala vermelha não foram encontrados. Entre eles
estaria o tio de Yamen al-Allay, que desapareceu em 2017. O rapaz
de 18 anos abandonou a prisão na madrugada de segunda-feira, sem o ter
encontrado, assim como muitas outras pessoas que prometeram voltar. Ao mesmo
tempo, milhares de sírios continuavam a chegar a Damasco de outras partes do
país para continuarem as buscas pelos seus familiares.
Contudo, na tarde de
segunda-feira, a Associação pelos Detidos e Desaparecidos na Prisão de Sednaya
(ADMSP) esclareceu que todos os prisioneiros tinham sido libertados. Mais:
nenhum tinha sido mantido em subterrâneos. “Não há nenhuma verdade em detidos
presos debaixo da terra. A associação e toda a equipa dentro da prisão
podem confirmar que está vazia, sem detidos, em todos os seus edifícios“,
afirmou a associação, num comunicado citado pela BBC. Ainda assim, ao longo do dia os Capacetes
Brancos mantiveram as buscas por “portas escondidas e caves não descobertas”.
Tortura, “exterminação” e um
crematório. O “matadouro” de Damasco que suportou a guerra de Assad
Chegaram a estar presas em
Sednaya 20 mil pessoas. Muitas delas morreram na prisão, muitas mais foram
sujeitas a tortura. No primeiro ano de guerra, 13 mil pessoas foram mortas em
Sednaya: duas vezes por semana, dezenas de pessoas eram retiradas da cela a
meio da noite para serem enforcadas — os seus corpos eram enterrados em valas
comuns. “Sednaya é o fim da Humanidade”, denunciou um antigo guarda da prisão
à Amnistia Internacional.
Segundo a Syrian Network for Human Rights (SNHR), mais de 136 mil
pessoas foram presas pelo regime de Assad entre março de 2011 e agosto de 2024,
espalhadas por prisões e centros de detenção por todo o país. Mas o destino
final dos prisioneiros era, muitas vezes, a prisão de Sednaya, onde chegaram a
estar presas em simultâneo as tais 20 mil pessoas, relatou a Amnistia
Internacional.
"O
governo cometeu crimes contra a Humanidade de exterminação, assassinato,
violação ou outras formas de abuso sexual, tortura, detenção, desaparecimento
forçado e outros crimes desumanos." Relatório da OHCHR da ONU, de fevereiro
de 2016
Já o alto-comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos realizou centenas de entrevistas com antigos detidos.
“O governo cometeu crimes contra a
Humanidade de exterminação, assassinato, violação ou outras formas de
abuso sexual, tortura, detenção, desaparecimento forçado e outros crimes
desumanos“, pode ler-se no relatório que daí resultou, apresentado em fevereiro
de 2016.
A maior parte dos prisioneiros
testemunhou colegas de cela a morrer: espancados até à morte, vítimas de
ferimentos infligidos em interrogatórios ou de doenças contagiosas para as
quais não receberam medicação, higiene ou alimentação adequada para as combater. As Nações
Unidas e as ONG que se debruçaram sobre o tema são unânimes no nome que dão a Sednaya: o
matadouro. Imagens de satélite captadas em 2017 mostram a
construção de um novo edifício, um crematório, que oculta a verdadeira escala
dos massacres que ocorreram na prisão.
▲ 13 mil
pessoas foram mortas em Sednaya no primeiro ano da guerra Anadolu via Getty
Images
Depois de as equipas dos Capacetes
Brancos entrarem na prisão de Sednaya, os repórteres da Anadolu fotografaram
salas cheias de sapatos perdidos e roupas. Charles Lister, director do
Instituto MEI Síria, escreve na rede social
X que “as cenas que estão a sair de Sednaya são assustadoras”. “Isto
não era só uma prisão e um centro de tortura, era um campo de concentração. Um
verdadeiro horror.”
Lister fala em “montanhas de corpos”,
“salas cheias de roupas e sapatos perdidos”, “esqueletos” ou “corpos
parcialmente destruídos por ácido”.
Mas Sednaya foi apenas o coração de
um sistema “à escala industrial” que permitiu ao regime de Assad deter,
prender, torturar e matar rebeldes e simpatizantes — muitos deles civis — e
travar a rebelião que se levantou contra ele. Documentos confidenciais dos
serviços de segurança sírios, citados pelo The Guardian,
descrevem o sistema de detenção como “chave para esmagar dissidentes e travar o
ímpeto dos protestos pacíficos”.
Ou seja, enquanto o exército sírio, com a ajuda da
Rússia e do Hezbollah, combatia os rebeldes, as prisões e centros de detenção —
e os métodos brutais que punham em prática — faziam frente à oposição civil. As
detenções também foram feitas pelas outras partes envolvidas na guerra, como o
autoproclamado Estado Islâmico ou os rebeldes do Hayat Tahri al-Sham (HTS), que
agora fizeram cair o regime. Mas olhar novamente para os números da SNHR
permite ver que 85% de todas as detenções foram feitas por forças do regime.
Os libertados de Alepo e Hama, os
reencontros e as chamadas para o estrangeiro
Dada a relevância que as prisões tiveram para a manutenção do regime
de Assad, é compreensível que os rebeldes do HST tenham definido como
prioridade a libertação dos prisioneiros. Porém, essa campanha começou bem
antes de domingo: em cada cidade que tomavam, a caminho de Damasco, as portas
das prisões eram abertas.
