Afinal, sempre, o sentimento da família contribuindo, ainda que de
forma efémera, mas em cada ano reavivada, para essa coesão, sofisticada e breve
embora, de muralha contra o medo e a revolta, o Mal e o Sofrimento sempre
poderosos através dos tempos, hoje a sua percepção tornada mais acutilante,
graças aos meios de visibilidade transmitidos pelas tecnologias do progresso.
Um agradecimento a uma cronista que contribui, com as suas sensíveis páginas de
nobreza de pensamento, para uma pausa de prazer literário, que conta, na
grosseria do terramoto que vem progredindo sobre este planeta Terra, de tanta
variedade e beleza, em que vivemos. Ainda.
A esperança?
Os dias aqui são longos mesmo que o Inverno os encene curtos mas não
“dão vazão” à festa do reencontro familiar. Com um toque de boémia e de
algazarra, a casa é movimentada.
MARIA JOÃO AVILLEZ Jornalista, colunista do Observador
OBSERVADOR, 25 dez. 2024, 00:202
1Reencontram-se os cheiros do
campo, vêm da horta, dos eucaliptos, do buxo, da relva, das rosas que nem no
inverno nos desacompanham. Cheira bem. Os (muito) matutinos ouvem cantar
o galo na aurora do dia, ao adormecer ouvimos o latido dos cães nos campos
vizinhos. Reencontramos o “andar por aí”, à procura de ramos, verdura, folhas. Não há bolas, nem laços neste Natal
campestre, vai-se “lá fora” e pega-se no que a natureza tem de pródigo para os
que a procuram, sabendo-a mais que perfeita das molduras natalícias. Em Dezembro os nossos dias aqui são longos
mesmo que no calendário o inverno os encene curtos, e as noites não nos chegam
para “dar vazão” à festa do reencontro familiar. Apesar do vagar, há um toque
de boémia e de algazarra, casa movimentada.
Um dos grandes momentos é o “fazer” do
presépio, gesto que apesar de reeditado há anos sem fim, consegue conservar
intacto e inteiro, um mistério tão imenso que é com ele e com a incomparável
magia que dele transborda que o vamos fazendo e refazendo, época traz época. Os dias escorrem, joga-se à bola, torra-se
bolo rei, fala-se muito, disputa-se o écran da única televisão, ouve-se Vivaldi
e Haendel e a Ave Maria de Schubert. E volta a olhar-se o presépio, sem
cansaço. Pode
ser grande, pequeno ou médio; de barro, de gesso pintado, de papel, pano, faiança
ou madeira; popular ou mais sofisticado, acabado de fazer ou já com idade
antiga. É conforme as vontades e as idades de quem o elege.
Ao longo dos anos tenho trazido presépios das geografias por onde
andei, cada Natal cabe a sorte a qualquer um deles, só se decide quando começa
a chegar “toda a gente” aqui ao Oeste. Toda a gente é essa coisa
absolutamente insubstituível chamada família. Sustentáculo
de muito – talvez de tudo; pilar de sociedades e comunidades, raiz de uma
pátria; imutável porto de abrigo para todas as estações , da afinidade e da
dissonância; da fortuna e do infortúnio; da alegria e da melancolia, da
proximidade e da distância. Da vida e da morte.
É talvez por estarmos conscientes disso que readquirimos aqui
naturalmente uma apreciação das coisas com mais vagar. Ouve-se melhor, conversa-se com outra atenção, discute-se com mais
racionalidade. E anda-se a pé na rua, entra-se nas lojas de “toda vida”,
sorrindo para as mesmas vendedeiras de sempre no mercado da fruta, trocam-se
boas festas com amigos e conhecidos com quem nos cruzamos, espreitamos as luzes
natalícias à noite.
Sabemos que é o milagre do Natal que
traz este intervalo doce. Pausa breve e quase fictícia na sua
dissonância do mundo como ele está, apesar da fortíssima verdade de que o nosso
intervalo é feito: a vontade de continuar a ser uma família, dois ou
três valores, dois ou três mandamentos. Parece pouco, é imenso.
Tudo isto, é claro – e tal como eu ontem
escrevia a um amigo muito próximo –, com “a melancólica lucidez de perceber/saber que o nosso intervalo se passa
numa ilha, estamos numa ilha: isto
é, ao largo da guerra, do ódio, do desnorte
e do perigo do desnorte; da polarização politica, da fragilidade liderante, da
pulverização das instituições. Da decadência ameaçadora da civilização que nos
foi berço e permanece matriz. Não fazemos de conta que não é assim,
não o disfarçamos, nem desertamos do mundo. Apenas nos consentimos o ser
felizes, aqui, nesta pequena freguesia campestre, modestamente iluminada pelos
seus enfeites luminosos. Felizes em família. Felizes todos juntos.
Honrando o privilégio deste intervalo
e se formos capazes honrando o compromisso do desafiante recomeço que é o
nascimento de Cristo.
2Na sua recente Carta Pastoral, “Dai Razões da Vossa Esperança”, o Patriarca de Lisboa, D. Rui Valério suscita – e suscita-nos – em 20 páginas e
curtos capítulos inspiradas
reflexões que em tempos de guerra e de cólera, talvez sejam capazes de nos
levar pela mão: até à vontade da esperança, até à porta do Ano Jubilar
de 2025.
Deixo apenas a abertura do capítulo “A Esperança Cristã num Mundo
Secularizado” por me parecer que merece boa nota e atenta
reflexão:
“A nossa sociedade nos últimos séculos e
décadas, secularizou muitos elementos da fé cristã, não só do ponto de vista
iconográfico mas também no que concerne a muitos valores cristãos. Um desses elementos que foi secularizado e
neutralizado na sua potência cristã foi a esperança. Na sociedade
secularizada no nosso tempo, a esperança cristã foi substituída pelo
optimismo. O
optimismo que muitas vezes bloqueia a capacidade de ver a realidade.
E
assim, diante da angústia e das tristezas sentidas, o
optimismo tornou-se apenas uma “espera” , por algo melhor , como sucede quando
se vai ao médico e ficamos na “sala de espera” aguardando a nossa vez. Há “salas de espera” mas não há “salas de
esperança”(…).
PS. Santo Natal! Boas Festas. Até daqui a
quinze dias
CRÓNICA NATAL SOCIEDADE
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COMENTÁRIOS:
Lily Lx: Santo Natal!
JM Azevedo: Gostei muito. Obrigado. Um feliz e Santo Natal.
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