Com a leitura deste texto de MIGUEL
TAMEN, de que falhamos redondamente, sempre que nos pomos em pretensões de interpretação
de Alexandre O’Neill, ou de
outro qualquer nome das celebridades do nosso - ou mesmo alheio – foro
literário, especialmente o poético, de maior contingência no que toca à
expressão da realidade, sobretudo a íntima, do próprio poeta, ou mesmo a
exterior, de que ele se serve para revelar o seu mundo forçosamente enigmático,
pelos retorcidos verbais de, aparentemente, múltiplas interpretações. De facto,
o texto de MIGUEL TAMEN parece-me ser dirigido à cronista CLÁUDIA MARQUES
SANTOS que, no mesmo OBSERVADOR publicara o texto, em 19/12, “NO CENTENÁRIO DE UM "HOMEM LIVRE":
"O'NEILL SERIA CANCELADO E HAVERIA DE RIR-SE DISSO":“-Precursor do surrealismo, viveu intensamente, da mesma
forma que amou, pensou e jogou com as palavras” – que
MIGUEL TAMEN logo rebate no seu texto de especialista analítico: “O’Neill tem fama de ser um especialista
em dar recados claros sobre coisas concretas; mas na verdade desconfiava dessas
ideias” propondo seguidamente a sua demonstração trocista sobre a
inverdade do que se escreve, desenha ou esculpe, que nada tem a ver com a
realidade autêntica. Tudo isso é naturalmente verdadeiro, julgo, mas a
tentativa de descodificação desse mundo lírico não deixa de ser necessária,
enriquecendo naturalmente os leitores, pela orientação analítica que o
estudioso do poeta propõe. Mau seria para os adolescentes que iniciam o seu
percurso do conhecimento literário, se não houvesse esses estudiosos da
literatura a abrirem as pistas do conhecimento, naturalmente com maior ou menor
rigor de objectividade, que cabe a cada um desmontar.
Plano Nocional de Leitura (XXVIII)
O’Neill tem fama de ser um
especialista em dar recados claros sobre coisas concretas; mas na verdade
desconfiava dessas ideias.
MIGUEL TAMEN Colunista do Observador,
Professor(e director do Programa em Teoria da Literatura) na Universidade de
Lisboa
22 dez. 2024, 00:161
Numa algazarra da Antiguidade um pintor
grego gabava-se de fazer naturezas mortas com uvas que enganavam os pássaros;
outro pintor apontou para um quadro seu que tinha pendurado atrás de umas
cortinas. O primeiro pintor foi inspeccionar e deu com a cabeça na parede: as
cortinas eram parte do quadro; o segundo pintor tinha-o conseguido enganar. A
poesia e a ficção também enganam pessoas desta maneira. Muitos leitores acreditam que ler livros
consiste em abrir as cortinas e espreitar para a realidade; outros, por exemplo
os apreciadores de pornografia, acham que conseguem debicar as uvas dos poetas.
Nos poemas e nos quadros as uvas não
são porém uvas, as cortinas nunca são cortinas, e as pessoas não são pessoas.
Os sentimentos do público são decerto sentimentos genuínos; mas são como o medo
genuíno que sente quem acha que viu um bicho, ou com a alegria genuína que
sentimos com coisas que acontecem a pessoas que não conhecemos. A poesia, acredita Alexandre O’Neill
(1924-1986) é toda feita para enganar o olho. É, como lhe chama no
título de um esplêndido poema, “Trompe
l’oeil.”
Nesse poema O’Neill conta a excursão
ferroviária ao Minho de um casal. Os propósitos são gastronómicos: bacalhau e
uma escapadela. “P’ra comer,” afirma
a excursionista, “só no Norte, só no
Norte.” A observação é familiar, e provavelmente verdadeira. O poema está também cheio de referências a
outras coisas familiares: a perda de cabelo, uma pensão em Viana de Castelo,
alguém que faz olhinhos a uma viúva no comboio, um guarda-chuva perdido, e “o
azeitinho.” Com tantas coisas
concretas temos desculpa para concluir que só pode ter a ver com a realidade.
“Trompe l’oeil” começa porém com
uma pergunta rarefeita que só ocorre aos poetas mais abstractos, copiada do
princípio da “Elegia do amor” de Teixeira de Pascoaes:
“Lembras-te, jóia, daquele bacalhau /que comemos em Viana do Castelo?” Quando
encontramos perguntas destas em poemas a nossa resposta é quase sempre ‘não.’ A
“jóia” não somos nós, ou alguém que esteja por perto utilmente; não há sinais
de bacalhau; e por isso não há ninguém que se possa lembrar daquela viagem ao
Minho: em questões de poesia, no
máximo, havemos de ir a Viana.
E
o azeitinho? O’Neill tem fama de ser um especialista em dar
recados claros sobre coisas concretas; mas na verdade desconfiava dessas
ideias.“Trompe l’oeil” está cheio de
promessas vazias e ofensas à linguagem adulta, de sílabas a mais e de rimas más.
São para nós avisos, e por boas razões. Fomos habituados a achar que ler um
poema sobre ir ao Minho é praticamente como ir ao Minho; mas infelizmente não
fomos quase nunca habituados a pensar que quando, encorajados por um poema,
abrimos a boca para comer o bacalhau, ou nos imaginamos numa pensão mais
agradável, acabamos por bater com a cabeça na parede.
COMENTÁRIOS:
Francisco
Almeida: Preferia que em, vez do bacalhau, Miguel Tamen tivesse
escolhido o arroz de cabidela. Mas gostei de ler.
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