Este de JOSÉ DIOGO QUINTELA, de uma naturalidade alegre e
brincalhona que encanta, sobre uma realidade destes tempos - um SNS nacional, apesar
de tudo de razoável eficiência, ainda mais nestas alturas, de tanta
agressividade mundial. Além, é claro, de uma ironia necessária mas ineficaz
sobre o complexo nacional saliente nas tradicionais perguntas bacocas dos
jornalistas entrevistadores aos turistas estrangeiros, sobre a sua estadia por
cá…
O turista acidentado
Desconheço se há muitos estrangeiros
a usarem o SNS português, mas sei que há muitos portugueses que usam um SNS que
aparenta ser estrangeiro.
JOSÉ DIOGO QUINTELA Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 17 dez. 2024, 00:1522
É uma coincidência curiosa que, na mesma semana em que o CEO da United
Healthcare foi assassinado por um jovem descontente com a indústria seguradora,
se tenha começado a discutir em Portugal o chamado “turismo de saúde”. Quer dizer, não é bem uma coincidência.
É um acaso. Eu é que forcei o nexo,
porque estou aflito para arranjar tema. Não me apetece escrever sobre o
velhinho simpático de barbas brancas que encanta as crianças e os ingénuos que
acreditam em fantasias. Em
2025 não vão faltar oportunidades para falar do Almirante Gouveia e Melo.
Contudo, não é uma ligação completamente absurda. Há uma relação entre os dois casos. Os
sistemas de saúde português e americano são opostos, na medida em que enquanto Portugal
tem um SNS universal e gratuito, os Estados Unidos são conhecidos por
dificultarem e encarecerem a prestação de serviços médicos. Aliás, a saúde na América é tão dispendiosa
que uma das teorias sobre o homicídio é que o plano do atirador era apenas
ferir o CEO.
–
Ei, deste-me um tiro, pá! Para que é que foi isso?
–
É para as seguradoras aprenderem que não podem enganar os clientes, como vocês
fazem sempre.
–
Vais-me deixar aqui deitado?
–
Sim. Para vos dar uma lição. Está descansado que vou chamar uma ambulância.
–
Não! Está sossegado!
–
Não queres ser tratado?
–
E gastar uma fortuna em cirurgias, internamentos e reabilitação? Não, obrigado!
Dá-me antes um tiro na cabeça que é mais barato, por favor.
Eis a diferença entre um mero gestor e um CEO que se sacrifica para
entregar valor ao accionista.
É por Portugal não ser os EUA
que estamos agora a discutir o turismo da saúde, à conta dos estrangeiros que,
alegadamente, procuram o nosso país para poderem usufruir de tratamentos
médicos grátis. Muito resumidamente, a direita considera que há
milhares de turistas de saúde, a esquerda acha que não há nenhum. Pessoalmente, não tenho opinião, mas
espero que haja pelo menos um. E adorava conhecê-lo. Quem é que,
precisando de cuidados médicos, consegue coordenar a marcação de uma consulta
no SNS com uma viagem internacional a Portugal? A probabilidade de haver um
médico disponível para os dias da estadia é infinitesimal. Já para não falar da
hipótese de poder haver greves de enfermeiros, falhas nos transportes ou obras
no Hospital. No fundo, é
como marcar uma viagem para observação de baleias com crias recém-nascidas, mas
em Madrid: não se trata de um problema de logística, é uma questão de lógica.
Desejo muito conhecer um destes turistas para lhe perguntar: “Ó amigo, quem é o
seu agente de viagens?” Já
é chato marcar avião, hotel, reservar restaurantes, descobrir os trajectos de
metro, comprar bilhetes para um teatro, quanto mais enfiar um raio-x e uma
colonoscopia nessa lista.
Confesso que não sei se o
Governo tem razão. Desconheço se há muitos estrangeiros a usarem o SNS
português, mas sei que há muitos portugueses que usam um SNS que aparenta ser
estrangeiro. Às vezes ligo para o meu centro de saúde e ninguém atende, porque
parece que trabalham no fuso horário da Nova Zelândia.
Ao que tudo indica, não há dados que
comprovem a existência deste fenómeno do turismo de saúde. Se existir, o Governo faz bem em querer legislar.
Se não existir, o Governo faz mesmo muito bem em soar o falso alarme. É a única
maneira de reconciliar os cidadãos com o SNS. Pois se até dizem que vêm estrangeiros
de propósito para o ver! É como o surf: só
deixou de ser visto como actividade de delinquentes quando os turistas
começaram a vir em barda. A
nossa habitual saloiice, de achar que a opinião dos estrangeiros é superior à
nossa, vai fazer com que gostemos mais do Serviço Nacional de Saúde. De
repente, vamos deixar de achar que um
hospital está decrépito, tem é patine. E que um médico nos deixou pendurado 7 horas, chegou foi fashionably
late. Isto vai fazer muito pelo ensino do inglês na 3.ª idade, para as
velhinhas poderem trocar maleitas nas salas de espera. “What do you have? I
have beaks of parrot. Very bad!”.
Àquelas perguntas ansiosas que
colocam aos estrangeiros, “Que tal está a achar Portugal? O nosso sol é
fantástico, não é? E as praias? E o peixinho grelhado? Somos muito simpáticos,
não somos?”, os jornalistas vão acrescentar “Veio tratar que doença? Esse
herpes está com bom aspecto, foi a isso?”
