Mas
que o mundo está danado, é um facto. Oxalá um texto tão dignificante de três
mulheres de hoje, não resulte negativamente para essas, pelos Putins da nossa
abastança, de longa data androcêntrica e sem melhoria que preste.
Possam três mulheres triunfar onde tantos falharam
Na verdade não serão três, mas quatro as mulheres que
podem mudar alguma coisa na política que temos tido, pois a três europeias
junta-se uma americana. Que, vejam lá, até faz parte da equipa de Trump
JOSÉ MANUEL FERNANDES Publisher e colunista do Observador
OBSERVADOR,02 dez. 2024, 00:2260
Não sou um optimista irritante,
pelo contrário. Mais depressa me definiria como um pessimista relutante.
Contudo, num tempo em que quase só leio textos catastrofistas sobre este
mundo que nos rodeia, apetece-me hoje chamar a atenção para três
mulheres – porventura mesmo quatro mulheres – que podem fazer a diferença nos
próximos tempos.
Eu compreendo que se vejam sobretudo
nuvens negras no horizonte. O mundo
democrático e liberal que temos vindo a construir nas últimas décadas parece
estar a desmoronar-se. Ainda este fim de semana os irlandeses
de Dublin estiveram quase, quase, mesmo quase a eleger para o Parlamento o
chefe de um gang suspeito de múltiplos crimes. À
hora a que escrevo não sei ainda se das eleições romenas não
terá saído mais um governante pró-russo.
Em França o governo recém-constituído pode não chegar ao Natal
se o partido da senhora Le Pen chumbar o orçamento – o que acontecendo pode também criar uma crise
europeia. Na Alemanha as eleições foram antecipadas depois de a coligação
no poder se ter desentendido e o futuro não se apresenta risonho. Aqui ao lado, em Espanha,
multiplicam-se os casos de corrupção em torno de Pedro Sánchez, mas este preferiu orquestrar mais um congresso do
seu partido para ser celebrado ao modo de um demagogo sul-americano. E até no Reino Unido,
onde o sistema eleitoral permitiu que o Partilho Trabalhista alcançasse uma
esmagadora maioria na Câmara dos Comuns, o governo de
Starmer vai de tropeção em tropeção. Isto para não falar das notícias muito preocupantes que continuam a
chegar das diferentes frentes de batalha na Ucrânia. Do resto do mundo nem
falo, está perigoso, mesmo perigoso.
Onde descubro então eu alguma luz no meio de tanta escuridão? Por
estranho que pareça em mudanças que estão a acontecer, ou podem vir a acontecer
– ainda é cedo para um diagnóstico – na forma como a União Europeia é dirigida. E não, não
estou a referir-me a António Costa, estou a falar de Ursula
von der Leyen, Kaja Kallas e Giorgia Meloni. Todas elas têm qualidades que as distinguem dos seus predecessores e
que convém não menorizar.
Mas vamos por partes, começando por Ursula
von der Leyen. Muitos dirão que foi
uma presidente acidental, e de certa forma foi, pois ninguém previa que
ascendesse a esse posto em 2019, outros acrescentarão que tem uma enorme
tendência para centralizar o poder. Tudo isso é verdade, mas neste
momento o que me interessa é que parece ter sido dos poucos líderes
europeus a perceber a mensagem dos eleitores nas recentes eleições europeias: não é possível continuar a governar a Europa como se
tudo tivesse ficado igual quando ocorreu uma viragem clara à direita e em
direcção a menos federalismo, não é possível continuar a achar que tudo na
Europa se resolve dentro do “bloco central” formado pelos cristãos-democratas,
socialistas e liberais. Foi ainda
assim que ainda se fez entre chefes de Estado e de Governo no conselho europeu onde Giorgia Meloni votou contra Von der Leyen, mas já não foi assim que se fez
na escolha dos pelouros na Comissão, com uma importante vice-presidência a ser
entregue a um italiano, como Meloni queria. Ursula von der Leyen tem
também tido os instintos certos no que respeita ao apoio à Ucrânia e na forma
como se refere ao actual conflito em Israel.
