Não livre. Preso às insatisfações - de revoltas e frustrações. Também pátrias – ou políticas - que os do anti salazarismo dos tempos de Salazar sempre entenderam por bem manifestar, nesses tempos de superioridade ledora ainda, talvez, de Karl Marx e C.ia, mais que os de hoje, os tais woke a debitar doutrinas piedosas, (centradas sobretudo no racismo, em que eles se inspiram, como ponto de honra, para atacar os antigos exploradores das tais “raças tristes e pretas”. Alexandre O’Neil era sobretudo um poeta egotista e analista do mundo em que se enquadrava, sem complacências verbais, numa criatividade artística, realçada pelo sarcasmo e a crueza angulosa das palavras.
No centenário de um "homem
livre": "O'Neill seria cancelado e haveria de rir-se disso"
Precursor do surrealismo, viveu
intensamente, da mesma forma que amou, pensou e jogou com as palavras
OBSERVADOR; 19
DEZ. 2024, 07:425
Índice
O’Neill e o surrealismo português
O excesso, as mulheres, o desejo
O amor que tinha a Lisboa era
enorme. Se a visse hoje, Alexandre O’Neill não iria reconhecer os turistas a
circular, os nómadas digitais ou os brunch places, mas iria certamente encontrar nela muita matéria
para escrever. É pelo menos essa a visão do poeta e professor de literatura
Fernando Pinto do Amaral, que considera residir também aí a actualidade da
poesia de O’Neill.
“A Lisboa de hoje tem muita coisa para alguém como o O’Neill poder fazer
uma desmontagem”, defende Pinto do Amaral. “Se vivesse agora, ele teria motivos para
momentos de emoção, sim, mas teria também motivos para a ironia, para a sátira,
para o sarcasmo. A Lisboa de hoje está repleta de apontamentos de ridículo, de
lugares que há 12 anos eram tascos de copos de três a um euro e são agora wine
bars a servir copos de vinho a dez euros.”
Gostamos da
poesia de O’Neill como gostamos de alguém da família, de um amigo, de um
namorado, que depois nos diz também as verdades e se ri de nós, explica Pinto do
Amaral, que em 2003 escreveu o texto Ironia e Ternura para o número da revista de poesia Relâmpago dedicado a O’Neill. É precisamente isso que este poeta e
professor universitário sente quando lê a poesia do poeta “caixa d’óculos”: fica comovido, enternecido, com a densidade
e profundidade quando lê os poemas sobre os velhos de Lisboa, sobre a paisagem,
sobre o amor. Mas depois, e
ao mesmo tempo, encontra na poesia deste que foi um precursor
do surrealismo em Portugal uma sátira e uma ironia
que desconstrói ideias, situações, pessoas,
hábitos. “Não temos muitos poetas
assim”, defende Pinto do Amaral. “Temos quem faça isso de vez em quando, mas, com
a acutilância do O’Neill, acho que não.” É para
assinalar o legado e, ao mesmo tempo, a ausência, que a Biblioteca Nacional inaugura a exposição No Reino de O’Neill, patente até 8 de março.
Alexandre
O’Neill, nascido a 19 de dezembro de 1924 (e que morreu a 21 de agosto de 1986), amava Lisboa, era acutilante, era excessivo, era incongruente. Fazia, no entender de Pinto do
Amaral, muita falta aos dias de hoje. “O O’Neill é um autor que lemos e temos sempre ali ângulos
diferentes. Não temos aquela carneirada de ir
atrás dos outros, de imitar os outros, de fazer uma coisa só porque está na
moda.” O’Neill tinha personalidade, algo que para Pinto do Amaral
está a tornar-se cada vez mais raro. “Somos
todos muito iguaizinhos, todos muito contentes, e o O’Neill era ultra-crítico
disso. Se o O’Neill fosse vivo agora, seria absolutamente maravilhoso o modo
como ele olharia para esta sociedade que nos rodeia.”
▲O’Neill
gostava de ler em voz alta e tinha um fascínio absoluto pela banalidade, pelo
lugar comum, que desmontava e remontava sob outra forma qualquer
O’Neill era muito denso, muito profundo, e, ao mesmo tempo, muito irónico,
leviano, sobre o que são os portugueses, sobre as idiossincrasias de Portugal. “É uma poesia que joga muito com as
palavras, mas que joga também com as emoções e com os sentimentos, nomeadamente
a ironia”, explica Pinto do Amaral, que chegou a cruzar-se com o poeta uma ou duas vezes, em tertúlias, tinha
ele 20 e poucos anos. “Aquela coisa de
pensarmos que ele está a brincar, mas não está. Ou então o levarmos a sério,
mas ele afinal está a brincar. O O’Neill joga permanentemente com isso.”
