A destes textos-síntese que temos a sorte de repor,
através da reflexão de um estudioso que temos a ventura de ler, numa época de
tanta falta dela, da reflexão colhida nessa leitura que preencheu também de
passagem a nossa existência, mas sem a ponderação, que nos é fornecida hoje, de
bandeja, o que nos deixa gratos e mais felizes, numa idade a tender para as memórias.
Nós, os que lutamos com Deus
Deus parece amar os que com Ele lutam e resistem. O novo livro de
Jordan Peterson é sobre esta luta. A luta histórica, bíblica, literária e
existencial que estrutura “o Ocidente”.
JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 21
dez. 2024, 00:1830
Jordan
B. Peterson, que nos habituámos a ver como um cruzado
da normalidade, um combatente anti-woke e anti-correcção política, publicou um
novo livro – We Who
Wrestle With God: Perceptions of the Divine.
Nós os que lutamos com Deus, começa pelo
livro do Genesis, com a misteriosa luta de Jacob, no regresso a Canan (Genesis 32: 22-32). Vi
a imagem dessa luta quase antes de saber ler na Bíblia ilustrada por Gustave Doré. É
uma luta que, segundo o texto bíblico, dura “até ao romper da aurora”. Depois,
o patriarca e pai de Israel percebe que o homem com quem luta é um Anjo e que o
Anjo é o próprio Deus, pede a Sua bênção e chama ao lugar onde com Ele lutou Penuel,
que quer dizer “face de Deus.”
Jacob atravessara o rio, com as duas mulheres, os onze filhos, as duas
escravas e tudo o que possuía. Depois ficara sozinho e viera o tal “homem” que se pusera a lutar com
ele “até ao romper da aurora”. Quando
Deus se revela, muda-lhe o nome de Jacob para Israel, “porque combateste
contra Deus e contra os homens e conseguiste resistir.”
Deus parece, assim, amar os
insubmissos, os que lutam com ele e resistem. O livro de Peterson
é sobre esta luta. É uma leitura da Bíblia – e dos seus
episódios – à luz da experiência histórica e literária que estrutura, segundo o
autor, aquilo a que chamamos “o Ocidente”. Este Deus que inquieta, que chama, que provoca, que
luta com os Seus filhos, está presente nas histórias de Adão e Eva, com a queda
do homem e a oscilação masculino/feminino; de Caim e Abel, símbolos dos
caminhos do Mal e do Bem livremente tomados; da entrega total de Abraão; dos
braços levantados de Moisés para negociar com Deus a vitória na batalha. E na
dúvida de Maria, na negação de Pedro e na exigência de provas de Tomé.
Os grandes escritores
cristãos também duvidam, perguntam, hesitam, debatem-se: Agostinho,
pecador inveterado, pede a Deus que lhe traga a conversão plena e a mudança de
vida (“Senhor,
dai-me castidade e continência, mas não já”) mas que a
vá adiando; os
Pais da Igreja discutem incessantemente a Verdade e não se poupam a agressões
na polémica; Dante condena papas ao Inferno, submetendo-os ao suplício em vida;
Shakespeare, devoto
da Igreja Anglicana ou cripto-católico, problematiza a sua (e nossa) procura e
luta com Deus em peças únicas. Como,
bem depois, o seu patrício Charles Dickens, será o grande narrador da ética evangélica sobre o Dinheiro, no
retrato do avarento Ebenezer Scrooge de A
Christmas Carol, que
se salva pela miraculosa antevisão do castigo.
Dostoievski, com
Tolstoi, o
grande escritor russo do século XIX, é
ortodoxo nos escritos políticos, mas luta com Deus na ficção, lugar onde a
vida, feita de histórias, tende a manifestar-se em toda a sua múltipla
plenitude, como nas narrativas do Antigo Testamento ou como, depois, nas
parábolas de Cristo. Dostoievski vê em Dom Quixote, no cavaleiro da triste figura entalado entre
o sonho e a realidade, a personagem mais cristã da literatura ocidental; e
inspira-se nele e no Cristo Morto de um quadro para o seu príncipe Míchkin, o
príncipe bondoso de O Idiota. E em Diário de um Escritor, faz também rasgados elogios a Dickens, considerando-o “um grande
cristão”
e vendo na crítica do autor de David
Copperfield à
sociedade vitoriana um modelo para a sua própria crítica da sociedade russa. Em Samuel Pickwick, dos Pickwick Papers, e no seu sentido de justiça e equidade, Dostoievski percebe um Dom
Quixote com sentido de humor.
Balzac é outro crente insubmisso ou capaz de viver e encarnar de forma única a
mensagem cristã. Em Le Médecin de campagne, um
romance que teve uma história editorial complexa e que coincidiu com um momento
pessoal de tentação política, o
escritor francês expõe o seu pensamento sobre quase todo o divino e o humano,
conseguindo combinar sem complexos a filosofia da contra-revolução com a
nostalgia de Napoleão. Sendo, politicamente, legitimista – ou seja, “ultra-reaccionário” – Balzac era também, socialmente,
“progressista”; até porque vivera a revolução de Julho e a primeira
industrialização, com as suas muitas vítimas urbanas. Em Le
Médecin de campagne, a figura modelar do docteur Benassis, o médico vindo de família
abastada que vai para uma aldeia da Sabóia para se ocupar do próximo, é uma
figura cristã.
Todos estes autores lutam nas suas obras com Deus, com Cristo. E, à
semelhança de Jacob, também todos percebem, ao raiar da manhã, com quem estão,
afinal, a lutar e se reconciliam.
Todos ou quase todos. Porque são alguns, e por vezes
insuspeitos, os lutadores que se empenham numa guerra aberta com o Criador sem
que nunca, aparentemente, se rendam ou reconciliem. Um dos mais
empenhados é talvez Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814), marquês de Sade, ateu militante e leitor dos materialistas La Mettrie e Holbach, com
toda uma vida dedicada a bramir a sua revolta contra Deus por atalhos
particularmente sacrílegos. Como escreveu alguém, o ateísmo de Sade, sendo obsessivamente
blasfemo e anti-cristão, faz do marquês “uma espécie de anti-ateu”, porque “nunca
um ateu falou tanto de Deus como ele”.
Nietzsche é outro destes notórios batalhadores. “Deus está morto. Deus continua morto e fomos
nós que O matámos”, escreve em 1882, na Gaia Ciência. Quem
assim fala é “o Louco”, perante uma
audiência de descrentes que se ri dele por
andar à procura de Deus. Mas Nietzsche não considera a morte de Deus um evento risível, menor ou trivial, como
os ilustrados, precisamente por se tratar de uma “morte”
que atira o Homem para o niilismo ou para um mundo de infinitas crenças e
licenças. O autor de”A Genealogia da Moral” já passara então os
entusiasmos cientistas e olhava com
cepticismo a usurpação da Ciência do pedestal da Religião, querendo
impor-se como forma paralela de ilusão, através
da troca de uma verdade transcendente por uma “verdade objectiva”.
Em Nós os que Lutamos com Deus, Peterson radica na Bíblia e na narrativa bíblica
toda esta milenar procura, luta, resistência, adesão ou até negação, vendo aí o
que estrutura “as nossas almas e as nossas sociedades” em direcção a um
“sentido moral” capaz de congregar o mundo.
Uma boa leitura para
recebermos este ano o Deus que, inesperadamente, todos os anos nasce para todos
e para cada um de nós.
Um Santo Natal.
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