domingo, 1 de dezembro de 2024

Os combates são outros


Impregnados de receios pelas reacções dos doutrinadores –da nossa marginalidade didáctica - que reduziram a glória dessas proezas dos antepassados às chufas centradas sobre escravos e escravaturas e escravizadores, única lição que lhes convém propalar aos quatro ventos da sua facúndia virtuosa e fraudulenta. Um desses, por sinal, prémio Nobel da literatura nacional, até forjou extensa obra impregnada de zombaria aos reis construtores de enorme convento em Mafra, símbolo da dimensão acarretada de tais escravidões e escravaturas, prolongada nos obreiros desse convento de tão extenso memorial, que só a exploração produziu, jamais a intrepidez - ambiciosa, é certo, mas também corajosamente aventureira, dos exploradores. Por isso, qualquer tentativa de erguer um museu por cá que fosse glorificante desse povo minúsculo e gigante que deu início a uma epopeia ímpar, só poderia provocar, por cá, não já chufas literárias mas o ataque e a destruição, favorecidos pelos actuais dinamizadores dos bons sentimentos mártires, digo, sobre os mártires povos-alvo desses descobrimentos, tornados progressivamente ditadores, no seu alastramento mundial, docemente defendidos pelos actuais doutrinadores da farsa histórica universal.

Desaparecido em combate

Já lá vão dez anos em que pessoas de boa vontade andam a tentar impulsionar uma estrutura que evoque, mostre e explique o que foram os Descobrimentos dos portugueses nos séculos XV e XVI.

JOÃO PEDRO MARQUES Historiador e romancista

OBSERVADOR, 01 dez. 2024, 00:202

O assunto terá caído no esquecimento, poucos se lembrarão dele, mas houve um tempo, mais precisamente o biénio de 2017-18, em que um candidato à presidência da Câmara Municipal de Lisboa, e, depois, seu efectivo presidente, teve como um dos seus objectivos prioritários a criação um Museu das Descobertas. Falo, claro está, de Fernando Medina que enunciou explicitamente, e por estas palavras, o objectivo de pôr de pé uma “estrutura polinucleada na cidade (de Lisboa) que inclua alguns espaços/museus já existentes e outros a criar de novo, e que promova a reflexão sobre aquele período histórico (dos Descobrimentos) nas suas múltiplas abordagens, de natureza económica, científica, cultural, nos seus aspectos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura”.

Contra este projecto levantaram-se, em 2018, sob a forma de carta aberta publicada no Expresso, as vozes de 114 académicos, quase todos de esquerda e vários dos quais estrangeiros, e, em artigo de opinião no Público, as de uma centena de afrodescendentes. Essa recolha de 200 assinaturas — ou nem isso pois algumas pessoas assinaram ambos os textos — foi o suficiente para Fernando Medina se encolher e deitar às urtigas o seu projecto que, recordemo-lo, era “prioritário”. É para mim incompreensível como pessoas que têm — ou diz-se que têm — altas aspirações políticas se retraem perante pequenos obstáculos no caminho e minudências políticas como estas. Que aconteceria se um dia estivessem à frente de um governo e tivessem de enfrentar uma contestação a sério? Mas deixemos essa pergunta sem resposta, porque isso são contas de outro rosário, e voltemos ao Museu das Descobertas.

Defendi em devido tempo a criação desse museu, fi-lo, aliás, por diversas vezes, e continuo a fazê-lo e a considerar que deverá designar-se por Museu dos Descobrimentos. Como é óbvio, não subescrevi a já referida carta aberta dos 114 académicos que o contestavam, ainda que tivesse sido convidado a fazê-lo. A razão que me leva a, neste momento, recordar tudo isso relaciona-se com uma recente conferência na qual o historiador Santiago Macias, actual director do Panteão Nacional e que foi a pessoa indigitada para dirigir, na sua fase inicial, o projectado Museu das Descobertas, apontou as vicissitudes desse projecto e deixou várias sugestões a seu respeito. Santiago Macias também lembrou que, ainda antes do abortado projecto de Fernando Medina, houve, em 2015, a ideia de fazer um centro interpretativo sobre os Descobrimentos que funcionaria numa réplica (a construir) de um navio quinhentista e que poderia ser visitado na Ribeira das Naus. Logo nessa altura se levantaram várias objecções mais ou menos ociosas — uma vocação ou deformação muito portuguesa — e essa excelente ideia nunca passou do papel.