Procurava os absurdos, como neste excerto do poema
intitulado Portugal:
“Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos”
Os amigos, motor da biografia
Entre escrever um poema e ir jantar
com um amigo, Alexandre O’Neill preferia ir jantar com o amigo. Maria
Antónia Oliveira escreveu a biografia do poeta, que acabou por ser
publicada em versão revista e aumentada (Assírio & Alvim), precisamente a partir dos amigos, dos testemunhos dos
amigos – uns de infância, outros das tertúlias surrealistas, como Cesariny; uns
ficaram para sempre, outros perderam-se pelo decurso da vida. Chateavam-se e
nunca mais falavam, como foi o caso de um amigo de infância, Alexandre Pinheiro
Torres.
“A
impressão que tive do O’Neill, através desses depoimentos e dessas conversas,
foi essa lealdade que ele tinha para com os amigos”, conta
a autora de Alexandre O’Neill — Uma Biografia Literária. “O que notei é que as pessoas com quem eu
falava diziam, no final, por exemplo, de uma tarde ou de um almoço longo, ‘ai
que bom poder ter falado do Alexandre’. As pessoas gostavam de o recordar e
recordavam-se muito facilmente.”
Essa lealdade estendia-se ao
gosto pela partilha. Partilhava
o conhecimento que tinha, as coisas novas que lia, dava conselhos. E sabia também recebê-los, ouvia os
amigos. O’Neill gostava de ler em voz alta e tinha um fascínio absoluto pela banalidade, pelo
lugar comum, que desmontava e remontava sob outra forma qualquer. Adorava
vaguear pelas ruas, frequentava muito a zona do Princípe Real, onde existiam muitas
tertúlias, nos cafés Alsaciana e Cister. “Não digo que ele escrevesse poemas na rua, mas ele andava muito na
rua a recolher, a fazer o que ele chamava de recolhas, que depois utilizava nos
poemas”, conta Maria Antónia Oliveira. “Era uma pessoa muito virada para o exterior. Amava a vida.”
Alexandre O’Neill era
descendente de aristocratas irlandeses. Usava
inclusive o anel com o brasão da família, dado pelo pai, mas tão depressa o
colocava no prego como o emprestava aos amigos. A avó
paterna, Maria O’Neill, publicou o primeiro livro aos dez anos. Escreve
Maria Antónia Oliveira que era “uma
mulher de pulso, de personalidade forte, muito interventiva na vida política e
social do seu tempo”. Separou-se
do avô de Alexandre para ir atrás das suas paixões amorosas: um primo de quem
chegou a ter uma filha, um judeu russo que chegou a Lisboa para dar uma
conferência sobre vegetarianismo e naturismo. Foi ela quem organizou o
Primeiro Congresso Feminista e de Educação, em Lisboa, em 1924, ano em que nasce este seu neto, filho de José António, bancário, e de uma amarantina cujo pai
era médico e estava estabelecido em Lisboa. Dois anos mais tarde, um golpe militar
mergulhava Portugal num regime autoritário que perduraria 48 anos, primeiro com a Ditadura Nacional e depois com o Estado
Novo.
▲
A capa da "Biografia Literária" de Alexandre O'Neill, com
autoria de Maria Antónia Oliveira (Assírio & Alvim)
“O’Neill era de esquerda, antes e depois
do 25 de Abril”, afirma Maria Antónia Oliveira. Era anti-regime, mais do que militante político. A
militância que praticava era a cultural. Foi preso pela PIDE, porque fazia parte do grupo de pessoas que
foram esperar a feminista Maria Lamas ao aeroporto Sá Carneiro em
dezembro de 1953, quando regressava de um congresso sobre Paz. Esteve sempre muito ligado a pessoas
próximas ou mesmo militantes do PS, mas isso não o impedia de ser acutilante
para com estes seus amigos. É dele a frase “ele não merece, mas vota no
PS”. Conta-se que Mário Soares se riu muito do slogan, na altura.