Na
história recente da União Europeia só três presidentes cumpriram dois mandatos:
Jacques Dellors, Durão Barroso e Von der Leyen. Não
é dizer pouco da senhora que vinha de lado nenhum.
Para além disso ela terá a seu lado Kaja
Kallas, ex-primeira-ministra
da Estónia e agora Alta Representante da União para as Relações Externas, um lugar que nos últimos anos tem sido miseravelmente
protagonizado por figuras sem peso político (caso da britânica – e
baronesa – Catherine Ashton e da italiana Federica Mogherini) ou claramente
fora de prazo, como o espanhol Josep Borrell, alguém que nunca perdia uma
oportunidade para se pronunciar contra Israel.
Kallas
pode ser diferente, sobretudo se pensarmos que, como primeira-ministra, foi a
mais ardorosa defensora da Ucrânia e que o seu país, a Estónia, é aquele que,
per-capita, mais ajuda enviou para Kiev, o que até lhe valeu o epíteto de “Dama de Ferro da Europa”. A história da sua família – a
sua mãe passou os primeiros dez anos de vida no goulag, juntamente com a sua
avó –, a sua oposição de sempre ao Norte Stream 2, tudo isso são indicadores de
que percebe bem o tipo de regime que
vigora em Moscovo. Aliás
ainda ontem, ao visitar Kiev em conjunto com António Costa, terá enviado a
mensagem mais acertada para o outro lado do Atlântico: disse que
uma vitória russa na Ucrânia “encoraja a
China… encoraja a Coreia do Norte e o Irão” — ou seja,
encoraja aqueles que Trump vê como maiores ameaças. Acresce
ainda que pertence ao grupo europeu dos liberais, ao contrário de
todos os seus antecessores, que eram socialistas.
E assim chegamos à terceira
mulher por quem pode passar muito do futuro da Europa: a
primeira-ministra italiana, Giorgia
Meloni.
Numa Europa onde quase todos os países vivem períodos de convulsão
interna, Meloni tem
conseguido o que costuma ser impossível em Itália – um período de estabilidade e até de previsibilidade. Apesar
da forma quase obsessiva como é sempre rotulada como “a líder da extrema-direita”, a verdade é que não só se apresenta
como sendo de centro-direita, como as suas políticas na frente externa se têm
revelado sólidas e firmemente ao lado da Ucrânia. A nível
interno tem
conseguido assegurar estabilidade e introduzido algumas reformas, algumas delas
assumidamente conservadoras, outras tão pragmáticas que têm levado muitos
líderes europeus a procurar aprender com a sua experiência – refiro-me
à forma como está a tentar tratar da separação entre refugiados e migrantes
económicos, fazendo essa triagem num campo que a Itália construiu na Albânia,
por acordo com o governo de Tirana.
Mas porventura aquilo que mais distinguirá
Meloni é a forma como, sem deixar de governar com pragmatismo, é uma política
que assume as suas ideias e não se
esconde atrás de vacuidades mais ou menos bem-quistas pelo eleitorado (ou pelas
elites instaladas, que a odeiam). Para perceber isso recomendo a leitura
da sua autobiografia, Io sono Giorgia – Le mie radici le mie idee, um livro de 2021 que decidiu escrever
depois da imensa repercussão da forma como se apresentou num comício da
campanha de 2019: “Eu sou
Giórgia. Sou mulher, sou mãe, sou italiana, sou cristã. Ninguém me vai tirar
isso.” Aqui ficam algumas passagens, que ajudam a perceber quem
ela é.
Sobre ter recusado a viatura oficial
na sua passagem por um governo de Berlusconi:
“Não se tratava apenas de ser
consistente com a batalha que travamos durante anos contra o desperdício na
política, mas acima de tudo uma forma de permanecer eu mesma, de não permitir
que este sistema me controle e se torne essencial à minha sobrevivência.”
