quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Humor sadio

 

Este de JOSÉ DIOGO QUINTELA, de uma naturalidade alegre e brincalhona que encanta, sobre uma realidade destes tempos - um SNS nacional, apesar de tudo de razoável eficiência, ainda mais nestas alturas, de tanta agressividade mundial. Além, é claro, de uma ironia necessária mas ineficaz sobre o complexo nacional saliente nas tradicionais perguntas bacocas dos jornalistas entrevistadores aos turistas estrangeiros, sobre a sua estadia por cá…

O turista acidentado

Desconheço se há muitos estrangeiros a usarem o SNS português, mas sei que há muitos portugueses que usam um SNS que aparenta ser estrangeiro.

JOSÉ DIOGO QUINTELA Colunista do Observador

OBSERVADOR, 17 dez. 2024, 00:1522

É uma coincidência curiosa que, na mesma semana em que o CEO da United Healthcare foi assassinado por um jovem descontente com a indústria seguradora, se tenha começado a discutir em Portugal o chamado “turismo de saúde”. Quer dizer, não é bem uma coincidência. É um acaso. Eu é que forcei o nexo, porque estou aflito para arranjar tema. Não me apetece escrever sobre o velhinho simpático de barbas brancas que encanta as crianças e os ingénuos que acreditam em fantasias. Em 2025 não vão faltar oportunidades para falar do Almirante Gouveia e Melo.

Contudo, não é uma ligação completamente absurda. Há uma relação entre os dois casos. Os sistemas de saúde português e americano são opostos, na medida em que enquanto Portugal tem um SNS universal e gratuito, os Estados Unidos são conhecidos por dificultarem e encarecerem a prestação de serviços médicos. Aliás, a saúde na América é tão dispendiosa que uma das teorias sobre o homicídio é que o plano do atirador era apenas ferir o CEO.

– Ei, deste-me um tiro, pá! Para que é que foi isso?

– É para as seguradoras aprenderem que não podem enganar os clientes, como vocês fazem sempre.

– Vais-me deixar aqui deitado?

– Sim. Para vos dar uma lição. Está descansado que vou chamar uma ambulância.

– Não! Está sossegado!

– Não queres ser tratado?

– E gastar uma fortuna em cirurgias, internamentos e reabilitação? Não, obrigado! Dá-me antes um tiro na cabeça que é mais barato, por favor.

Eis a diferença entre um mero gestor e um CEO que se sacrifica para entregar valor ao accionista.

É por Portugal não ser os EUA que estamos agora a discutir o turismo da saúde, à conta dos estrangeiros que, alegadamente, procuram o nosso país para poderem usufruir de tratamentos médicos grátis. Muito resumidamente, a direita considera que há milhares de turistas de saúde, a esquerda acha que não há nenhum. Pessoalmente, não tenho opinião, mas espero que haja pelo menos um. E adorava conhecê-lo. Quem é que, precisando de cuidados médicos, consegue coordenar a marcação de uma consulta no SNS com uma viagem internacional a Portugal? A probabilidade de haver um médico disponível para os dias da estadia é infinitesimal. Já para não falar da hipótese de poder haver greves de enfermeiros, falhas nos transportes ou obras no Hospital. No fundo, é como marcar uma viagem para observação de baleias com crias recém-nascidas, mas em Madrid: não se trata de um problema de logística, é uma questão de lógica. Desejo muito conhecer um destes turistas para lhe perguntar: “Ó amigo, quem é o seu agente de viagens?” Já é chato marcar avião, hotel, reservar restaurantes, descobrir os trajectos de metro, comprar bilhetes para um teatro, quanto mais enfiar um raio-x e uma colonoscopia nessa lista.

Confesso que não sei se o Governo tem razão. Desconheço se há muitos estrangeiros a usarem o SNS português, mas sei que há muitos portugueses que usam um SNS que aparenta ser estrangeiro. Às vezes ligo para o meu centro de saúde e ninguém atende, porque parece que trabalham no fuso horário da Nova Zelândia.

Ao que tudo indica, não há dados que comprovem a existência deste fenómeno do turismo de saúde. Se existir, o Governo faz bem em querer legislar. Se não existir, o Governo faz mesmo muito bem em soar o falso alarme. É a única maneira de reconciliar os cidadãos com o SNS. Pois se até dizem que vêm estrangeiros de propósito para o ver! É como o surf: só deixou de ser visto como actividade de delinquentes quando os turistas começaram a vir em barda.  A nossa habitual saloiice, de achar que a opinião dos estrangeiros é superior à nossa, vai fazer com que gostemos mais do Serviço Nacional de Saúde. De repente, vamos deixar de achar que um hospital está decrépito, tem é patine. E que um médico nos deixou pendurado 7 horas, chegou foi fashionably late. Isto vai fazer muito pelo ensino do inglês na 3.ª idade, para as velhinhas poderem trocar maleitas nas salas de espera. “What do you have? I have beaks of parrot. Very bad!”.

Àquelas perguntas ansiosas que colocam aos estrangeiros, “Que tal está a achar Portugal? O nosso sol é fantástico, não é? E as praias? E o peixinho grelhado? Somos muito simpáticos, não somos?”, os jornalistas vão acrescentar “Veio tratar que doença? Esse herpes está com bom aspecto, foi a isso?”