Sempre a vaguear por empregos, e a sair
“definitivamente” da casa dos pais por diversas vezes, porque discutiam por
causa da vida libertina do filho, o “poeta caixa d’óculos” foi primeiro
escriturário e depois publicitário. É também de
O’Neill o famoso slogan que veio a tornar-se provérbio português: “Há mar e mar, há ir e voltar”. Foi, aliás, na
publicidade que encontrou a fonte de rendimento para tudo o que resto que lhe
interessava realmente: viver.
Alexandre O’Neill era, em essência, independente. “Quando lhe cheirava muito a colectivo e a
grupo, a independência dele falava mais alto. Como dizia o amigo João Pulido Valente, com palavras
que ele proferia, ‘por aqui me safo’”, conta Maria Antónia Oliveira. De grupos fez apenas parte de
dois: o Grupo Surrealista
de Lisboa, de 1947 a 1951, e, mais tarde, o grupo que fazia a revista Almanaque.
O’Neill
e o surrealismo português
O Surrealismo
chegou a Portugal mais de 20 anos depois do movimento ter nascido, em França,
com a publicação do Manifesto de André Breton, em 1924, em que se lia que o
surrealismo era “automatismo psíquico puro, pelo qual se pretende exprimir,
verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira, o funcionamento real
do pensamento”. Exigia-se o derrube da “vigilância exercida pela razão”.
Alexandre O’Neill ficou maravilhado quando leu o livro História do Surrealismo, de Maurice Nadeau. Apareceu no café com ele debaixo do braço, como pode ler-se na biografia de Maria Antónia Oliveira, que se
socorreu de uma carta escrita por Mário Cesariny, datada de maio de 1986,
estava O’Neill já muito doente, internado nos cuidados intensivos do hospital
Egas Moniz, depois de um segundo AVC, em abril desse ano. Viria a morrer em
agosto. “O’Neill
terá aparecido com ‘cara de caso’ no café e, calado, pôs o livro em cima da
mesa: ‘passava-me a mecha, a ver o que sucederia. O que sucedeu foi o início de
uma gritaria tal que ainda hoje se ouve’.”
O surrealismo português nasceu desta amizade entre O’Neill e Cesariny. Cesariny referiu que conheceu
O’Neill em 1945, O’Neill disse ter sido em 1947 – mas, lá está, este nunca foi
muito exacto com datas, conta Maria Antónia
Oliveira. Sucederam-se
as tertúlias, os encontros em ateliês de amigos ou nos cafés, o fascínio com o automatismo da criação literária e
plástica. Começa o uso da técnica do
Cadáver Esquisito, fosse com uma sucessão aleatória – porque colectiva – de
palavras, fosse com imagens, tudo fruto de colagens que desconheciam as que
lhes precediam. “Este era um dos jogos favoritos dos
surrealistas para produzir texto: o acaso é uma força com muito poder; a poesia, fruto
do acaso, é feita colectivamente”, pode ler-se
também nesta biografia da Assírio & Alvim. Esse ano de 1947 foi
especialmente produtivo para O’Neill, com a publicação de duas obras suas,
ambas intituladas Ocultação. Os surrealistas não suportavam os
neorrealistas.
▲ "Tempo de
Fantasmas" e "No Reino da Dinamarca",
as duas primeiras reedições das obras autónomas de poesia de O'Neill, pela
Assírio & Alvim
Já nos anos 60, integrou também um “grupo”, as pessoas que faziam a
revista Almanaque (1959-1961). O chefe de redacção era o escritor José Cardoso Pires. “O O’Neill andava lá pela
redação, frequentava aquilo. Mas não demasiado”, contextualiza Maria Antónia Oliveira. “O João Cutileiro disse-me
que ele não parava muito pela redação. Ia à noite, escrevia em casa, depois via
lá alguns textos, a seguir iam para um café que havia ali no Largo de São
Roque. A redacção mudava-se toda para o Largo de São Roque, à noite.”
