segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Hoje

 

A queda do regime. Sírio.

Rússia e Irão derrotados, Turquia reforçada e Israel expectante. As consequências imprevisíveis da queda de Assad na região — e no mundo

O momento na Síria é de euforia, mas o país, palco de guerras por procuração, pode vir a enfrentar dias difíceis. No Médio Oriente, todos querem ter uma palavra a dizer. E o que farão Rússia e EUA?

CÁTIA BRUNO Texto

OBSERVADOR, 08 dez. 2024, 23:59

Índice

A imagem desgastada da Rússia, que preferiu “sacrificar Assad” pela Ucrânia

Turquia, que pode ter dado aval tácito à ofensiva, está pronta para intervir e esmagar questão curda

O triângulo Irão-Hezbollah-Israel, fulcral para a Síria

“A cola” que unia os rebeldes desapareceu. E agora? Já há quem tema uma nova Líbia

 

Chegou a tua vez, doutor.”A ameaça foi deixada numa parede da cidade de Deraa, em graffiti. Estávamos em março de 2011 e a Primavera Árabe espalhava-se como lume em palha seca por todo o Médio Oriente, chegando finalmente à Síria. O “doutor” era Bashar a-Assad, o Presidente sírio que havia estudado medicina mas tinha acabado por seguir as pisadas do pai. Foram precisos treze anos, porém, para que “a vez” de Assad chegasse.

A ofensiva do quase desconhecido Hayat Tahrir al-Sham (HTS) foi a machadada final no regime dos Assad, que nenhum grupo rebelde conseguira antes, depois de mais de uma década de guerra civil sangrenta, onde meio milhão de pessoas morreram e milhões se tornaram refugiados por causa de ataques que incluíam bombas de pregos e o uso de armas químicas.

Um ataque-relâmpago que resultou, em parte, pela fragilidade do próprio regime, com os sinais de que algumas figuras próximas do Presidente se estariam a afastar e a dar tacitamente o aval aos rebeldes. Mas também, em grande parte, pela situação em que os aliados militares que sustiveram Assad ao longo de 13 anos de conflito estão: Rússia e Irão, ambos desgastados, a combater noutras frentes (Ucrânia e Israel). Perante este cenário, terão decidido que não valia a pena apostar mais das suas fichas no líder sírio.

A queda de Assad foi festejada em vários pontos do mundo árabe, como no Líbano Anadolu via Getty Images

A guerra na Síria foi, desde o início, palco de uma guerra por procuração, onde se digladiaram grandes potências mundiais como Rússia e Irão, mas também Turquia e EUA, bem como grupos como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico. A queda do regime e o ponto final neste conflito têm, por isso, potencial para provocar ondas de choque por todo o mundo e reverberar até noutras guerras.

Como resumiu o coronel Tim Collins, veterano da Guerra do Iraque, o que aconteceu este fim de semana na Síria tem potencial para provocar “o princípio do fim de três, talvez quatro, guerras; o desfiar do chamado ‘Eixo do Mal’; ou a aurora de uma nova era negra que irá ser motor de milhões de novos refugiados para a Europa”. Num artigo publicado no Telegraph, o militar diz que é também possível que acabemos por assistir “aos três” cenários.

A imagem desgastada da Rússia, que preferiu “sacrificar Assad” pela Ucrânia

Para entender como todos estes cenários se podem concretizar, é preciso entender como os eventos dos últimos dias afectam os principais actores deste conflito. E, à primeira vista, o mais relevante de todos é a Rússia, com Vladimir Putin há muito a assumir o papel de apoiante militar mais importante de Assad, enviando até soldados do antigo grupo Wagner para o terreno, a fim de impedir a perda de cidades fulcrais para o regime.

