A queda do regime. Sírio.
Rússia e Irão derrotados, Turquia
reforçada e Israel expectante. As consequências imprevisíveis da queda de Assad
na região — e no mundo
O momento na Síria é de euforia, mas
o país, palco de guerras por procuração, pode vir a enfrentar dias difíceis. No
Médio Oriente, todos querem ter uma palavra a dizer. E o que farão Rússia e
EUA?
CÁTIA BRUNO Texto
OBSERVADOR, 08 dez. 2024, 23:59
Índice
A imagem desgastada da Rússia, que preferiu
“sacrificar Assad” pela Ucrânia
Turquia, que pode ter dado aval tácito à ofensiva,
está pronta para intervir e esmagar questão curda
O triângulo Irão-Hezbollah-Israel, fulcral para a
Síria
“A cola” que unia os rebeldes desapareceu. E agora? Já
há quem tema uma nova Líbia
“Chegou a tua vez, doutor.”A ameaça foi deixada numa parede da cidade de
Deraa, em graffiti. Estávamos em março de 2011 e a Primavera Árabe espalhava-se como lume em palha seca por todo o Médio Oriente, chegando finalmente à Síria.
O “doutor” era Bashar a-Assad, o Presidente sírio que havia estudado
medicina mas tinha acabado por seguir as pisadas do pai. Foram precisos treze anos, porém, para que “a vez”
de Assad chegasse.
A ofensiva do quase desconhecido Hayat Tahrir al-Sham (HTS) foi a machadada final no regime dos Assad, que
nenhum grupo rebelde conseguira antes, depois de mais de uma década de guerra
civil sangrenta, onde meio milhão de pessoas morreram e milhões se tornaram
refugiados por causa de ataques que incluíam bombas de pregos e o uso de armas
químicas.
Um ataque-relâmpago que resultou, em parte, pela fragilidade do
próprio regime, com os sinais de que algumas figuras próximas do Presidente
se estariam a afastar e a dar tacitamente o aval aos rebeldes. Mas também,
em grande parte, pela situação em que os aliados militares que sustiveram Assad
ao longo de 13 anos de conflito estão: Rússia
e Irão, ambos desgastados, a combater noutras frentes (Ucrânia e
Israel). Perante este cenário,
terão decidido que não valia a pena apostar mais das suas fichas no líder
sírio.
▲ A queda de
Assad foi festejada em vários pontos do mundo árabe, como no Líbano Anadolu via
Getty Images
A
guerra na Síria foi, desde o
início, palco de uma guerra por procuração, onde se
digladiaram grandes potências mundiais como Rússia e Irão, mas também Turquia e
EUA, bem como grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico. A queda do regime e o ponto final neste conflito têm,
por isso, potencial para provocar ondas de choque por todo o mundo e reverberar
até noutras guerras.
Como resumiu o coronel Tim Collins, veterano da Guerra do Iraque, o que aconteceu este fim de semana na Síria tem
potencial para provocar “o princípio do fim de três, talvez quatro, guerras; o
desfiar do chamado ‘Eixo do Mal’; ou a aurora de uma nova era negra que irá ser
motor de milhões de novos refugiados para a Europa”. Num artigo
publicado no Telegraph, o militar diz que é também possível que
acabemos por assistir “aos três” cenários.
A imagem desgastada da Rússia, que preferiu “sacrificar Assad” pela Ucrânia
Para entender
como todos estes cenários se podem concretizar, é preciso entender como os
eventos dos últimos dias afectam os principais actores deste conflito. E, à
primeira vista, o mais relevante de todos é a Rússia, com Vladimir Putin há muito a assumir o papel de apoiante militar mais importante de Assad, enviando até soldados do antigo grupo Wagner
para o terreno, a fim de impedir a perda de cidades fulcrais para o regime.
“A Rússia não só tem falta de homens e de
fundos, mas também de generais competentes. Nos últimos dois anos [desde o
início da guerra na Ucrânia] a Síria
tornou-se basicamente o lugar de desterro dos generais ineficazes e seriamente
incompetentes.” Anton Mardasov, investigador do Instituto do Médio Oriente
Só que o desgaste
na guerra da Ucrânia — essa sim estratégica e ideologicamente mais
relevante para o Kremlin do que a situação no Médio Oriente — tem pesado sobre Moscovo. E, quando uma pequena rebelião se pôs em marcha
no norte da Síria para conquistar cidades, a Rússia parece ter assumido que
agarrar Assad e investir mais homens e armamento naquela guerra não valia a pena. “Qual é a previsão? Não posso
adivinhar, o nosso trabalho não é adivinhar”, disse, titubeante, o
ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, quando foi questionado
sobre se o regime sírio poderia vir a cair.
