Retomo o tema anterior, por considerar o
comentário de José Paulo C.
Castro, sobretudo, uma excelente análise do “escândalo”
erguido aquando do malsinado beijo eloquente.
O beijo da morte
É preocupante quando tudo, até mesmo
um beijo pequeno-burguês, se torna numa náusea pública levada a extremos,
precisando para ser avaliado de empurrarmos o gesto para a censura política e
penal.
RODRIGO ADÃO DA FONSECA, Colunista
OBSERVADOR, 05
set. 2023, 00:1721
“A kiss may ruin a human life”
Oscar Wilde, A Woman of No
Importance (1893)
Num
tempo em que se dava valor às convenções, Lord Illingworth, depois de se
sentar, dirigiu-se à senhora Arbuthnot para lhe desabafar: “A noite passada foi
extremamente desagradável. Aquela rapariga, tola, feita puritana, a fazer todo
um escândalo só porque eu queria beijá-la? Que mal pode existir num beijo?”.
Arbuthnot, virando-se, responde-lhe: “Um beijo pode arruinar uma vida, George
Harford. Eu sei disso. Sei-o demasiado bem”.
Quem
não sabia disso, talvez por não ser dado às literaturas, é Luis Rubiales, o
polémico presidente da Federação espanhola de futebol, em fase de destituição,
que num momento de euforia, após a vitória espectacular da equipa feminina
espanhola no campeonato do mundo de futebol, decidiu presentear uma das suas
jogadoras, Jenni Hermoso, com um
lambuzado “chocho”.
Luis
Rubiales tem-se defendido, dizendo que nada fez de mal, que tudo não passou de
um “consentido beijo”. E, não há como negar, desde tempos imemoriais que o
beijo tem sido um símbolo profundamente entrelaçado com a experiência humana. Nas
páginas da literatura, nos écrãs de cinema, nos momentos mais íntimos ou nas
ocasiões formais, o beijo tem sido usado para expressar uma miríade de emoções.
Há
beijos que contam uma história, representam uma emoção e reflectem as nuances
do humano. Um beijo pode ser também um sinal casual de cumprimento, uma
expressão de amor ou uma demonstração de respeito – ou simplesmente uma
cretinice de um homem rasca de meia-idade, deslumbrado consigo próprio.
Tivesse
tido a sorte, Luis Rubiales, qual Vronsky, de sentir nos lábios de Hermoso a
paixão que ardia no coração de Anna Karenina, e a sua transgressão, ainda que
trágica, seria recordada como uma forma superior de beleza. Tão pouco se poderá dizer que Jenni Hermoso, não
obstante estivesse seguramente esgotada, tenha visto no beijo de Rubiales o
mesmo elixir que levou Julieta a dizer ao seu Romeu, “com o teu beijo ficarei
viva novamente”. E não se pense que sou dos que acha que apenas beijos
românticos de pessoas apaixonadas, no auge da beleza, podem ficar gravados na
memória e na imortalidade. É bem verdade que não é fácil ver beleza e
magnetismo num beijo entre um embrutecido Rubiales e uma pobre jogadora acabada
de sair de um jogo de futebol, mas se o beijo longo, cúmplice e eufórico
de Mikhail Gorbachev e Erich Honecker ficou para os anais da História, porque
não estaremos, também agora, perante um momento de viragem, em que até o mais
foleiro dos homens se arrisca a ter num beijo público o gesto que o fará ser
recordado até à posteridade?
O
que é, então, um beijo? É um gesto, uma promessa, uma transgressão, um símbolo
de amor, desejo, saudade, respeito, ou todos os acima mencionados? Depois de
apurada reflexão, sou tentado a dizer-vos, é tudo isso. Embora no caso de
Rubiales, o seu beijo não caiba em nenhuma das categorias referidas, por ser,
apenas, o acto deslavado de um bruto.
Dito
isto, não reduzo o significado do beijo de Rubiales, que merece ser recordado e
dissecado, não pelo beijo em si, mas pelo que a sua mediatização trouxe para a
discussão pública. O gesto irreflectido de Rubiales revelou, não apenas a
podridão que existe hoje nas lideranças, mas também um profundo dilema do nosso
tempo: a incapacidade que temos hoje de lidar com a ambivalência nas discussões
públicas. A polarização da discussão revelou um mal, a meu ver, ainda
maior que assola o discurso público: ou se é radicalmente a favor, ou
radicalmente contra. Estar a favor, significa defender que o gesto de
Rubiales não merece censura – para não
ser confundido com esquerdistas ou fanáticas feministas; estar contra,
implica defender só e apenas a criminalização do acto, e todas as consequências
mais nefastas para o infeliz careca de meia-idade cuja mãe, em vez de lhe
dar um puxão de orelhas, se enfiou em greve de fome dentro de uma Igreja.
Cedendo publicamente a qualquer chantagem das massas iradas e tresloucadas.
O
beijo de Rubiales, independentemente das intenções ou do eventual assentimento
ou desvalorização por parte da pobre beijada, revelou uma falha no senso de
decoro que um cargo tão elevado quanto o de Rubiales exige. A hierarquia,
muitas vezes menosprezada na nossa era de aparente igualdade, ainda detém um
valor inerente. Não se trata de criar barreiras, mas de manter um senso de
respeito mútuo e limites claros, que devem persistir em ambientes públicos, mas
também em privado. O gesto de Rubiales é censurável, não apenas pela acção
em si, mas pelo que ele representa – e por todas as atitudes que assumiu após o
seu gesto irreflectido. Rubiales era o Presidente da Federação, e Jenni uma
jogadora. Um beijo à queima-roupa revelou uma banalização do seu papel
institucional. O que o levou a pensar que tal acção seria algum dia
aceitável? Perdemos já toda a noção do sentido de urbanidade e
institucionalismo? A elegância e o respeito, não só no modo
de estar, de vestir, mas também no modo de interagir, parecem ter sido
esquecidos.