Em
Alepo, cerca de 5 mil pessoas foram libertadas no dia 29 de novembro. Safi al-Yassin, um homem de 49 anos, foi
uma destas pessoas e relata à Al Jazeera a “felicidade
indescritível”.
Encontrava-se a cumprir uma pena de 31 anos por ter participado num protesto em
2011. Da sua libertação, recorda o som
dos confrontos e depois o silêncio, seguido de cânticos vitoriosos. Do
cativeiro, lembra os 14 anos de “tortura severa física e psicológica”, um dos
quais foi passado em Sednaya, que diz ser “indescritível” e onde viu um homem
idoso com quem partilhava a cela a morrer.
▲Os rebeldes
tomaram Alepo a 29 de novembro KARAM AL-MASRI/EPA
Mas este cenário de horror também foi vivenciado em Alepo, descreveu
Hala ao mesmo canal. A
mulher relata a morte de uma rapariga de 16 anos, que morreu ao seu lado,
depois de ser torturada. A jovem tinha sido presa juntamente com um estudante
universitário, uma idosa e dois médicos, acusados de terem dado tratamento a
insurgentes. Agora, Hala quer focar-se na alegria maior de ter contactado
novamente a família: “Foi como se tivesse nascido outra vez“.
Hala
já reencontrou a família. Mas muitos, como Ali Hassan al-Ali ainda não tiveram
essa sorte. Foi detido em 1986, à data com 18 anos, no norte do Líbano. Na
passada quinta-feira foi libertado da prisão de Hama, a meio caminho entre
Alepo e Damasco. O relato da sua história foi feito ao The Guardian pelo
irmão mais novo, Moammar Ali, que soube da libertação depois de ter recebido
uma série de mensagens de amigos e família, que lhe estavam a enviar
fotografias de um prisioneiro libertado em frente à prisão de Hama, dizendo que
eram parecidos. Era o irmão, 39 anos depois. Agora, Ali vive em Akkar, no
Líbano e ainda não se reencontrou com Moammar. “Quando ele vier para casa,
teremos uma grande celebração. Mas até o cheirar, até poder dizer ‘Aqui está o
meu irmão’, não conta”, diz Ali.
▲As pessoas
reúnem-se à procura de familiares Anadolu via Getty Images
Jihad
Dalain também ainda não reencontrou o irmão, Majd, de 24 anos, relata o Washington Post.
Mas já falou com ele por telefone. Majd foi detido em 2023, na cidade síria de
Darayya. Os Dalain acabaram por se mudar para o sul da Turquia. Foi aí que
Jihad recebeu uma videochamada do irmão, na manhã de domingo, a anunciar que ia
voltar para casa. Majd estava detido na prisão de Adra, em Damasco, a última
cidade a ser libertada pelos rebeldes.
Listas de nomes, centenas à porta da
prisão e recompensas das autoridades. Onde estão os desaparecidos?
As autoridades não têm a certeza de
quantas pessoas estarão desaparecidas. Os dados das ONG apontam para cerca de
100 mil. Mas o fundador da SNHR, Fadel Abdulghany, adianta
que muitos poderão ter morrido na prisão. “Muitos dos que já desapareceram
antes, acabámos por descobrir que tinham sido mortos. Um número considerável foi morto sob tortura”,
afirmou ao The Guardian. O facto de
muitas das pessoas mortas em Sednaya terem sido enterradas em valas comuns ou
cremadas impede que sejam identificadas.
A isso somam-se os relatos contraditórios sobre a existência de
subterrâneos em Sednaya. Os Capacetes Brancos anunciaram, na segunda-feira, uma recompensa
financeira de 3 mil dólares (2,800 euros) a qualquer pessoa que tenha
informações directas sobre como identificar qualquer prisão secreta.
▲ Centenas
de pessoas assistem aos trabalhos dos Capacetes Brancos, à procura de prisões
secretas AFP via Getty Images
As histórias de reencontros alimentam
a esperança dos milhares de pessoas que invadiram as prisões à procura dos seus
familiares — por todo o país, terão sido 8 mil. Só em frente a Sednaya permaneceram
sentadas centenas, a ver os prisioneiros sair e à espera de ver caras
conhecidas entre os rostos marcados pela fome e pela violência.
Mas, como no caso de Moammar ou Jihad,
muitos sírios fugiram da guerra civil para o estrangeiro. Nas redes sociais multiplicaram-se listas
em que as pessoas podem adicionar o nome e — caso o saibam — o número de
prisioneiro dos familiares desaparecidos, para que as pessoas que estão a
participar nas buscas nas prisões os possam procurar. Uma destas listas chegou a Hanover, na
Alemanha, a Hussien Idris, que procura o irmão Ahmed, que, se estiver vivo,
terá 32 anos.
▲ Pessoas
consultam as listas de desaparecidos em Damasco Anadolu via Getty Images
No sentido contrário, activistas
em Damasco partilharam fotos de pessoas libertadas no Facebook, relata o
Washington Post. Na legenda, está um número de telefone para que a família
possa ligar caso reconheça as fotografias. Nenhuma destas iniciativas é uma
base de dados completa ou oficial para procurar os milhares de desaparecidos.
“Alguns dos rebeldes estão a tentar organizar as buscas, mas, até agora, não há
listas a sério”, adianta um dos fundadores da ADMSP, Diab Serriya, ao jornal
norte-americano.
CONFLITO NA SÍRIA SÍRIA MÉDIO ORIENTE
MUNDO PRISÃO SOCIEDADE
DIREITOS HUMANOS
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