Cá por casa, a nudez forte da verdade, se revestir um corpo nu de mulher ainda que recoberto com o manto diáfano da fantasia, como foi também o caso da estátua que Teixeira Lopes criou para Eça, baseada na alegórica frase deste, provoca sempre reacções fortes, de gente que não vai em alegorias, habituada à contenção das boas maneiras de pudicícia ou reserva… Ou talvez antes, ao desconhecimento dos belos nus apolíneos ou de outras figuras míticas, com muitas femininas – e, não só as de natureza mítica - especificamente dos clássicos, desde os seus primórdios, como, no decurso dos séculos, as humanas, no que toca às esculturas como no referente à pintura. Também, naturalmente, às literaturas, onde o escritor pode dar largas às suas fantasias eróticas de conhecedor experiente, sendo a leitura de menor visibilidade entre nós cá… O nosso povo é um povo essencialmente trabalhador e sério, que não vai em fantasias e muito menos se eivadas de pornografia com maior visibilidade, que o corpo da mulher é essencialmente chamariz das nossas ternuras, ou de recalcamentos devotos dentro do âmbito intimista. Sem contar, é certo, com os casos de violência possessiva, também comuns. Para mais, devoções há muitas, todas eivadas de seriedade, como explica o excelente texto de Eugénia de Vasconcellos, a respeito da reclamação de que foi alvo a tal estátua de Camilo. Tivesse ela um manto, não diáfano mas de boa sarja ou outro tecido espesso, virtuosamente encobridor das partes mais gradas, e não haveria protesto.
Ódio de Perdição
A estátua, a menos que caia em cima de alguém, é menos
capaz de agressão do que os «ilustres» signatários da carta com os quais o
Exmo. Sr. Presidente Rui Moreira concorda.
EUGÉNIA DE VASCONCELLOS
Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 15 set. 2023, 00:1629
Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal do Porto, Rui
Moreira,
Começo por lhe dizer que sou admiradora
da obra de Francisco Simões – só por isto, decerto calculará o que
se segue.
Venho, portanto, e sem delongas,
propor-lhe que faça a fineza de enviar a estátua do meu querido Camilo e do seu
amor nu – seja ele quem eu penso que é, a Musa, quem Francisco Simões afirma
ser, os amores de Camilo assim substanciados num corpo de Mulher, o que não
deixa de ser também a Musa, ou Ana Plácido, quem muita gente pensa ser – para a
minha casa. Moro num T1, é certo, mas hei-de fazer espaço para acomodar o casal
de bronze.
E agora passo a explicar.
Estávamos em 1987. E
eu em Lisboa. Estudante. Na faculdade, as bibliografias na lista de compras são
longas e o dinheiro curto. No meu caso, esta situação era agravada pelas
assíduas visitas religiosas à livraria Buchholz, à Arco-Íris, e à 111, uns
passos antes da galeria onde ia encher a retina para sonhar em verso. A verdade é que desgraçava o orçamento em
livros não requeridos, porém muito desejados. Para não falar dos maravilhosos
catálogos pesadíssimos, cavernas de Ali-Babá, cheios de tesouros inalcançáveis
em regra, tangíveis em excepção: ainda me lembro do dia em que encomendei, na 111, a obra completa de Vinícius de Moraes em capa dura e papel bíblia – uma alegria para a vida.
Uma tarde, estava no Chiado, mas outro,
não este que agora temos, intransitável e turístico de tuk-tuk, quando,
inesperadamente, na Bertrand, vejo um livro desconhecido e belo: O Corpo
Iluminado. Poemas de David
Mourão-Ferreira e desenhos de Francisco
Simões. E dos poemas nascidos desses desenhos disse
posteriormente o poeta, «como se
dos traços rompessem, revoadas de sílabas». Um
livro feito sob o signo de Eros, força explosiva da vida, e a celebração dessa
chama original na nudez ora clara ora obscura do corpo da mulher em flor: «De húmido lume tu me incendeias».
Foi assim que conheci a obra
de Francisco Simões. E nunca mais deixei de a querer conhecer.
É pasmoso que em 2023, em Portugal,
não na Síria ou no Irão, se refira ao corpo nu da mulher como «um exemplar mais
ou menos pornográfico». E, no mínimo, vergonhoso, referir-se à remoção da
escultura de Francisco Simões, como o «favor de desentulhar aquele belo largo
de tão lamentável peça e despejá-la onde não possa agredir a memória de
Camilo».
Tanto quanto me é dado ver, a
estátua, a menos que caia em cima de alguém, é menos capaz de agressão do que
os «ilustres» signatários da carta com os quais o Exmo. Sr. Presidente Rui
Moreira concorda, pois considera a obra de Francisco Simões «deselegante».
E já que decidiu pela «remoção do objecto», reafirmo a minha inteira
disponibilidade para o receber em minha casa onde, a despeito do seu coração de
bronze, será mais feliz do que nos «depósitos municipais».