Sobre a sua formação política nas
lutas estudantis, ainda nas décadas de 1980 e 1990: “A educação para a coragem foi um aspecto importante
do nosso crescimento, como activistas e como indivíduos. Uma pessoa que
foi educada na coragem será mais difícil de corromper quando se encontrar num
cargo público ou numa posição de poder, porque já se deparou com a escolha
entre o conforto pessoal, por um lado, e os seus princípios de outro lugar.”
Sobre a sua religião e a sua relação
com Deus: “Graças a
Ele acredito que a vida não deve ser encarada olhando para frente, mas olhando
para cima. O que importa não é até onde conseguimos avançar, mas até onde
conseguimos subir, para nos aproximarmos da nossa perfeição.”
Sobre a Europa e sobre como o federalismo
seria um grande erro: “A
soberania democrática
reside sobretudo nos Estados nacionais governados por governos e por
parlamentos eleitos directamente pelos cidadãos, Mas se deixarmos a iniciativa legislativa
a burocratas europeus que ninguém elegeu acabamos por prejudicar a democracia.”
Ainda sobre a Europa e os seus
valores: “Uma Europa
que os nossos irmãos mais velhos imaginaram forte e autónoma (…), capaz de unir
os seus povos não com parâmetros abstractos ou com uma moeda, mas com
a força da sua antiga civilização.”
Sobre a forma como escolhe as suas
equipas: “A
inteligência das pessoas, sobretudo em papéis de poder, reflecte-se nas
escolhas daqueles que as rodeiam. Sempre
preferi rodear-me de pessoas que me dizem a verdade, mesmo quando a verdade
dói.”
Podia continuar, mas julgo que estas
citações ajudam a perceber o essencial: Giorgia Meloni é uma política
com referências claras e que sabe o que quer. Isso mesmo se verificou na forma
como, no Parlamento Europeu, o seu
grupo, o ECR (conservadores e reformistas) preferiu não se fundir com o grupo
que estava a ser promovido por Victor Órban (chamado “Os Patriotas”), uma fusão
que faria deste bloco o segundo maior do hemiciclo, passando à frente dos
socialistas. Preferiu separar águas e essa estratégia está a funcionar, pois já conseguiu quebrar por mais
de uma vez o governo conjunto do euro-parlamento pelo velho bloco central,
obrigando o PPE, e Ursula von der Leyen, a olharem um pouco mais para a direita
apesar dos protestos de socialistas e liberais. Ou seja, criou
condições para que em Bruxelas não se ignore o que foi a vontade expressa dos
eleitores europeus através da lógica das “linhas
vermelhas”.
Os três mosqueteiros afinal eram quatro,
e por isso tenho de acrescentar uma americana a este trio: Susie Wiles.
Talvez
o nome não diga (ainda) nada a boa parte dos leitores, mas será a chefe de gabinete de Donald Trump na Casa
Branca, um lugar que já vi ser equiparado ao de primeiro-ministro numa
democracia presidencialista, como a americana. Trata-se
de alguém que trabalhou sempre na sombra, organizou campanhas políticas e
apoiou executivos locais e regionais, trata-se sobretudo de alguém que conseguiu pôr ordem na campanha
de Trump, com o sucesso que se viu sobretudo se pensarmos que ele teve muito
menos dinheiro para gastar do que Kamala Harris. Muito temida mas pouco conhecida,
primeira mulher a ocupar aquele posto na Casa Branca, todos lhe reconhecem uma
imensa capacidade de
trabalho e de inspirar respeito,
dizendo-se que não terão sido poucas as vezes que refreou o presidente eleito.
Na Europa não teremos sucesso
se não continuarmos a trabalhar com os Estados Unidos, o que implica trabalhar
com a administração Trump, sendo que de todos os nomes que foi indicando (e
alguns felizmente desindicando), Susie
Wiles é o que me parece mais sólido e mais capaz de influenciar o novo presidente. Será preciso
aprender a trabalhar com ela, pois não
creio que baste existir uma boa relação entre Elon Musk e
Giorgia Meloni para existirem bons canais de comunicação entre os
dois lados do Atlântico.