Isto quer dizer — e é o que mais importa sublinhar — que já lá vão dez anos sucessivos em que pessoas de boa vontade andam a tentar, sem sucesso, impulsionar uma estrutura que evoque, mostre e explique o que foram os Descobrimentos dos portugueses nos séculos XV e XVI. Como disse Santiago Macias na sua recente conferência, o projecto do Museu das Descobertas continua a fazer todo o sentido, independentemente da vereação que esteja à frente da Câmara Municipal de Lisboa, e mesmo que não disponha de uma colecção permanente, mas tão só colecções itinerantes que permitam ir mostrando diversos objectos museológicos em combinação/associação com outros museus. Não seria um museu no sentido clássico da palavra, mas um centro de interpretação alargado e aberto a visitantes nacionais e estrangeiros e, sobretudo, às escolas.

Ou seja, trata-se de um projecto de interesse não apenas da cidade, mas verdadeiramente nacional, que se prende com a construção, preservação e transmissão da memória que Portugal deve ter de importantes momentos da sua História e, num plano mais amplo, do passado de toda a humanidade. Que eu saiba — e corrijam-me se estiver errado — o actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, nunca se pronunciou sobre isto. Não desejará fazê-lo? Terá vontade política e sentir-se-á capaz de assumir este encargo e esta meta nos termos, acertados ou adequados, em que Fernando Medina a pensou, isto é, pôr de pé um museu que nos traga os Descobrimentos nos “seus aspectos mais e menos positivos, incluindo um núcleo dedicado à temática da escravatura”? Não quererá constituir uma equipa que integre pessoas que dominem o tema e que tenha a dirigi-la alguém capaz de decidir e de avançar, sem receio dos escolhos que certamente surgirão, para repor este projecto em marcha? Na expressão “repor este projecto em marcha” incluo pensar como concretizá-lo, com que programa, com que custos ou financiamentos e em que localização ou localizações. Já várias se sugeriram, incluindo o edifício do antigo Banco Nacional Ultramarino, na Rua Augusta, onde agora está o MUDE (Museu do Design). Eu, seguindo a opinião do meu colega Santiago Macias, preferiria o Palácio dos Condes da Calheta, no topo do Jardim Botânico Tropical, que teria, entre outras vantagens, a de ser relativamente próximo de outros núcleos ou monumentos relacionados com a época em causa, desde os Jerónimos à Torre de Belém ou ao Padrão dos Descobrimentos. Não quererá Carlos Moedas salvar e reanimar um projecto aparentemente desaparecido em combate?

DESCOBRIMENTOS     HISTÓRIA     CULTURA     MUSEUS

COMENTÁRIOS

Manuel Martins: Portugal deverá ser dos poucos países europeus que, tendo sido um império e tido um papel na história mundial, e que não possui um grande museu na sua capital: veja-se Madrid, reflectir a história, como são enormes fontes de turismo e receitas. É verdade que temos em Lisboa alguns museus temáticos que são muito visitados (Coches, Arte Antiga, Marinha), mas nenhum que faça alguém vir especificamente vê-lo.                   Licínio Bingre do Amaral: Efectivamente faz falta um museu dos Descobrimentos que concentre a história desse período de grande inovação e liderança para Portugal. Espero que se venha a concretizar num futuro próximo.                    João Floriano: Lembro-me perfeitamente deste projecto do Museu dos Descobrimentos e associo-o com outra discussão que surgiu mais ao menos ao mesmo tempo e que tinha a ver com o Memorial da Escravatura. No entanto posso estar a confundir os factos. Este Memorial da Escravatura era suposto ficar junto ao Museu das Descobertas. Acabou por ser encaminhado para o Campo das Cebolas próximo à Casa dos Bicos e neste momento não sei em que fase se encontra o projecto. É evidente que um Museu das Descobertas só poderia provocar um imenso alarido na comunidade woke. E também é inegável que seria de enorme valor académico e cultural porque cobre um período impar da História de Portugal, da Europa e do Mundo. Espero que embora momentaneamente desaparecido em combate, seja resgatado em breve.

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