É
preocupante quando tudo, até mesmo um beijo pequeno-burguês que mistura suor e
cuspo se torna numa náusea pública levada a extremos, precisando para ser
avaliado de empurrarmos o gesto para a censura política e penal. Numa era em
que a polarização toma conta de todos os debates, perdemos as referências
básicas, os códigos de conduta que, embora subtis, são essenciais para a ordenação
social. Estes códigos não são simples regras, mas reflectem o
respeito mútuo e o reconhecimento das responsabilidades que vêm com posições de
autoridade, e as regras de urbanidade e boas maneiras que deveriam – sempre –
subsistir nas relações sociais.
Não
precisamos, nos dias de hoje, de discussões acesas sobre identidades, onde o
debate público se move, apenas, à força do ressentimento. Precisamos,
sim, de encontrar um equilíbrio, um espaço público onde possamos debater sem
radicalismos, onde o respeito e a dignidade não sejam meras palavras, mas
valores vividos e praticados. Como
Durkheim salientou, a coesão social depende muito mais de normas e valores
partilhados que definem as expectativas e comportamentos dentro de uma
comunidade, do que de imposições legais artificiais ou de postulações
políticas. Um mundo onde tudo se torna politizado, que esquece que não são
apenas as leis explícitas que nos regem, mas também os códigos tácitos de
conduta e respeito mútuo, fica entregue à arbitrariedade e nas mãos dos mais
brutos e fanáticos.
Se
continuarmos a negligenciar as normas de boa ordenação social, desprezando a
elegância e os bons modos como exigência de actuação no espaço público,
continuaremos a cavar o fosso rumo à mais completa alienação e a desconexão,
devendo esperar conflitos mais acentuados por tudo aquilo que agite o
ressentimento das massas. Tal como Hannah Arendt observou, o espaço público
requer um certo nível de decoro para assegurar o respeito mútuo e a dignidade.
Para que o espaço público seja saudável e frequentável, é necessário que haja
confiança e respeito mútuo entre os participantes. As normas, os rituais
e um certo grau de formalidade ajudam a estabelecer e a manter essa confiança.
Sinalizando os comportamentos, até para pessoas boçais como Rubiales (ou,
diga-se em abono da verdade, dos seus apoiantes e também de muitos dos seus
críticos). Sem tais normas e sem reconhecimento mútuo, o espaço público acaba
necessariamente corroído, levando o desgaste ao conflito boçal, à desintegração
do tecido social e à erosão da própria política.
Precisamos
urgentemente de reavivar a nossa compreensão e apreço pelo papel do decoro, da
urbanidade e do institucionalismo na preservação da ordem social e do bem-estar
colectivo – isto se queremos continuar, no Ocidente, a poder viver em espaços
públicos marcados pela mínima decência, onde
um Mundial de futebol feminino conquista o espaço público pelas virtudes que só
o desporto nos consegue cativar.
Pode
ser que, assim, possamos ter de novo um mundo onde um beijo volte a ser um
momento de celebração da beleza. É que há muito tempo que um beijo partilhado
por todos não se faz derreter como um pedaço de açúcar num copo de água, nem
faz connosco o que o que a primavera faz com as cerejeiras. Aguardo, assim, pelo
tempo em que caiam os ressentimentos, e tudo fique bem novamente.
COMPORTAMENTO SOCIEDADE FUTEBOL DESPORTO
COMENTÁRIOS (de 25):
José Paulo C Castro: A coisa mais
válida deste artigo é fazer uma associação directa entre o puritanismo
vitoriano (via Óscar Wilde) e o novo feminismo woke, ambos focados em reprimir
comportamentos não normativos (ou politicamente incorrectos) para manterem o
seu controlo sobre o tecido social. A partir daí, o autor espalhou-se ao
comprido ao ceder a essa dupla pressão puritana, sacrificando a liberdade e
responsabilidades individuais ao altar das normas definidas para um espaço
público cada vez menos livre. O cerne da questão devia ser do âmbito interno
da federação espanhola e FIFA (por causa do comportamento institucional) e nunca do governo intromissor. A questão criminal
devia ser do âmbito individual da jogadora e de Rubiales, via MP, e nunca dos mil actores laterais que classificaram e
interferiram nos media para condicionar qualquer julgamento, muitas vezes com
óbvios interesses paralelos. Se vamos definir o fundo de qualquer
questão pública sob o preâmbulo de as normas e comportamentos estarem
legitimados pelo decoro exigível, já não estamos a discutir a questão mas quem é adequado para intervir, num condicionamento total da
liberdade nesse mesmo espaço e das pessoas que lhe podem aceder. E isto não
tem nada a ver com a legítima escolha posterior de ouvir ou não os
intervenientes, valorizar ou não os seus pontos, votar ou apoiar alguns e
rechaçar outros. Apenas com a inexistência de condicionantes.
Maria Augusta Martins: Este assunto já fede e é o corolário duma sociedade de inúteis que
não precisam de ganhar o pão com o suor do rosto, mas sim explorando a
coscuvilhice dos outros.
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