É que, lamento dizê-lo, a Europa não vai
reinventar-se de um dia para o outro, como alguns desejam e até prognosticam
apenas porque Trump estará os próximos quatro anos na Casa Branca. Tanto
assim é que basta ver como, na Europa, todos já perceberam que a haver uma solução rápida, mesmo que não a ideal, para a Ucrânia, ela não passará por Bruxelas (onde estão as sedes da
União Europeia mas também da NATO), mas de novo por Washington.
Nos últimos dias li, por motivos
diferentes, duas autobiografias de duas mulheres que dirigiram os seus países: Golda Meier(Israel) e Angela Merkel (Alemanha) – a este
último dediquei mesmo um contra-corrente na Rádio
Observador. São duas histórias muito diferentes e dois livros
reveladores do contraste entre alguém que sempre lutou e nunca
escondeu as suas ideias, e uma dirigente que nem ao recapitular a sua vida
consegue ser diferente da gestão eficiente mas sem grande visão que marcou o
seu mandato. Em 1973 o governo de Golda Meier
salvou Israel no seu momento de maior crise, mesmo cometendo erros, em 2024
estamos numa Europa aterrorizada com um declínio da Alemanha que Merkel nem
sequer parece admitir.
Gostava de acreditar que as três mulheres europeias que aqui evoquei
tivessem todas a coragem (e o espírito de sacrifício) de Golda Meier e que a
quarta nesta lista, a americana, o pragmatismo eficiente de Merkel. Não sei se
não é pedir muito, mas pedir não custa.
POLÍTICA UNIÃO
EUROPEIA EUROPA MUNDO ESTADOS
UNIDOS DA AMÉRICA AMÉRICA
COMENTÁRIOS (de 60)
José Paulo Castro: E, felizmente, estamos a falar
de mulheres. Não de 'pessoas que menstruam'. Miguel Seabra: E a Ana Gomes?
Lino Oliveira > Miguel Seabra: Gozar não vale. Maria Cordes: O optimismo pode ser perverso,
se não levar a sério a minoria que quer acabar com a nossa civilização, a
deturpação da história, a política de portas abertas, especialmente ao
islamismo, o enorme fosso entre ricos e pobres, especialmente a Sul, que tende
a acabar com a classe média, um dos esteios da nossa civilização. Portugal,
cheio de fracturas, cuja responsabilidade deverá ser assacada ao Sr. Costa,
agora santificado, país onde há escolas onde 90% dos alunos se abrigam na Acção
Social, será que os portugueses têm a noção da desgraça que isto representa, é
um país vulnerável, ao wokismo, à esquerda que se quer confundir com a
Conferência de S. Vicente de Paulo, para quem os pobrezinhos de Cristo
substituíram a classe operária, e que quantos mais bairros problemáticos
existam, melhor, podem elevar o nível da gritaria, e, terrível, a impreparação,
a todos os níveis, que a escola pública está a proporcionar, deixando que a
peçonha do wokismo, com os géneros e cidadanias, procedam às lavagens dos
cérebros , política há muito em roda livre, sem que tivéssemos dado por isso.
Um cocktail explosivo! João Floriano:
«É que, lamento
dizê-lo, a Europa não vai reinventar-se de um dia para o outro,...........» Vamos
esperar que não tenha acordado demasiado tarde para essa reinvenção. O mundo
hoje caminha extremamente depressa. Fala-se em paz entre Israel e o Hezbolah e
acordamos com a cidade de Aleppo no controle dos Jihadistas e a perspectiva de
nova guerra às portas de Israel. Das três mulheres fortes europeias, a minha
maior simpatia vai naturalmente para Meloni. Quanto a Kallas, não será preciso
esforçar-se muito para ser melhor do que Borrell. José
Martins de Carvalho: Quero partilhar o optimismo moderado de JMF. Mas é difícil com as cedências
da Ursula Von der Leyen ao wokismo, aos excessos de regulação, à distribuição
de dinheiro para mal gastar e a medidas como o euro digital
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