Que um exemplo, como o de Eugénia de Vasconcellos,
proliferasse entre a mocidade de hoje, esta cada vez mais enfronhada nos
prazeres mediáticos e de comunicabilidade, que a palma da mão ferozmente
expande, através de uma caixinha magicamente alienadora, impeditiva de gradual
abertura para o mundo mágico dos livros, como foi o seu…
Os meus maridos
As minhas colegas tinham posters,
Duran Duran e outras bandas. Eram fãs. Eu não tinha posters. Tinha maridos.
Entre os mortos era uma poligamia às claras, encabeçada, sempre e até hoje, por
Eça.
EUGÉNIA DE
VASCONCELLOS Poeta, ensaísta, escritora
OBSERVADOR, 29
set. 2023, 00:1510
Não conheço um único poeta vivo – bem,
não exactamente. Dos meus poetas mortos não conheci um que fosse. Nem Ramos
Rosa, nem Manuel António Pina, nem Ruy Belo. Já Herberto Helder nunca o quis
conhecer. Gostava demasiado da poesia dele para contemplar a possibilidade de a
beliscar com a realidade. Dos romancistas, só conversei com Agustina num longo
sonho de fazer inveja ao Matrix depois do comprimido tomado. Nem o cadeirão de
orelhas assente em efémero branco me faltou ao sonho – tinha dezanove anos e
foi tão real aquela ficção que até hoje a tomo por verdadeira e juro por ela.
Também sonhei um poema com uma enorme pintura de Paula Rego, e escrevi-o,
detalhei bem aquela bonecada toda, acho que lhe chamei O Guardador de
Patos, e foi um momento de absoluta lucidez, horrível também, como só a
verdade sabe ser.
No início da minha adolescência, a
Biblioteca Municipal e a da Gulbenkian funcionavam num claustro que também
cumpria funções de Museu. Ia no Verão. À torreira do calor quando o sol a pique
lambe até o ângulo recto das casas e pelos passeios não há a sombra de uma
sombra. Nem todos os livros se podiam levar para casa e uma pessoa tinha de ler
de empreitada e copiar os poemas ainda com a letra redondinha da infância que
não se despega nunca, nem quando a caligrafia se faz de electrocardiograma e já
somos crescidos. Por mim, comprava aqueles livros e mais sei lá quantos, um
exemplar de cada, de tudo quanto houvesse sobre a terra, para fazer uma
habitável biblioteca infinita onde casa e rua e praia fossem o mesmo caminho de
estantes, percorridas a pé ou de bicicleta. Não sabia, então, que Eugénio de
Andrade estava no Porto. Mas sabia que os meus catorze anos queriam vê-lo de
carne e osso como os meus quinze queriam conversar com David Mourão-Ferreira
que descobri por acidente num livro de António Ferro, e os meus dezoito todos
os dias juravam a si mesmos, os mentirosos, que amanhã, sem falta, iriam ter
com Yvette Centeno, de Musaeum Hermeticum e cinco mil dúvidas debaixo do braço.
E havia a questão dos maridos. As minhas
colegas tinham posters, Duran Duran e outras bandas, conheciam os seus
integrantes pelo nome próprio. Eram fãs. Eu não tinha posters. Tinha maridos.
Entre os mortos era uma poligamia às claras encabeçada, sempre e até hoje, por
Eça. O pior foi o dia em que vi um dos meus maridos na Feira do Livro, já em
Lisboa, vivo, a dar à caneta. Uma roda de gente, mais que na praça, ao
fim-de-semana. E eu, surpreendida pelo marido levantado dos mortos, de coração
na boca, fugi logo, não sei se do susto de um putativo fantasma dar autógrafos,
se por ver exposta a poligamia, ou do medo de lhe falar e ficar com cara de
dois de paus.
Só queria aprender a escrever com os
meus maridos… Fosse por esforço, osmose ou milagre, tanto fazia.
Não conheço poetas nem escritores, nem
críticos literários, nem pintores. Quero dizer, conheço. Até o avesso lhes
conheço, virei-os e revirei-os letra a letra. Gosto de me lembrar deles. Gosto
de lhes agradecer.
COMENTÁRIOS:
Rosário Santos : " Meu
rico Eça!" (EV) HUGO BELCHIOR: Muito bom. Carlos
Chaves: O sol deve ter
a língua toda cortada nos ângulos rectos das casas de Lisboa! Obrigado Eugénia,
excelente texto dos poucos que ainda vão sobrevivendo no Observador Coxinho: Com essa poligamia toda, Eugénia, muita gente se terá
zangado consigo! Mas gabo-lhe a poligamia porque é evidente que o
resultado valeu o "sacrifício".
João Floriano: Hoje
não gostei. Este tipo de poligamia resulta muito bem no Jorge Amado e na D.
Flor e os seus dois maridos, Vadinho o pândego mulherengo e divertido, que
mesmo em forma de fantasma a leva ao céu de tanto prazer, e Teodoro, o farmacêutico
monótono, chato mas que lhe dá segurança. Aqui no caso da poeta Eugénia não
resulta. Se eu nunca acreditei nos delírios místicos de Santa Teresa de Ávila ,
possuidora isso sim de uma imaginação notável, menos ainda acredito em delírios
poéticos. Sofia Ribeiro: Querida Eugénia, maravilhoso este texto que me entrou
pela manhã. Inteligente, terno, poético. É generoso da sua parte oferecer-nos
estes textos. Uma pérola. Infelizmente, receio que para porcos. Alexandre Barreira: Pois. Cara Eugénia. Bela "prosa". Passe
bem.....! Maria
Augusta Martins: Um lindo texto para contrastar com outros! A boa erva
produz destes arroubos, parabéns. Filipe Paes de Vasconcellos: Mas
que bonito texto. Obrigado por me encantar logo pela manhã. Filipe Pereira: Lindo! Obrigado!
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