 “A Rússia não só tem falta de homens e de fundos, mas também de generais competentes. Nos últimos dois anos [desde o início da guerra na Ucrânia] a Síria tornou-se basicamente o lugar de desterro dos generais ineficazes e seriamente incompetentes.Anton Mardasov, investigador do Instituto do Médio Oriente

Só que o desgaste na guerra da Ucrânia — essa sim estratégica e ideologicamente mais relevante para o Kremlin do que a situação no Médio Oriente — tem pesado sobre Moscovo. E, quando uma pequena rebelião se pôs em marcha no norte da Síria para conquistar cidades, a Rússia parece ter assumido que agarrar Assad e investir mais homens e armamento naquela guerra não valia a pena. “Qual é a previsão? Não posso adivinhar, o nosso trabalho não é adivinhar”, disse, titubeante, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, quando foi questionado sobre se o regime sírio poderia vir a cair.

Anton Mardasov, investigador no Instituto do Médio Oriente em Washington, não teve dúvidas em afirmar ao Le Monde que “a situação actual é um ataque à imagem da Rússia”. A incapacidade de reagir militarmente na Síria mostra, diz o analista, que o Kremlin esticou demasiado os seus esforços e deixou Damasco com os mínimos: “A Rússia não só tem falta de homens e de fundos, mas também de generais competentes. Nos últimos dois anos [desde o início da guerra na Ucrânia] a Síria tornou-se basicamente o lugar de desterro dos generais ineficazes e seriamente incompetentes.”

Vladimir Putin tem sido o maior apoiante de Assad em termos militares. Agora concedeu-lhe asilo SPUTNIK/AFP via Getty Images

“A cola” que unia os rebeldes desapareceu. E agora? Já há quem tema uma nova Líbia

Pelo meio, Moscovo perde a sua influência no Mediterrâneo ao ter de largar a base naval de Tartus, na Síria. Mas o que isso revela é que a Ucrânia é uma joia muito mais valiosa para o Kremlin do que qualquer pedaço de terra ou influência na Síria. O facto de acabar por assumir que deu asilo a Bashar al-Assad e à sua família na Rússia, “sugere que o Kremlin estava disposto a sacrificar Assad por outros jogos diplomáticos mais importantes”, notou na Spectator Owen Matthews, especialista britânico em política russa.

Que impacto pode isto ter no conflito na Ucrânia ainda não é claro, mas é certo que pode não ser dissociável. O Presidente-eleito norte-americano Donald Trump já veio assinalar que “a Rússia perdeu o interesse na Síria por causa da Ucrânia” e que é altura, mais do que nunca, de chegar a um acordo na guerra europeia. Qual o grau de influência que Trump terá sobre Putin e quão relevante a Síria é um trunfo são questões sem resposta para já.

 

Turquia, que pode ter dado aval tácito à ofensiva, está pronta para intervir e esmagar questão curda

Se a Rússia parece sair fragilizada da derrocada de Assad na Síria, já a Turquia pode assumir-se como um dos maiores vencedores. Há muito adversária do regime sírio — por ser um regime xiita vizinho, por se estar afectada com a vaga de milhões de refugiados do conflito e, acima de tudo, por querer ter uma palavra a dizer na região por causa da questão curda —, Ancara viu o poder ser conquistado por um grupo armado (classificado como terrorista pelos EUA) que não controla, mas com quem tem proximidade.

O grau de envolvimento do regime de Recep Tayipp Erdoğan nesta ofensiva não é claro, mas é certo que terá existido algum. Como resumiu ao Die Welt um dos participantes que esteve na recente conferência de Manama, no Bahrain, para discutir a situação na Síria, “o facto de os turcos não concordarem com a ofensiva não quer dizer que não soubessem que ela ia acontecer”. A mesma fonte vai ainda mais longe: “Pode concordar-se com algo por não dizer ‘Não’”. Por omissão, portanto.

O Presidente turco, Recep Tayipp Erdoğan, é um dos líderes mais beneficiados com a queda de Assad AFP via Getty Images

O antigo embaixador norte-americano Turquia, James Jeffrey, também fez questão de reforçar à imprensa alemã o envolvimento de Erdoğan na situação actual, que define como “uma grande vitória para o Ocidente”. “Os EUA, Israel e a Turquia devem trabalhar juntos como forças da oposição [a Assad]”.

