quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Tudo isso porque

 

Seguimos o clássico ”In medio stat virtus”. É, de facto, este que se manifesta no julgamento dos que, por razões inerentes, se distinguem por qualquer extremismo menos sóbrio para a virtude desse meio, essencialmente tímido este, mas não em julgamento fofoqueiro, o que melhor nos quadra na nossa dimensão de avaliadores nos caminhos do espírito alheio, como prestimosamente observa NUNO GONÇALO POÇAS, no seu espirituoso texto.

O meio

A mais leve insinuação de que reina por cá um mecanismo de compadrios, lobbies e cunhas é ferozmente atacada pelo meio. E o meio é, naturalmente, amplo.

NUNO GONÇALO POÇAS Colunista do Observador. Advogado, autor de "Presos Por Um Fio – Portugal e as FP-25 de Abril"

OBSERVADOR, 17 dez. 2024, 00:1720

A ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, anunciou, incautamente, a propósito da administração do Centro Cultural de Belém, que se «acabaram os compadrios, os lobbies e as cunhas». Surpreendeu, por um lado, porque, como salientou João Miguel Tavares, no Público, é difícil cumprir uma promessa daquela grandeza. Por outro lado, não surpreendeu assim tanto a chuvada de ataques à ministra. A cultura, como quase tudo em Portugal, resume-se à expressão «meio cultural», mais do que à cultura em si mesma. O meio, entre nós, é tudo – e é quase religioso, porque o meio está mesmo no meio de nós.

A mais leve insinuação de que reina por cá um mecanismo de compadrios, obbies e cunhas é ferozmente atacada pelo meio. E o meio é, naturalmente, amplo. Brota por todos os cantos, transpira por todos os poros, mais mediáticos ou mais desconhecidos. O meio é um circuito: onde se almoça, onde se janta, onde se contrata, onde se adjudica, onde se nomeia, onde se paga, onde se recebe, onde se dão jeitos, onde cabe sempre mais um se esse mais um for, ele próprio, também do meio, por laço de sangue, de alcova, de gratidão ou de pura sabujice.

A ministra não resistirá, com grande probabilidade, ao seu anúncio. Numa terra onde o meio é tudo e tudo começa e acaba no meio, uma promessa daquelas tem tudo para cair estrondosamente. À primeira falha, o meio não lhe perdoará. Os mesmos que agora, por louvável lealdade e inteligência caninas, saíram em defesa dos membros do meio segregados pela ministra, cá estarão para lhe acertar o passo no tempo devido. Assim é, assim será, de ministro em ministro, de meio em meio: do meio cultural ao meio sindical, do meio da educação ao meio da saúde.

O meio não perdoa. Quem já provou dessa evidência foi, também, um dos agora putativos candidatos a pré-candidatos à pré-candidatura à presidência da República, António José Seguro. Numa altura em que as presidenciais agitam a potente minoria, onde me incluo, de portugueses que se interessam pelas vicissitudes democráticas e pelo lado romanesco da política portuguesa, o facto de um ex-líder do Partido Socialista se ter mostrado disponível para ocupar o palácio de Belém e de, ao mesmo tempo, não ter tido do seu partido o apoio que seria natural e expectável, diz igualmente muito do meio.

Há dez anos, quando Seguro tentava recuperar um Partido Socialista pejado de socratismo, António Costa passou-lhe a perna despudoradamente. Na campanha interna, Seguro, talvez adivinhando o fim próximo, não deixou nada por dizer. Afirmou, então, que existia «um partido invisível na sociedade portuguesa, que tem secções em várias áreas do regime», e que havia uma «parte do PS mais associada aos negócios e aos interesses» que seria apoiante de António Costa à liderança do partido. Também na época o meio não gostou e reagiu caninamente.

Dez anos depois, é sintomático que o PS hesite no apoio ao seu ex-líder que, de resto, tem deixado nervoso o meio. O meio, evidentemente, prefere um dos seus, ou um ventríloquo. Afinal, isto ainda é o Portugalinho de sempre, querido, fofo, ternurento, sentimental, onde as amizades são tudo.

P.S.: O PCP reuniu em congresso e posicionou-se para o futuro, segundo consta do que me foi possível ler. O futuro é, porventura, o que sobra ao PCP. Como ouvi dizer a alguém em tempos, não houve mais visionário que Estaline. É que hoje paga-se para ir à neve.

MINISTÉRIO DA CULTURA       POLÍTICA

COMENTÁRIOS (De 20)

Fernando Matos: Este artigo vale a assinatura anual do observador. E mais não digo.               Carlos Chaves: Na muche! Nunca votei nem nunca votarei num socialista, mas tem razão no que escreve sobre António José Seguro, o pulha político que lhe espetou a “faca” nas costas, está agora sentado no Berlaymont em Bruxelas, com o “meio” a apoiar!                        Eu Mesmo: Uma forma muito simpática para dizer algo que noutras latitudes se diria, de forma mais crua e sem floreados, que se trata de uma população sem espinha.                   GateKeeper: Assim como esteve minado pelos "ultras" entre 1930 e 1972, o "meio", desde 1973, está minado pela esquerdalha "all together now!" e um certo liberalis-wokismo que mora ali entre o largo deles e a b. aires. É uma bolha purulenta que aumentou de volume e conteúdo, uma bolha "institucional" e alavancada pela cobardia do, também institucionalizado "arquinho centrão do poder ". Como exemplo extremo podem ver e abalizar as "temáticas" dos famigerados "separadores inomináveis" na rtp3, em quantidades absurdas, diariamente. Nem abordo as "kulturas avençadas" dos outros canais ditos d'informação ( só vejo e oiço canais estrangeiros de informação séria e independente e a rtp3 [por obrigação para perceber "como param as modas nos tais arquinhos] e, confesso, já nem me lembro quando foi a última vez que acedi a qualquer canal generalista da nossa "praça kitsch" tuga. Livrarias, sites, teatros, música, etc., estão 100% "cobertos" por uma manta suja e infecta que oprime toda e qualquer alternativa cultural, vom um sinal "político-social" diferente da actual "modorra" lamacenta. O meu caro FMatos tem alguma razão. Esta crónica vale por dezenas de "encomendas " tecladas aqui, no Obs. Top 5.                        Francisco Almeida: Artigo corajoso, embora eu tivesse preferido uma referência mais explícita a aventais. O caso da cultura é para mim o mais grave a seguir ao do ensino. E vem de muito longe. Mais exactamente desde que António Ferro foi para Berna. Curiosamente o Centro Cultural de Belém, orçamentado em pouco mais de 16 milhões custou à volta de 30. E foi no tempo de Cavaco. Pior, em percentagem só o Hospital Militar de Belém. Será sina nossa que em Belém só aconteça porcaria?               Paulo Nunes Do Rosário > Fernando Matos: Concordo plenamente, e é preciso coragem para o escrever.                   José B Dias: Não há ninguém minimamente atento que não se tenha apercebido dos "meios" ... até foi possível tirar as pessoas do corporativismo, mas é de todo impossível tirar o corporativismo de algumas pessoas!

 

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