Com os melhores
cumprimentos,
EV
RUI
MOREIRA POLÍTICA ARTE CULTURA CM
PORTO PORTO PAÍS
COMENTÁRIOS (de 29)
Jorge Silva: Cara
Eugénia: Concordo com o que diz, e compreendo o tom em que o faz. No entanto,
penso que contra tais comportamentos de 37 iluminados, o tom de voz tem de ser
tonitruante. Caso contrário o atrevimento de tais educadores do bom gosto não
será exterminado, como deve. Tenho dito. Tim do Á: Estamos no Islão. Volta Salazar! João Floriano: Estimada poeta Eugénia: Eu também me candidatava a receber a estátua do Camilo
e da sua erótica musa, mas há o inconveniente de ser em bronze, liga que
ultimamente está muito na moda e debaixo de olho de alguns saqueadores de
jardins. Um dos meus vizinhos resolveu colocar à porta de casa um belíssimo
exemplar de doberman em bronze que tinha a grande vantagem de não ladrar pela
noite dentro e não alçar a perna e deixar «croquetes» à porta dos vizinhos e
muito menos embirrar com o carteiro. Foi levado para parte incerta não se sabe
por quem. Bem que poderia acontecer o mesmo com o Camilo. Falando agora
seriamente sobre este assunto muito sério, lamenta-se por dois motivos: Um
grupo de moralistas radicais à solta, uma minoria fanática que se arvora
detentora de autoridade para determinar o que esteticamente é válido e
aceitável em termos de bons costumes. Cheira e muito a talibans à portuguesa. O
segundo motivo para lamentações é que Rui Moreira tenha achado pertinência nas
pretensões desta minoria a precisar de tratamento psiquiátrico. O mais grave é
que esta gente ficou mesmerizada com o facto de ter mandado o Camilo e a Ana
Plácido para qualquer arrecadação camarária donde desaparecerá daqui a uns
tempos discretamente para talvez ser encontrada mais tarde num qualquer jardim
privado da Europa. Seguir-se-ão outras obras que desagradem a esta gente tonta
porque o pior foi ceder uma vez. Em breve começarão a embirrar com tudo o que é
estátua de mulher com maminhas à mostra a segurar bandeiras no meio de
soldados, não só pelo seu carácter pornográfico (os soldados adoram apalpar),
como por serem ícones de violência. e quando nada mais restar irão «marrar» com
a estátua do Marquês de Pombal porque incita à crueldade contra os animais.
Estamos mesmo perante uma cruzada de ódio que não se resolve protelando e
concordando como o fez Rui Moreira. E não se compreende como o politicamente
correcto nos levou tão longe a ponto de uma minoria impor os seus pontos de
vista à maioria, que igualmente de forma incompreensível fica calada e
consente. Maria Augusta Martins: Coitados e coitadas destes defensores da moral e bons
costumes. Com a idade a demência e o prostatismo ataca e bate forte. E nós a
aguentar os que elegemos e é bem feito pois cada um tem o que escolhe democraticamente,
diz-se...
Maria Nunes: Já assinei a petição
contra a remoção da estátua de Camilo. Pedro Ferreira: Nem sei bem como classificar este tipo de energúmenos
que julgam ser donos de Portugal, só porque acham que é chique ser woke. Gente
triste e atrasada é o que são. Alberico Lopes > José Luis
Salema: Bom,
já agora junte-lhe a paspalha da tipa que encerrou os colégios particulares mas
manteve e mantém os filhos no Colégio Alemão! É mesmo de partir a moca a rir! João Patrício Vieira: Adoro os guardiões dos bons costumes. Estão deslocados
pois este país não compreende o seu inestimável serviço à Nação. Proponho que
emigrem para os seguintes países: Irão, Rússia, Coreia do Norte, China -
repúblicas de lentes onde o seu contributo será reconhecido e valorizado! A Toupeira > João Alves: E no entanto pronunciou-se! Sérgio: Muito bom! Infelizmente estamos entregues a esta corja pestilenta
e nauseabunda com tiques de superioridade e WOKES que já contaminou os nossos
"elites" e até cangalheiros de estado... Carlos Chaves: Caríssima Eugénia, já tem mais um concorrente: eu
também quero a estátua, não para pôr dentro de casa, mas sim para a pôr na
minha rua para fruição de todos que lá passem, isto é, caso a junta de
freguesia autorize! Perguntem ao sr. Rui Moreira e aos outros “ilustres” 37
mentecaptos, se têm coragem de continuarem a chamar o Dr. Oliveira Salazar de
ditador? Mário Miranda: A inqualificável decisão de Rui Moreira -- a propósito,
não entendo como pode uma decisão destas não ser colegialmente tomada no âmbito
do executivo camarário -- só teve uma virtude: permitir esta brilhante resposta
da Eugénia de Vasconcellos.
Alessandro Garuti: " Ilustres cidadãos " ???. Dr.Rui
"Orban" Moreira, estamos no século XXI , as decisões tomam-se nas
instituições democráticas e não por " Ilustres Cidadãos ".
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