Os interesses de Ancara, porém, podem não ser os mesmos de Washington ou de Telavive. Basta olhar para um ponto específico: o exército curdo na Síria, visto como ameaça existencial por parte da Turquia, tem contado com apoio declarado dos norte-americanos ao longo dos últimos anos. Há quem especule, como se pode ler num artigo do Haaretz, que Erdoğan pode estar esperançoso que uma nova administração Trump não esteja tão empenhada na defesa dos curdos. Assim, a Turquia irá, sem dúvida, tentar influenciar o tabuleiro que — mesmo sem guerra — se continuará a jogar na Síria ao longo dos próximos tempos.

 

O triângulo Irão-Hezbollah-Israel, fulcral para a Síria

Israel também tem um papel nesta peça porque, no Médio Oriente, tudo está interligado. Se a Rússia reduziu o seu apoio a Assad por estar investida na Ucrânia, o Irão parece também tê-lo feito porque o seu braço armado libanês, o Hezbollah, tem sido dizimado no conflito com os israelitas e perdeu grande parte das capacidades militares que exercia na Síria.

À semelhança do que aconteceu com Putin, também o Irão parece ter sido apanhado de surpresa por esta ofensiva e rapidamente absorveu a ideia de que não valeria a pena gastar mais recursos a segurar Assad. Como nota um artigo do Frankfurter Allgemeine Zeitung, “há alguns dias, o ministro dos Negócios Estrangeiros iraniano Abbas Araghchi comeu em público um shawarma num snack-bar em Damasco”. “À altura”, escreve o jornal alemão, “já deveria suspeitar que Assad não poderia ser salvo”.

Para o Irão, a queda de Assad é um duro golpe. A Síria tem sido usada pelas milícias pró-Teerão como o Hezbollah e grupos iraquianos para treino e canais de passagem de armamento para outras zonas, como o Líbano, Gaza e o Iémen (onde os Houthis pró-Irão, por enquanto, ainda se mantêm no poder). “O investimento que os iranianos fizeram na Síria é muito significativo, [porque] é uma ponte terrestre importante para o Líbano. Mas é também uma aliança que os iranianos tinham com o regime de Assad que durava desde que a República Islâmica foi instituída”, notou à CNN Trita Parsi, vice-presidente do Quincy Institute.

Bashar al-Assad com o 'ayatollah' Khamenei. O Irão há anos que usava a Síria como palco de actuação das suas milícias  Getty Images

 

Perante isto, surgem mais perguntas do que respostas: “Ficarão demasiado fracos para negociar? Ou quererão retaliar para manter a sua posição e escalar a guerra a um ponto em que a diplomacia já não é possível?”, questiona a analista. Os impactos podem ir desde o programa nuclear iraniano até à relação com os Houthis, o Hamas e as negociações com Israel.

Por saber que a Síria vai para além de Assad, Israel também se posiciona neste tabuleiro. Na manhã deste domingo, enviou tropas para a zona desmilitarizada dos montes Golã (na fronteira com a Síria) e atacou uma fábrica de armamento químico na Síria, que estaria até agora controlada pelas tropas de Assad. O receio dos israelitas, diz a imprensa do país, é não saber em que mãos pode agora cair este armamento nem como o novo poder em Damasco se vai posicionar face a Israel. Por um lado, a queda de um regime apoiado pelo Irão é visto como uma boa notícia. Mas, como assinala o Haaretz, “num campo fragmentado de rebeldes, as facções ligadas à Al-Qaeda têm influência”. E isso pode significar uma postura hostil face a Israel.

 

“A cola” que unia os rebeldes desapareceu. E agora? Já há quem tema uma nova Líbia

E estes não são sequer os únicos que tentarão ter uma palavra a dizer no futuro da Síria. Muitos estados árabes, nomeadamente os do Golfo, mantiveram-se durante anos contra Assad e, recentemente, retomaram pragmaticamente os laços por considerarem que a guerra tinha sido ganha pelo regime.