Anton Mardasov, investigador no Instituto do Médio
Oriente em Washington, não teve dúvidas em afirmar ao Le Monde que “a
situação actual é um ataque à imagem da Rússia”. A incapacidade de reagir militarmente na Síria mostra, diz o
analista, que o Kremlin esticou demasiado os seus esforços e deixou Damasco com
os mínimos: “A Rússia não só tem falta de homens e de fundos, mas também de generais
competentes. Nos últimos dois anos [desde o início da guerra na Ucrânia] a Síria
tornou-se basicamente o lugar de desterro dos generais ineficazes e seriamente
incompetentes.”
▲Vladimir
Putin tem sido o maior apoiante de Assad em termos militares. Agora
concedeu-lhe asilo SPUTNIK/AFP via Getty Images
“A cola” que unia os rebeldes desapareceu. E agora? Já
há quem tema uma nova Líbia
Pelo meio, Moscovo perde a sua influência no Mediterrâneo ao ter de
largar a base naval de Tartus, na Síria. Mas
o que isso revela é que a Ucrânia
é uma joia muito mais valiosa para o Kremlin do que qualquer pedaço de
terra ou influência na Síria. O facto de acabar por assumir que deu asilo a Bashar
al-Assad e à sua família na Rússia, “sugere que o Kremlin estava disposto a
sacrificar Assad por outros jogos diplomáticos mais importantes”, notou na Spectator Owen
Matthews, especialista britânico em política russa.
Que
impacto pode isto ter no conflito na Ucrânia ainda não é claro, mas é certo que
pode não ser dissociável. O Presidente-eleito norte-americano Donald Trump já
veio assinalar que “a Rússia perdeu o interesse na Síria por causa da Ucrânia”
e que é altura, mais do que nunca, de chegar a um acordo na guerra europeia.
Qual o grau de influência que Trump terá sobre Putin e quão relevante a Síria é
um trunfo são questões sem resposta para já.
Turquia, que pode ter dado aval tácito à ofensiva,
está pronta para intervir e esmagar questão curda
Se a Rússia parece sair
fragilizada da derrocada de Assad na Síria, já a Turquia pode assumir-se como um dos
maiores vencedores. Há muito
adversária do regime sírio — por ser um regime xiita vizinho, por se estar afectada
com a vaga de milhões de refugiados do conflito e, acima de tudo, por querer
ter uma palavra a dizer na região por causa da questão curda —, Ancara viu o poder ser conquistado por
um grupo armado (classificado como terrorista pelos EUA) que não controla, mas com
quem tem proximidade.
O grau de envolvimento do regime de Recep Tayipp Erdoğan nesta ofensiva não é claro, mas é certo que
terá existido algum. Como resumiu ao Die Welt um dos participantes que esteve na
recente conferência de Manama, no Bahrain, para discutir a situação na Síria, “o facto de os turcos não concordarem com
a ofensiva não quer dizer que não soubessem que ela ia acontecer”. A
mesma fonte vai ainda mais longe: “Pode
concordar-se com algo por não dizer ‘Não’”. Por omissão, portanto.
▲ O
Presidente turco, Recep Tayipp Erdoğan, é um dos líderes mais beneficiados com
a queda de Assad AFP via Getty Images
O antigo embaixador
norte-americano Turquia, James Jeffrey, também fez questão de reforçar à imprensa alemã
o envolvimento de Erdoğan na situação actual, que define como “uma grande
vitória para o Ocidente”. “Os EUA, Israel e a Turquia devem trabalhar juntos
como forças da oposição [a Assad]”.
Os interesses de Ancara, porém, podem
não ser os mesmos de Washington ou de Telavive. Basta olhar para um ponto específico: o
exército curdo na Síria, visto como ameaça existencial por parte da Turquia,
tem contado com apoio declarado dos norte-americanos ao longo dos últimos anos.
Há quem especule, como se pode ler num
artigo do Haaretz, que Erdoğan
pode estar esperançoso que uma nova administração Trump não esteja tão
empenhada na defesa dos curdos.
Assim, a Turquia irá, sem dúvida, tentar influenciar o tabuleiro que — mesmo
sem guerra — se continuará a jogar na Síria ao longo dos próximos tempos.
O triângulo Irão-Hezbollah-Israel, fulcral para a
Síria
Israel também tem um papel nesta peça
porque, no Médio
Oriente, tudo está interligado. Se a Rússia reduziu o seu apoio a Assad
por estar investida na Ucrânia, o Irão
parece também tê-lo feito porque o seu
braço armado libanês, o Hezbollah,
tem sido dizimado no conflito com os israelitas e perdeu grande parte das
capacidades militares que exercia na Síria.
À semelhança do que aconteceu com
Putin, também o Irão parece ter sido
apanhado de surpresa por esta ofensiva e rapidamente absorveu a ideia de que
não valeria a pena gastar mais recursos a segurar Assad. Como nota um artigo do Frankfurter
Allgemeine Zeitung, “há
alguns dias, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano Abbas Araghchi comeu
em público um shawarma num snack-bar em Damasco”. “À
altura”, escreve o jornal alemão, “já deveria suspeitar que Assad não poderia
ser salvo”.
Para o Irão, a queda de Assad é um duro golpe. A Síria tem sido usada pelas milícias pró-Teerão como
o Hezbollah e grupos iraquianos para treino e canais de passagem de armamento
para outras zonas, como o Líbano, Gaza e o Iémen (onde os Houthis pró-Irão, por enquanto,
ainda se mantêm no poder). “O investimento que os iranianos
fizeram na Síria é muito significativo, [porque] é uma ponte terrestre
importante para o Líbano. Mas é também uma aliança que os iranianos tinham com
o regime de Assad que durava desde que a República Islâmica foi instituída”, notou à CNN Trita Parsi,
vice-presidente do Quincy Institute.
▲ Bashar
al-Assad com o 'ayatollah' Khamenei. O Irão há anos que usava a Síria como
palco de actuação das suas milícias Getty Images
Perante isto, surgem mais perguntas do que
respostas: “Ficarão demasiado fracos para negociar? Ou
quererão retaliar para manter a sua posição e escalar a guerra a um ponto em
que a diplomacia já não é possível?”,
questiona a analista. Os impactos podem ir desde o programa nuclear iraniano até à relação com os
Houthis, o Hamas e as negociações com Israel.
Por saber que a Síria
vai para além de Assad, Israel também se posiciona neste
tabuleiro. Na
manhã deste domingo, enviou tropas para a zona desmilitarizada dos montes Golã
(na fronteira com a Síria) e
atacou uma fábrica de armamento
químico na
Síria, que estaria até agora controlada pelas tropas de Assad. O receio dos israelitas, diz a imprensa
do país, é não saber em que mãos pode agora cair este armamento nem como o novo
poder em Damasco se vai posicionar face a Israel. Por um lado, a queda
de um regime apoiado pelo Irão é visto como uma boa notícia. Mas, como assinala o Haaretz, “num campo fragmentado de rebeldes, as facções ligadas à Al-Qaeda têm influência”. E isso
pode significar uma postura hostil face a Israel.
“A cola” que unia os rebeldes desapareceu. E
agora? Já há quem tema uma nova Líbia
E estes não são sequer os únicos que tentarão ter uma palavra a
dizer no futuro da Síria. Muitos estados árabes, nomeadamente os do Golfo,
mantiveram-se durante anos contra Assad e, recentemente, retomaram
pragmaticamente os laços por considerarem que a guerra tinha sido ganha pelo
regime.
O puzzle de interesses é complexo: “No norte, a Turquia irá opor-se a qualquer processo
político que reforce a autonomia dos curdos e pode até fazer operações
militares para sabotar esse processo e expandir a sua zona-tampão, sobretudo se
os EUA se retirarem”, analisava este domingo
a consultora geoestratégica Stratfor. “Os estados árabes do Golfo, em
particular os Emirados Árabes Unidos — que temem que um governo de influências
islamistas assuma o controlo da Síria — irá tentar equilibrar contra o HTS e a
Turquia as facções do sul do Exército Nacional Sírio e encorajá-las a usar a
política e a força para os enfraquecer.” A grande dúvida sobre o
futuro da Síria parece ser exactamente essa: como
se vão conciliar os interesses de vários grupos rebeldes fragmentados, que agem
frequentemente por procuração de grandes potências, na nova arquitectura de
Estado que sair daqui?