Temos
de começar a habituar-nos. Da mesma maneira que quem vai a Roma tem de ir ver o
Papa, quem vai a Paris sobe à Torre Eiffel ou quem vai a Nova Iorque passeia no
Central Park, vai passar a ser costume vir a Lisboa e internar-se no Hospital
Pulido Valente.
COMENTÁRIOS (de 22):
Ruço Cascais: Podemos ter três tipos
diferentes de SNS: - o português; que faz tudo pela felicidade do doente sem
condicionamentos - o angolano; que gostaria de fazer tudo pela
felicidade do doente, mas, infelizmente, não tem hospitais, médicos e betadine.
- o norte-americano; que faz tudo pela felicidade do doente desde que
haja dinheiro. Se alguém pensasse em fazer turismo de saúde,
escolheria, sem pensar duas vezes, o SNS português. Tem médicos, equipamentos e
material hospitalar, é gratuito e recebe todos, independentemente da sua
nacionalidade, raça, religião, cultura ou ideologia politica. Vir parir a
Portugal ou receber tratamentos oncológicos no Santa Maria pode realmente ser
uma boa aposta. Será que devemos contrariar o
possível turismo de saúde? Como sempre estamos divididos, incluindo o PS. Se
não nos importa o turismo de saúde, então, é deixar andar como está, mas,
importa lembrar que somos apenas 10 milhões de portugueses e os indianos são um
bilião e quatrocentos milhões de almas. Se rebentassem as águas a todas as
indianas grávidas ao mesmo tempo em Portugal teríamos uma inundação no país. Se quisermos impedir o turismo de saúde temos que os obrigar a
ter seguro de saúde, aliás, é obrigatório quando viajamos para determinados
países. Existe um seguro de saúde europeu. O problema é quando aparece uma
"turista" com as águas rebentadas à porta do hospital sem seguro de
saúde. Um problema incontornável. Se os europeus têm o seguro de saúde
europeu, e, se não o tiverem podem fazê-lo na altura (o hospital precisa de ter
um mediador de seguros). Mas, se resolvemos bem o problema dos cidadãos
europeus, o mesmo já não acontece com os PALOPS devido aos acordos existentes.
Será que podemos alterar esses acordos obrigando à existência de seguros de
saúde quando viajam para Portugal? Acho que não, portanto, com o turismo de
saúde PALOPS não há nada a fazer. Quanto aos imigrantes ou refugiados
económicos grávidos que nos chegam da Ásia, será que podemos exigir a uma
grávida proveniente do Vietname ou do Bangladesh um seguro de saúde? É uma
hipótese. Bem, a conclusão é que para salvar o SNS de uma invasão de
estrangeiros só será possível com seguros, os malfadados seguros que as
esquerdas abominam. Como o caminho do seguro de saúde parece para já
impossível, só nos resta transformar o nosso SNS no modelo angolano de SNS. Com
um SNS que não tenha mercúrio para fazer um curativo, ou uma vacina contra o
tétano deixa de ser apelativo, e os turistas de saude vão escolher outra
paragens para parir.
Maria Correia: Não vêm: já cá estão e em
nascendo bebé passa a mais um tuga.
João Floriano: «Beaks of parrot»: Há muito tempo que não ria com
tanto gosto. Igualmente delicioso o diálogo entre o CEO e o Mangione. No
entanto está incompleto, porque o CEO podia ter sugerido vir para Portugal
tratar dos buracos de bala. Era só consultar uma dessas agências de viagem da
especialidade e entretanto tapar os buracos com um penso rápido. Quintela
engana-se quanto à organização e eficiência destas agências. Muito mais
profissionais do que pode pensar. Estas agências não trabalham para aquecer. Já
sabemos a origem, é só seguir até ao destino final e irão certamente encontrar
quem organiza e facilita as coisas de modo a que o turista paciente chegue numa
quarta feira à hora do jantar e seja atendido na quinta antes do almoço. Procurem
e vão achar o Quem? Como? e Quanto?. Afinal apenas o relógio trabalha de graça.
No meio de tudo isto há pormenores deliciosos de uma falta de vergonh
excepcional. É o caso de Alexandra Leitão, que pede números ao governo
AD, em funções desde Abril, enquanto o PS esteve entre 2015 e 2024 a destruir o
SNS e nem sequer sabe os números dos turistas que nos têm visitado por motivos
de saúde. Também ridículos são os guinchos que nos chegam de Bruxelas. Não
compreendo qual a intenção de Quintela ao usar o exemplo da colonoscopia. Na
verdade há técnicas de diagnóstico muito mais dignas do que enfiarem-nos uma
sonda no meio das nádegas. Não digo que o exemplo seja uma fraca escolha. Na
verdade os portugueses andam há 50 anos a serem submetidos a colonoscopias sem
sedação. ocasionalmente o PSD tem tomado as rédeas e lá temos uma espécie de
sedação, embora a colonoscopia continue a ser a mesma. E os portugueses gostam
e muito porque continuam a votar em colonoscopias de preferência sem sedação,
porque somos um povo de valentes e só é pena que a sonda não venha por aí acima
para fazer cócegas na glote. Aí seria o prazer completo.
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