Temos de começar a habituar-nos. Da mesma maneira que quem vai a Roma tem de ir ver o Papa, quem vai a Paris sobe à Torre Eiffel ou quem vai a Nova Iorque passeia no Central Park, vai passar a ser costume vir a Lisboa e internar-se no Hospital Pulido Valente.

COMENTÁRIOS (de 22):

Ruço Cascais: Podemos ter três tipos diferentes de SNS: - o português; que faz tudo pela felicidade do doente sem condicionamentos - o angolano; que gostaria de fazer tudo pela felicidade do doente, mas, infelizmente, não tem hospitais, médicos e betadine. - o norte-americano; que faz tudo pela felicidade do doente desde que haja dinheiro. Se alguém pensasse em fazer turismo de saúde, escolheria, sem pensar duas vezes, o SNS português. Tem médicos, equipamentos e material hospitalar, é gratuito e recebe todos, independentemente da sua nacionalidade, raça, religião, cultura ou ideologia politica. Vir parir a Portugal ou receber tratamentos oncológicos no Santa Maria pode realmente ser uma boa aposta. Será que devemos contrariar o possível turismo de saúde? Como sempre estamos divididos, incluindo o PS. Se não nos importa o turismo de saúde, então, é deixar andar como está, mas, importa lembrar que somos apenas 10 milhões de portugueses e os indianos são um bilião e quatrocentos milhões de almas. Se rebentassem as águas a todas as indianas grávidas ao mesmo tempo em Portugal teríamos uma inundação no país. Se quisermos impedir o turismo de saúde temos que os obrigar a ter seguro de saúde, aliás, é obrigatório quando viajamos para determinados países. Existe um seguro de saúde europeu. O problema é quando aparece uma "turista" com as águas rebentadas à porta do hospital sem seguro de saúde. Um problema incontornável. Se os europeus têm o seguro de saúde europeu, e, se não o tiverem podem fazê-lo na altura (o hospital precisa de ter um mediador de seguros). Mas, se resolvemos bem o problema dos cidadãos europeus, o mesmo já não acontece com os PALOPS devido aos acordos existentes. Será que podemos alterar esses acordos obrigando à existência de seguros de saúde quando viajam para Portugal? Acho que não, portanto, com o turismo de saúde PALOPS não há nada a fazer. Quanto aos imigrantes ou refugiados económicos grávidos que nos chegam da Ásia, será que podemos exigir a uma grávida proveniente do Vietname ou do Bangladesh um seguro de saúde? É uma hipótese. Bem, a conclusão é que para salvar o SNS de uma invasão de estrangeiros só será possível com seguros, os malfadados seguros que as esquerdas abominam. Como o caminho do seguro de saúde parece para já impossível, só nos resta transformar o nosso SNS no modelo angolano de SNS. Com um SNS que não tenha mercúrio para fazer um curativo, ou uma vacina contra o tétano deixa de ser apelativo, e os turistas de saude vão escolher outra paragens para parir.

Maria Correia: Não vêm: já cá estão e em nascendo bebé passa a mais um tuga.

João Floriano: «Beaks of parrot»: Há muito tempo que não ria com tanto gosto. Igualmente delicioso o diálogo entre o CEO e o Mangione. No entanto está incompleto, porque o CEO podia ter sugerido vir para Portugal tratar dos buracos de bala. Era só consultar uma dessas agências de viagem da especialidade e entretanto tapar os buracos com um penso rápido. Quintela engana-se quanto à organização e eficiência destas agências. Muito mais profissionais do que pode pensar. Estas agências não trabalham para aquecer. Já sabemos a origem, é só seguir até ao destino final e irão certamente encontrar quem organiza e facilita as coisas de modo a que o turista paciente chegue numa quarta feira à hora do jantar e seja atendido na quinta antes do almoço. Procurem e vão achar o Quem? Como? e Quanto?. Afinal apenas o relógio trabalha de graça. No meio de tudo isto há pormenores deliciosos de uma falta de vergonh excepcional. É o caso de Alexandra Leitão, que pede números ao governo AD, em funções desde Abril, enquanto o PS esteve entre 2015 e 2024 a destruir o SNS e nem sequer sabe os números dos turistas que nos têm visitado por motivos de saúde. Também ridículos são os guinchos que nos chegam de Bruxelas. Não compreendo qual a intenção de Quintela ao usar o exemplo da colonoscopia. Na verdade há técnicas de diagnóstico muito mais dignas do que enfiarem-nos uma sonda no meio das nádegas. Não digo que o exemplo seja uma fraca escolha. Na verdade os portugueses andam há 50 anos a serem submetidos a colonoscopias sem sedação. ocasionalmente o PSD tem tomado as rédeas e lá temos uma espécie de sedação, embora a colonoscopia continue a ser a mesma. E os portugueses gostam e muito porque continuam a votar em colonoscopias de preferência sem sedação, porque somos um povo de valentes e só é pena que a sonda não venha por aí acima para fazer cócegas na glote. Aí seria o prazer completo.

Nenhum comentário: