sábado, 16 de setembro de 2023

Faltou-lhe o manto


Cá por casa, a nudez forte da verdade, se revestir um corpo nu de mulher ainda que recoberto com o manto diáfano da fantasia, como foi também o caso da estátua que Teixeira Lopes criou para Eça, baseada na alegórica frase deste, provoca sempre reacções fortes, de gente que não vai em alegorias, habituada à contenção das boas maneiras de pudicícia ou reserva… Ou talvez antes, ao desconhecimento dos belos nus apolíneos ou de outras figuras míticas, com muitas femininas – e, não só as de natureza mítica - especificamente dos clássicos, desde os seus primórdios, como, no decurso dos séculos, as humanas, no que toca às esculturas como no referente à pintura. Também, naturalmente, às literaturas, onde o escritor pode dar largas às suas fantasias eróticas de conhecedor experiente, sendo a leitura de menor visibilidade entre nós cá… O nosso povo é um povo essencialmente trabalhador e sério, que não vai em fantasias e muito menos se eivadas de pornografia com maior visibilidade, que o corpo da mulher é essencialmente chamariz das nossas ternuras, ou de recalcamentos devotos dentro do âmbito intimista. Sem contar, é certo, com os casos de violência possessiva, também comuns. Para mais, devoções há muitas, todas eivadas de seriedade, como explica o excelente texto de Eugénia de Vasconcellos, a respeito da reclamação de que foi alvo a tal estátua de Camilo. Tivesse ela um manto, não diáfano mas de boa sarja ou outro tecido espesso, virtuosamente encobridor das partes mais gradas, e não haveria protesto.

 

Ódio de Perdição

A estátua, a menos que caia em cima de alguém, é menos capaz de agressão do que os «ilustres» signatários da carta com os quais o Exmo. Sr. Presidente Rui Moreira concorda.

EUGÉNIA DE VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora

OBSERVADOR, 15 set. 2023, 00:1629

Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui Moreira,

Começo por lhe dizer que sou admiradora da obra de Francisco Simões – só por isto, decerto calculará o que se segue.

Venho, portanto, e sem delongas, propor-lhe que faça a fineza de enviar a estátua do meu querido Camilo e do seu amor nu – seja ele quem eu penso que é, a Musa, quem Francisco Simões afirma ser, os amores de Camilo assim substanciados num corpo de Mulher, o que não deixa de ser também a Musa, ou Ana Plácido, quem muita gente pensa ser – para a minha casa. Moro num T1, é certo, mas hei-de fazer espaço para acomodar o casal de bronze.

E agora passo a explicar.

Estávamos em 1987. E eu em Lisboa. Estudante. Na faculdade, as bibliografias na lista de compras são longas e o dinheiro curto. No meu caso, esta situação era agravada pelas assíduas visitas religiosas à livraria Buchholz, à Arco-Íris, e à 111, uns passos antes da galeria onde ia encher a retina para sonhar em verso. A verdade é que desgraçava o orçamento em livros não requeridos, porém muito desejados. Para não falar dos maravilhosos catálogos pesadíssimos, cavernas de Ali-Babá, cheios de tesouros inalcançáveis em regra, tangíveis em excepção: ainda me lembro do dia em que encomendei, na 111, a obra completa de Vinícius de Moraes em capa dura e papel bíblia – uma alegria para a vida.

Uma tarde, estava no Chiado, mas outro, não este que agora temos, intransitável e turístico de tuk-tuk, quando, inesperadamente, na Bertrand, vejo um livro desconhecido e belo: O Corpo Iluminado. Poemas de David Mourão-Ferreira e desenhos de Francisco Simões. E dos poemas nascidos desses desenhos disse posteriormente o poeta, «como se dos traços rompessem, revoadas de sílabas». Um livro feito sob o signo de Eros, força explosiva da vida, e a celebração dessa chama original na nudez ora clara ora obscura do corpo da mulher em flor: «De húmido lume tu me incendeias».

Foi assim que conheci a obra de Francisco Simões. E nunca mais deixei de a querer conhecer.

É pasmoso que em 2023, em Portugal, não na Síria ou no Irão, se refira ao corpo nu da mulher como «um exemplar mais ou menos pornográfico». E, no mínimo, vergonhoso, referir-se à remoção da escultura de Francisco Simões, como o «favor de desentulhar aquele belo largo de tão lamentável peça e despejá-la onde não possa agredir a memória de Camilo».

Tanto quanto me é dado ver, a estátua, a menos que caia em cima de alguém, é menos capaz de agressão do que os «ilustres» signatários da carta com os quais o Exmo. Sr. Presidente Rui Moreira concorda, pois considera a obra de Francisco Simões «deselegante». E já que decidiu pela «remoção do objecto», reafirmo a minha inteira disponibilidade para o receber em minha casa onde, a despeito do seu coração de bronze, será mais feliz do que nos «depósitos municipais».

Com os melhores cumprimentos,

EV

RUI MOREIRA    POLÍTICA    ARTE    CULTURA    CM PORTO    PORTO    PAÍS

COMENTÁRIOS (de 29)

Jorge Silva: Cara Eugénia: Concordo com o que diz, e compreendo o tom em que o faz. No entanto, penso que contra tais comportamentos de 37 iluminados, o tom de voz tem de ser tonitruante. Caso contrário o atrevimento de tais educadores do bom gosto não será exterminado, como deve. Tenho dito.              Tim do Á: Estamos no Islão. Volta Salazar!                      João Floriano: Estimada poeta Eugénia: Eu também me candidatava a receber a estátua do Camilo e da sua erótica musa, mas há o inconveniente de ser em bronze, liga que ultimamente está muito na moda e debaixo de olho de alguns saqueadores de jardins. Um dos meus vizinhos resolveu colocar à porta de casa um belíssimo exemplar de doberman em bronze que tinha a grande vantagem de não ladrar pela noite dentro e não alçar a perna e deixar «croquetes» à porta dos vizinhos e muito menos embirrar com o carteiro. Foi levado para parte incerta não se sabe por quem. Bem que poderia acontecer o mesmo com o Camilo. Falando agora seriamente sobre este assunto muito sério, lamenta-se por dois motivos: Um grupo de moralistas radicais à solta, uma minoria fanática que se arvora detentora de autoridade para determinar o que esteticamente é válido e aceitável em termos de bons costumes. Cheira e muito a talibans à portuguesa. O segundo motivo para lamentações é que Rui Moreira tenha achado pertinência nas pretensões desta minoria a precisar de tratamento psiquiátrico. O mais grave é que esta gente ficou mesmerizada com o facto de ter mandado o Camilo e a Ana Plácido para qualquer arrecadação camarária donde desaparecerá daqui a uns tempos discretamente para talvez ser encontrada mais tarde num qualquer jardim privado da Europa. Seguir-se-ão outras obras que desagradem a esta gente tonta porque o pior foi ceder uma vez. Em breve começarão a embirrar com tudo o que é estátua de mulher com maminhas à mostra a segurar bandeiras no meio de soldados, não só pelo seu carácter pornográfico (os soldados adoram apalpar), como por serem ícones de violência. e quando nada mais restar irão «marrar» com a estátua do Marquês de Pombal porque incita à crueldade contra os animais. Estamos mesmo perante uma cruzada de ódio que não se resolve protelando e concordando como o fez Rui Moreira. E não se compreende como o politicamente correcto nos levou tão longe a ponto de uma minoria impor os seus pontos de vista à maioria, que igualmente de forma incompreensível fica calada e consente.              Maria Augusta Martins: Coitados e coitadas destes defensores da moral e bons costumes. Com a idade a demência e o prostatismo ataca e bate forte. E nós a aguentar os que elegemos e é bem feito pois cada um tem o que escolhe democraticamente, diz-se...               Maria Nunes: Já assinei a petição contra a remoção da estátua de Camilo.                    Pedro Ferreira: Nem sei bem como classificar este tipo de energúmenos que julgam ser donos de Portugal, só porque acham que é chique ser woke. Gente triste e atrasada é o que são.                Alberico Lopes > José Luis Salema: Bom, já agora junte-lhe a paspalha da tipa que encerrou os colégios particulares mas manteve e mantém os filhos no Colégio Alemão! É mesmo de partir a moca a rir!                João Patrício Vieira: Adoro os guardiões dos bons costumes. Estão deslocados pois este país não compreende o seu inestimável serviço à Nação. Proponho que emigrem para os seguintes países: Irão, Rússia, Coreia do Norte, China - repúblicas de lentes onde o seu contributo será reconhecido e valorizado!                    A Toupeira > João Alves: E no entanto pronunciou-se!          Sérgio: Muito bom! Infelizmente estamos entregues a esta corja pestilenta e nauseabunda com tiques de superioridade e WOKES que já contaminou os nossos "elites" e até cangalheiros de estado...                   Carlos Chaves: Caríssima Eugénia, já tem mais um concorrente: eu também quero a estátua, não para pôr dentro de casa, mas sim para a pôr na minha rua para fruição de todos que lá passem, isto é, caso a junta de freguesia autorize! Perguntem ao sr. Rui Moreira e aos outros “ilustres” 37 mentecaptos, se têm coragem de continuarem a chamar o Dr. Oliveira Salazar de ditador?                       Mário Miranda: A inqualificável decisão de Rui Moreira -- a propósito, não entendo como pode uma decisão destas não ser colegialmente tomada no âmbito do executivo camarário -- só teve uma virtude: permitir esta brilhante resposta da Eugénia de Vasconcellos.                   Alessandro Garuti: " Ilustres cidadãos " ???. Dr.Rui "Orban" Moreira, estamos no século XXI , as decisões tomam-se nas instituições democráticas e não por " Ilustres Cidadãos ".

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