“Hoje, a euforia da vitória domina. Mas temos
de ter esperança que seja rapidamente colocado em marcha um processo político.
A Síria não é imune a um cenário de implosão, à semelhança dos que aconteceram
no Iraque e na Líbia.” Bassel
Khagadou, especialista sírio
“A cola” que unia os rebeldes desapareceu. E agora? Já
há quem tema uma nova Líbia
“A luta
contra o regime de Assad era a cola que unia esta coligação de facto”, assinalou à
BBC Thomas Juneau, especialista em Médio Oriente da Universidade de
Ottawa. “Agora que Assad fugiu, a
unidade continuidade entre os grupos que o derrubaram vai ser um desafio.”
Por enquanto, numa tentativa de
continuar a assumir a liderança do processo, o HTS tem tentado assumir-se como moderado e o seu líder parece
querer cortar com o passado mais radical ligado à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. Mas será suficiente para garantir a ordem
ou a Síria, historicamente disputada por várias potências mundiais, continuará
a arena onde diferentes interesses se enfrentam — enquanto milhões de civis
desesperam?
Bassel Kaghadou, especialista
sírio, deixou o alerta em entrevista ao Le Monde: “Hoje,
a euforia da vitória domina. Mas temos de ter esperança que seja rapidamente
colocado em marcha um processo político. A Síria não é imune a um cenário de
implosão, à semelhança dos que aconteceram no Iraque e na Líbia.”
MÉDIO ORIENTE MUNDO SÍRIA RÚSSIA IRÃO ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA UCRÂNIA EUROPA GUERRA NA
UCRÂNIA CONFLITO
ISRAELO-PALESTINIANO ISRAEL
COMENTÁRIOS:
Nuno Pinho: O
dado mais interessante de tudo isto é a vulnerabilidade dos regimes Russo,
Iraniano. Este eixo está muito fragilizado e a sua entropia será explosiva e
rápida. O mundo tem que estar preparado, não para a queda, que é consequência
natural deste tipo de envolvimentos políticos, mas sim, para o após, manter a
estabilidade possível até os equilíbrios acontecerem. A Europa, deve pois,
continuar a ajudar a Ucrânia a sangrar a máfia Rússia, protegendo as vidas,
tanto de russos como de ucranianos e criar um garrote na economia. Será pelo
dinheiro (o poder na Rússia dele depende) a trair o maior ditador da história
da humanidade a par de Hitler. Os iranianos são um povo forte, que saberá
quando for o momento certo para acabar com aqueles lunáticos. Depois, ajudar
estes países a entenderem o que perderam e como se podem reerguer. O mundo vai
ficar melhor com democracias imperfeitas e tiranias desfeitas. José B
Dias > Nuno Pinho: "Wishful thinking" no seu habitual ...
presumo que a vulnerabilidade dos USA não tenha existido aquando do Vietname,
da Pérsia do Xá, da Nicarágua ou do Afeganistão! Olhar o mundo com lentes da
cor do "clube" não permite nunca uma análise minimamente aderente com
a realidade ... PS: daqui a
algum tempo, quando os extremismos se fizerem sentir em pleno na Síria, já
ninguém se irá recordar das loas que teceu aos "heróicos libertadores do
povo sírio". Também já ninguém faz qualquer menção ao facto de o Xá ter
sido deixado cair pelos seus "amigos" norte-americanos e a ter
Khomeini estado asilado em França de onde voou para instaurar a República
Islâmica do Irão ... EDUARDO COSTA
> NUNO PINHO: A Rússia e o Irão,
crescentemente enfraquecidos, podem também ir pelo mesmo caminho da Síria.
Ainda que possa demorar mais uns anos. Luis Silva: O
país ficou entregue aos bichos.
António
Abreu > Luis Silva: Até agora
estava entregue a animais... Eduardo Costa > António Abreu: Animais, e bem selvagens. Fernando SilvaAntónio Abreu:
Animais violentos e os únicos a promoverem conflitos no médio oriente.
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