segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Ficamos com a impressão


Com a leitura deste texto de MIGUEL TAMEN, de que falhamos redondamente, sempre que nos pomos em pretensões de interpretação de Alexandre O’Neill, ou de outro qualquer nome das celebridades do nosso - ou mesmo alheio – foro literário, especialmente o poético, de maior contingência no que toca à expressão da realidade, sobretudo a íntima, do próprio poeta, ou mesmo a exterior, de que ele se serve para revelar o seu mundo forçosamente enigmático, pelos retorcidos verbais de, aparentemente, múltiplas interpretações. De facto, o texto de MIGUEL TAMEN parece-me ser dirigido à cronista CLÁUDIA MARQUES SANTOS que, no mesmo OBSERVADOR publicara o texto, em 19/12, “NO CENTENÁRIO DE UM "HOMEM LIVRE": "O'NEILL SERIA CANCELADO E HAVERIA DE RIR-SE DISSO":“-Precursor do surrealismo, viveu intensamente, da mesma forma que amou, pensou e jogou com as palavras” – que MIGUEL TAMEN logo rebate no seu texto de especialista analítico: “O’Neill tem fama de ser um especialista em dar recados claros sobre coisas concretas; mas na verdade desconfiava dessas ideiaspropondo seguidamente a sua demonstração trocista sobre a inverdade do que se escreve, desenha ou esculpe, que nada tem a ver com a realidade autêntica. Tudo isso é naturalmente verdadeiro, julgo, mas a tentativa de descodificação desse mundo lírico não deixa de ser necessária, enriquecendo naturalmente os leitores, pela orientação analítica que o estudioso do poeta propõe. Mau seria para os adolescentes que iniciam o seu percurso do conhecimento literário, se não houvesse esses estudiosos da literatura a abrirem as pistas do conhecimento, naturalmente com maior ou menor rigor de objectividade, que cabe a cada um desmontar.

Plano Nocional de Leitura (XXVIII)

O’Neill tem fama de ser um especialista em dar recados claros sobre coisas concretas; mas na verdade desconfiava dessas ideias.

MIGUEL TAMEN Colunista do Observador, Professor(e director do Programa em Teoria da Literatura) na Universidade de Lisboa

22 dez. 2024, 00:161

Numa algazarra da Antiguidade um pintor grego gabava-se de fazer naturezas mortas com uvas que enganavam os pássaros; outro pintor apontou para um quadro seu que tinha pendurado atrás de umas cortinas. O primeiro pintor foi inspeccionar e deu com a cabeça na parede: as cortinas eram parte do quadro; o segundo pintor tinha-o conseguido enganar. A poesia e a ficção também enganam pessoas desta maneira. Muitos leitores acreditam que ler livros consiste em abrir as cortinas e espreitar para a realidade; outros, por exemplo os apreciadores de pornografia, acham que conseguem debicar as uvas dos poetas.

Nos poemas e nos quadros as uvas não são porém uvas, as cortinas nunca são cortinas, e as pessoas não são pessoas. Os sentimentos do público são decerto sentimentos genuínos; mas são como o medo genuíno que sente quem acha que viu um bicho, ou com a alegria genuína que sentimos com coisas que acontecem a pessoas que não conhecemos. A poesia, acredita Alexandre O’Neill (1924-1986) é toda feita para enganar o olho. É, como lhe chama no título de um esplêndido poema, Trompe l’oeil.”

Nesse poema O’Neill conta a excursão ferroviária ao Minho de um casal. Os propósitos são gastronómicos: bacalhau e uma escapadela. “P’ra comer,” afirma a excursionista, “só no Norte, só no Norte.”   A observação é familiar, e provavelmente verdadeira. O poema está também cheio de referências a outras coisas familiares: a perda de cabelo, uma pensão em Viana de Castelo, alguém que faz olhinhos a uma viúva no comboio, um guarda-chuva perdido, e “o azeitinho.” Com tantas coisas concretas temos desculpa para concluir que só pode ter a ver com a realidade.

“Trompe l’oeil” começa porém com uma pergunta rarefeita que só ocorre aos poetas mais abstractos, copiada do princípio da “Elegia do amor” de Teixeira de Pascoaes: “Lembras-te, jóia, daquele bacalhau /que comemos em Viana do Castelo?” Quando encontramos perguntas destas em poemas a nossa resposta é quase sempre ‘não.’ A “jóia” não somos nós, ou alguém que esteja por perto utilmente; não há sinais de bacalhau; e por isso não há ninguém que se possa lembrar daquela viagem ao Minho: em questões de poesia, no máximo, havemos de ir a Viana.

E o azeitinho? O’Neill tem fama de ser um especialista em dar recados claros sobre coisas concretas; mas na verdade desconfiava dessas ideias.“Trompe l’oeil” está cheio de promessas vazias e ofensas à linguagem adulta, de sílabas a mais e de rimas más. São para nós avisos, e por boas razões. Fomos habituados a achar que ler um poema sobre ir ao Minho é praticamente como ir ao Minho; mas infelizmente não fomos quase nunca habituados a pensar que quando, encorajados por um poema, abrimos a boca para comer o bacalhau, ou nos imaginamos numa pensão mais agradável, acabamos por bater com a cabeça na parede.

Erro Extremo.

COMENTÁRIOS:

Francisco Almeida: Preferia que em, vez do bacalhau, Miguel Tamen tivesse escolhido o arroz de cabidela. Mas gostei de ler.

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