Um beijo às claras, de um representante
másculo do poder e do direito de o exercer. Ofuscou por completo o feito das
jogadoras, coitadas. Isso ainda me parece mais repugnante: que a sociedade –
invejosa e cínica? moralista e amante do escândalo? – tenha substituído o
orgulho pelas suas mulheres vitoriosas de uma modalidade usualmente masculina, querendo rebaixar machisticamente esse feito, chamando a atenção, com aparente pudor e virtude,
para esse fulano que se superiorizou com o seu poder de macho, embora sórdido. Ao
querer castigar o macho, deita achas virtuosas – machistas? - na fogueira,
apagando o feito feminino de que não mais se fala, no estardalhaço da crítica
punitiva ao feito masculino, por justa que seja.
Um texto recebido
por email:
Uma explanação valiosa.
7 mulheres mortas por hora!!!!
7 mulheres mortas por hora!!!
Ouviste bem? Sentiste?
POSTAL DO DIA
As mulheres que defendem Rubiales e o
seu beijo de orangotango
1.
O mundo tem
discutido o beijo do presidente da Federação de Futebol de Espanha a uma
jogadora da selecção que acabara de se sagrar campeã.
Aconteceu há
muitos dias e a minha ideia inicial era a de não escrever sobre o tema. Por ser
demasiado óbvio, por muita gente o ter feito, por sentir que não iria dizer
nada de novo.
Escrevo hoje
essencialmente pela surpresa de muitas opiniões que tenho lido e ouvido…
Opiniões que
desculpabilizam o beijo daquele homem àquela mulher:
- Por não ter importância, afinal foi apenas um beijo
numa altura de justificada euforia.
- Por existirem inúmeros exemplos de beijos que não
provocaram qualquer polémica.
- Que o mundo está louco.
- Que a jogadora só reagiu a posteriori e que não está
inocente.
2.
Escrevo
então.
Por me ter espantado o modo como se colocam as coisas. Como se o
importante, o verdadeiramente decisivo, fosse analisar o caso em concreto, sem
mais nada.
Isso não faz
qualquer sentido.
Mesmo que a jogadora espanhola seja hipócrita, mentirosa e um mau-caráter, não faz sentido.
Mesmo que Rubiales estivesse eufórico e genuinamente feliz, mesmo que a
tenha beijado por um acesso de uma felicidade transbordante, não faz sentido.
Mesmo que tenham existido 50 mil beijos anteriores, não faz sentido.
Mesmo que não tenha tido qualquer importância, mesmo que as próprias
jogadoras se tenham rido uns minutos depois, mesmo que tenham reagido à
posteriori, não faz sentido.
No limite, mesmo que Rubiales não seja um “machonito” forrado a
testosterona e mesmo que a sua madrezita em greve de fome tenha razão, não faz sentido.
3.
O homem que
beijou era presidente da Federação.
Beijou sem consentimento – e mesmo que tivesse sido
consentido o beijo foi público e às vistas do mundo. Ele estava numa posição de
poder e não podia abusar dessa posição de poder.
Não o podia fazer por uma questão de bom-senso,
decência e respeito pelo país, instituição e jogadoras que representava.
O tema não é,
nem nunca foi, se Rubiales merece ser preso ou se o beijo em si é relevante em
comparação com tantas coisas mais relevantes.
O tema é que
as mulheres continuam a ser abusadas sexualmente pelos homens - em Espanha,
morreram no ano passado largas centenas de mulheres por violência doméstica.
E no mundo,
segundo um estudo das Nações Unidas, sete mulheres e raparigas foram mortas por
hora durante o ano de 2021. Sete mulheres por hora. 45 mil mulheres mortas
por abuso de poder de homens despeitados que se habituaram a roubar beijos
porque podiam porque eram fisicamente mais fortes.
No mundo, as mulheres
continuam a ser mais mal pagas do que os homens. Continuam a ser ameaçadas
todos os dias, a ser violadas em todas as esquinas e a pagar um preço por serem
mulheres.
4.
Tu sabes.
Sendo homem ou
sendo mulher, tu sabes.
Se tens filhas,
sabes.
E se fores
rapariga sabes que cada vez que vais à rua tens de aguentar olhares, línguas de
fora, aproximações nos transportes públicos, perseguições, convites, mensagens.
Ser mulher não é um passeio no
parque.
E muito se tem
melhorado.
Muito mais do
que há uns anos se poderia prever e o futebol feminino tem sido um bom
contributo.
Espanta-me que
nos argumentos se diga que foi um momento de vitória e euforia. Um argumento
terrível por ser precisamente o contrário. Um presidente da Federação de
Espanha deveria aproveitar a ocasião para glorificar as mulheres e a sua
independência e liberdade, não para sacar um beijo e agarrar os tomates numa
pose que replica as cenas de domínio dos orangotangos nas jaulas.
Espanta-me os argumentos.
E espanta-me ainda mais ver mulheres a defender
Rubiales.
Não faz sentido.
Porque elas sabem o que é ser mulher.
Sabem o que é ser prejudicado por sê-lo.
COMENTÁRIOS
Alex Jesus: por mais impressionante que pareça, há mulheres a
defender o rubiales... tempos estranhos!
Daniela Martins: Eu acho gravíssimo! E a ironia de ser justamente num
campeonato histórico! Uma grande conquista feminina, e vem esse sujeito lembrar
que no mundo ainda são os homens que mandam e o direito das mulheres é assunto
"menor", como disse o Presidente da República ontem.
Sónia Campos: Diz
tudo este texto!
Rosa Xisto: E custa-me que a primeira vez que um mundial de futebol feminino tem
visibilidade no final o assunto acabe por ser um homem.
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