Era uma vida de boémia e de
tertúlias. Aliás, poesia e vida eram indistintas para O’Neill. O seu
poema A Poesia É a Vida? reitera isso mesmo:
“Conforme a vida que se tem o verso vem
– e se a vida é vidinha, já não há poesia
que resista. O mais é literatura,
libertina, pegas no paleio”
O
excesso, as mulheres, o desejo
Deve-se viver a
vida de forma excessiva. Não deixar o desejo morrer. Alexandre O’Neill foi
também assim com as mulheres. Mas não
era, segundo a acepção dos amigos, um D.Juan. Não
amava o acto de amar, amava intensamente. Casou duas
vezes, teve um filho de cada casamento: primeiro com a realizadora Noémia Delgado, depois com a gestora
cultural que veio a ser ministra do Ambiente e dos Negócios Estrangeiros, Teresa Gouveia. Mas houve mais nomes dignos
de nota, dos quais o mais sonante foi o de Nora Mitrani.
Nora Mitrani era uma poeta parisiense de origem
búlgara, partidária do movimento surrealista depois de conhecer Breton. Chegou a Lisboa em finais de
1949 e, em janeiro de 1950, deu uma conferência patrocinada pelo Grupo
Surrealista de Lisboa e organizada pelo Jardim Universitário de Belas-Artes, na
Casa das Beiras, intitulada La Raison Ardente. O’Neill foi quem fez a tradução
do texto da conferência para português. Apaixonou-se
loucamente por ela.
Combinaram encontrar-se no ano
seguinte em Paris, mas ele não obteve autorização por parte da PIDE para
sair do país, que não lhe emitiu passaporte. Diz-se que os pais tiveram mão
nisso. É a Nora que O’Neill dedica o poema, um dos mais conhecidos, Um
Adeus Português, título que João Botelho virá roubar para dar
nome à sua segunda longa-metragem, estreada em 1985.
“Nos teus
olhos altamente purificados
Vigora ainda o mais rigoroso amor
A luz dos ombros pura e a sombra
Duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
À roda em que apodreço
Apodrecemos”
Maria Antónia Oliveira tem uma opinião que relativiza o mito
desse grande amor, interrompido, entre O’Neill e Mitrani. “Ele teve
essa história com a Nora Mitrani, que foi, aliás, forte. Foi forte, entretanto descobri, entre uma edição e
outra da biografia, uma carta muito curiosa dele ao Alexandre Pinheiro Torres.
A carta é já dos anos 50 avançados”, conta a biógrafa. “Ele não fala da Nora
Mitrani, mas é uma carta de dor. É uma carta muito estranha… de alguém que está
ainda a sofrer bastante pela ausência da amada. Dizia que ia mas era casar-se
com uma rapariga decente e compor a vidinha. Isto é uma coisa muito estranha, não
é?” Mas depois, defende a biógrafa, não se percebe por que não foi para Paris
nem que tivesse sido a salto. Quando se ama tanto, arranja-se sempre maneira de
ir ao encontro de quem se ama.
Nora Mitrani
viria a suicidar-se em 1961. A biografia transcreve também
a perspectiva de Pinheiro Torres relativamente ao breve mas intenso encontro:
“A paixão pela Nora era verdadeira. Mais do que isso: essa foi a verdadeira
iniciação sexual do O’Neill. Ele com ela descobre o sexo, e fica doido. Nunca
mais parou até morrer.”
▲"O
O'Neill gozaria com isso, mas também seria cancelado e haveria de rir-se disso.
Ele não se importava nada de brincar com tudo e de fazer humor com todas as
coisas"
Foi
com a amante Pamela Ineichen – eram ambos casados (ela com um amigo dele, de quem
tinha sido colega no colégio Valsassina) e com filhos – que visitou Paris, um
ano depois da morte de Nora. Maria Antónia Oliveira compara-o a
Charles Denner a interpretar o protagonista do filme de Truffaut O
Homem que Gostava de Mulheres, de 1977. É do livro De Ombro
na Ombreira o poema dedicado às mulheres, Hah!:
“Há a mulher
que me ama e eu não amo.
Há as mulheres que me acamam e eu acamo.
Há a mulher que eu amo e não me ama nem acama.
Ah essa mulher!”
Foi por vezes difícil para Maria Antónia Oliveira lidar com
Alexandre O’Neill. O feminismo dela choca com o machismo dele. No livro
intitulado Uma Coisa em Forma de Assim, que
reúne toda a prosa do poeta, que chegou
a escrever também poemas para fados (recordemos o clássico Gaivota de Amália, por exemplo), há um texto em que faz uma ode ao sexo feminino, chamado Mulheres, mas
depois era capaz de lhes fazer coisas cruéis, como ter acessos de fúria e de
ciúmes.