O puzzle de interesses é complexo: “No norte, a Turquia irá opor-se a qualquer processo político que reforce a autonomia dos curdos e pode até fazer operações militares para sabotar esse processo e expandir a sua zona-tampão, sobretudo se os EUA se retirarem”, analisava este domingo a consultora geoestratégica Stratfor. “Os estados árabes do Golfo, em particular os Emirados Árabes Unidos — que temem que um governo de influências islamistas assuma o controlo da Síria — irá tentar equilibrar contra o HTS e a Turquia as facções do sul do Exército Nacional Sírio e encorajá-las a usar a política e a força para os enfraquecer.” A grande dúvida sobre o futuro da Síria parece ser exactamente essa: como se vão conciliar os interesses de vários grupos rebeldes fragmentados, que agem frequentemente por procuração de grandes potências, na nova arquitectura de Estado que sair daqui?

 “Hoje, a euforia da vitória domina. Mas temos de ter esperança que seja rapidamente colocado em marcha um processo político. A Síria não é imune a um cenário de implosão, à semelhança dos que aconteceram no Iraque e na Líbia.” Bassel Khagadou, especialista sírio

“A cola” que unia os rebeldes desapareceu. E agora? Já há quem tema uma nova Líbia

“A luta contra o regime de Assad era a cola que unia esta coligação de facto”, assinalou à BBC Thomas Juneau, especialista em Médio Oriente da Universidade de Ottawa. “Agora que Assad fugiu, a unidade continuidade entre os grupos que o derrubaram vai ser um desafio.”

Por enquanto, numa tentativa de continuar a assumir a liderança do processo, o HTS tem tentado assumir-se como moderado e o seu líder parece querer cortar com o passado mais radical ligado à Al-Qaeda e ao Estado Islâmico. Mas será suficiente para garantir a ordem ou a Síria, historicamente disputada por várias potências mundiais, continuará a arena onde diferentes interesses se enfrentam — enquanto milhões de civis desesperam?

Bassel Kaghadou, especialista sírio, deixou o alerta em entrevista ao Le Monde: “Hoje, a euforia da vitória domina. Mas temos de ter esperança que seja rapidamente colocado em marcha um processo político. A Síria não é imune a um cenário de implosão, à semelhança dos que aconteceram no Iraque e na Líbia.”

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COMENTÁRIOS:

Nuno Pinho: O dado mais interessante de tudo isto é a vulnerabilidade dos regimes Russo, Iraniano. Este eixo está muito fragilizado e a sua entropia será explosiva e rápida. O mundo tem que estar preparado, não para a queda, que é consequência natural deste tipo de envolvimentos políticos, mas sim, para o após, manter a estabilidade possível até os equilíbrios acontecerem. A Europa, deve pois, continuar a ajudar a Ucrânia a sangrar a máfia Rússia, protegendo as vidas, tanto de russos como de ucranianos e criar um garrote na economia. Será pelo dinheiro (o poder na Rússia dele depende) a trair o maior ditador da história da humanidade a par de Hitler. Os iranianos são um povo forte, que saberá quando for o momento certo para acabar com aqueles lunáticos. Depois, ajudar estes países a entenderem o que perderam e como se podem reerguer. O mundo vai ficar melhor com democracias imperfeitas e tiranias desfeitas.                    José B Dias > Nuno Pinho: "Wishful thinking" no seu habitual ... presumo que a vulnerabilidade dos USA não tenha existido aquando do Vietname, da Pérsia do Xá, da Nicarágua ou do Afeganistão! Olhar o mundo com lentes da cor do "clube" não permite nunca uma análise minimamente aderente com a realidade ... PS: daqui a algum tempo, quando os extremismos se fizerem sentir em pleno na Síria, já ninguém se irá recordar das loas que teceu aos "heróicos libertadores do povo sírio". Também já ninguém faz qualquer menção ao facto de o Xá ter sido deixado cair pelos seus "amigos" norte-americanos e a ter Khomeini estado asilado em França de onde voou para instaurar a República Islâmica do Irão ...   EDUARDO COSTA > NUNO PINHO: A Rússia e o Irão, crescentemente enfraquecidos, podem também ir pelo mesmo caminho da Síria. Ainda que possa demorar mais uns anos.                 Luis Silva: O país ficou entregue aos bichos.                  António Abreu > Luis Silva: Até agora estava entregue a animais...            Eduardo Costa > António Abreu: Animais, e bem selvagens. Fernando SilvaAntónio Abreu: Animais violentos e os únicos a promoverem conflitos no médio oriente.


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