O fim, como princípio
Maria Antónia Oliveira decidiu
começar a biografia a descrever os eventos ligados à morte de Alexandre
O’Neill. Diz que só assim – fechado o ciclo – se pode falar plenamente do que
foi a vida, e a obra, de alguém. O autor desprendeu-se em definitivo do corpo
físico do homem e libertou, assim, a sua obra.
O’Neill já tinha tido um AVC em 1983.
O médico recomendara-lhe muita precaução. Era asmático desde sempre. Precisava
de regrar-se em tudo, tomar a medicação, deixar de beber. “Foi uma chatice:
comprimidos misturados com vinho…”, conta a biógrafa. “Não sei como é que terá sido.
Sei que a última parte da vida dele foi muito dominada pela doença. Embora a
cabeça estivesse boa.”
Nesse mesmo ano de 1983, foi-lhe atribuído o Prémio da Crítica do Centro Português da Associação Internacional de
Críticos Literários pelo livro Poesias
Completas, editado pela Imprensa Nacional no ano anterior. A reedição do
livro torna-se, nas palavras de Oliveira, num “clássico popular”: esgotou em três meses. António
Mega Ferreira entrevistou-o para o Jornal de Letras a esse propósito, em que
lhe perguntou: “O que lhe diz a
palavra instituição?”. O poeta respondeu: “Livra! Isso é que não. Não é o acto
de publicar a obra completa que torna um poeta numa instituição”.
Mas os críticos da altura não perdoaram
e escreveram textos a laudar a ironia
de uma obra que se pautou por denegrir, ou pelo menos descuidar, a glória
durante décadas e que era agora coroada com o prestígio daquela publicação.
Um
ano antes, tinha dado também uma entrevista, para o mesmo jornal, a Fernando
Assis Pacheco, em que dizia: “Quando
se está com uma panne cardíaca, o universo mingua e um sujeito desliga. Passa
para a categoria do bom doente para salvar o canastro, mas não tem propriamente
medo. Só tem medo que se enganem nos remédios e lhes enfiem os que são para
algum vizinho… De resto, nada mais, a não ser que, quando se volta para casa,
se sente tudo fora do sítio e não se acredita que o canastro volte à
normalidade.” Deu a última entrevista em 1985, ao jornal Expresso, a
Clara Ferreira Alves.
“O
excesso é uma coisa muito surrealista. O que O’Neill tinha a dizer mal, dizia
sóbrio”, considera Maria Antónia Oliveira. “Ele reparava em tudo e cruzava tudo, não
tinha sacralidade. Não
conseguia deixar de cruzar as coisas de uma maneira tão corrosiva de que os
poderes públicos naquele tempo não gostavam, mas acho que não seria só naquele
tempo”, defende
Pinto do Amaral. “Mesmo
agora, com este ambiente em que não se pode dizer nada, as pessoas estão todas
a perscrutar-se umas às outras na Internet, tudo é viral. Uma pessoa diz qualquer coisa e ‘ai meu
Deus, ele disse isto ou disse aquilo’, é logo cancelada. O O’Neill gozaria com
isso, mas também seria cancelado e haveria de rir-se disso. Ele não se
importava nada de brincar com tudo e de fazer humor com todas as coisas.”
DA INTERNET:
«Um poema de ALEXANDRE O’Neil:»
«Cá vai do
O´Neil um poema em forma de sentimento. Aquele que nasceu de um "amor vigiado", havia de explicar o
poeta autodidacta mais tarde. Não disse de quem eram os "olhos altamente
perigosos" que o conduziram a um desespero "quase-adolescente" e
a analisar com amarga ironia a miserável vidinha à portuguesa. Mas a musa
inspiradora tem nome: Nora Mitrani, a francesa que o fez perder a cabeça e que
a família impediu de seguir para Paris. Ficou para sempre a dizer-lhe Adeus, a
tropeçar de ternura na curva do poema. Aqui
o temos dito pelo jornalista Fernando Alves. Poesia
para ver, ouvir e ler agora.
Um Adeus
Português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e ao seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti Alexandre
O´Neill
COMENTÁRIOS (de 6):
AShiluna: A censura da actualidade é bem pior que a do ancien régime. A de hoje parece não existir, no entanto, marca, bloqueia e ainda sanciona sem lei nem roque.
Nenhum comentário:
Postar um comentário