quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Já agora


Retomo o tema anterior, por considerar o comentário de José Paulo C. Castro, sobretudo, uma excelente análise do “escândalo” erguido aquando do malsinado beijo eloquente.

O beijo da morte

É preocupante quando tudo, até mesmo um beijo pequeno-burguês, se torna numa náusea pública levada a extremos, precisando para ser avaliado de empurrarmos o gesto para a censura política e penal.

RODRIGO ADÃO DA FONSECA, Colunista

OBSERVADOR, 05 set. 2023, 00:1721

A kiss may ruin a human lifeOscar Wilde, A Woman of No Importance (1893)

Num tempo em que se dava valor às convenções, Lord Illingworth, depois de se sentar, dirigiu-se à senhora Arbuthnot para lhe desabafar: “A noite passada foi extremamente desagradável. Aquela rapariga, tola, feita puritana, a fazer todo um escândalo só porque eu queria beijá-la? Que mal pode existir num beijo?”. Arbuthnot, virando-se, responde-lhe: “Um beijo pode arruinar uma vida, George Harford. Eu sei disso. Sei-o demasiado bem”.

Quem não sabia disso, talvez por não ser dado às literaturas, é Luis Rubiales, o polémico presidente da Federação espanhola de futebol, em fase de destituição, que num momento de euforia, após a vitória espectacular da equipa feminina espanhola no campeonato do mundo de futebol, decidiu presentear uma das suas jogadoras, Jenni Hermoso, com um lambuzado “chocho”.

Luis Rubiales tem-se defendido, dizendo que nada fez de mal, que tudo não passou de um “consentido beijo”. E, não há como negar, desde tempos imemoriais que o beijo tem sido um símbolo profundamente entrelaçado com a experiência humana. Nas páginas da literatura, nos écrãs de cinema, nos momentos mais íntimos ou nas ocasiões formais, o beijo tem sido usado para expressar uma miríade de emoções.

Há beijos que contam uma história, representam uma emoção e reflectem as nuances do humano. Um beijo pode ser também um sinal casual de cumprimento, uma expressão de amor ou uma demonstração de respeito – ou simplesmente uma cretinice de um homem rasca de meia-idade, deslumbrado consigo próprio.

Tivesse tido a sorte, Luis Rubiales, qual Vronsky, de sentir nos lábios de Hermoso a paixão que ardia no coração de Anna Karenina, e a sua transgressão, ainda que trágica, seria recordada como uma forma superior de beleza. Tão pouco se poderá dizer que Jenni Hermoso, não obstante estivesse seguramente esgotada, tenha visto no beijo de Rubiales o mesmo elixir que levou Julieta a dizer ao seu Romeu, “com o teu beijo ficarei viva novamente”. E não se pense que sou dos que acha que apenas beijos românticos de pessoas apaixonadas, no auge da beleza, podem ficar gravados na memória e na imortalidade. É bem verdade que não é fácil ver beleza e magnetismo num beijo entre um embrutecido Rubiales e uma pobre jogadora acabada de sair de um jogo de futebol, mas se o beijo longo, cúmplice e eufórico de Mikhail Gorbachev e Erich Honecker ficou para os anais da História, porque não estaremos, também agora, perante um momento de viragem, em que até o mais foleiro dos homens se arrisca a ter num beijo público o gesto que o fará ser recordado até à posteridade?

O que é, então, um beijo? É um gesto, uma promessa, uma transgressão, um símbolo de amor, desejo, saudade, respeito, ou todos os acima mencionados? Depois de apurada reflexão, sou tentado a dizer-vos, é tudo isso. Embora no caso de Rubiales, o seu beijo não caiba em nenhuma das categorias referidas, por ser, apenas, o acto deslavado de um bruto.

Dito isto, não reduzo o significado do beijo de Rubiales, que merece ser recordado e dissecado, não pelo beijo em si, mas pelo que a sua mediatização trouxe para a discussão pública. O gesto irreflectido de Rubiales revelou, não apenas a podridão que existe hoje nas lideranças, mas também um profundo dilema do nosso tempo: a incapacidade que temos hoje de lidar com a ambivalência nas discussões públicas. A polarização da discussão revelou um mal, a meu ver, ainda maior que assola o discurso público: ou se é radicalmente a favor, ou radicalmente contra. Estar a favor, significa defender que o gesto de Rubiales não merece censura – para não ser confundido com esquerdistas ou fanáticas feministas; estar contra, implica defender só e apenas a criminalização do acto, e todas as consequências mais nefastas para o infeliz careca de meia-idade cuja mãe, em vez de lhe dar um puxão de orelhas, se enfiou em greve de fome dentro de uma Igreja. Cedendo publicamente a qualquer chantagem das massas iradas e tresloucadas.

O beijo de Rubiales, independentemente das intenções ou do eventual assentimento ou desvalorização por parte da pobre beijada, revelou uma falha no senso de decoro que um cargo tão elevado quanto o de Rubiales exige. A hierarquia, muitas vezes menosprezada na nossa era de aparente igualdade, ainda detém um valor inerente. Não se trata de criar barreiras, mas de manter um senso de respeito mútuo e limites claros, que devem persistir em ambientes públicos, mas também em privado. O gesto de Rubiales é censurável, não apenas pela acção em si, mas pelo que ele representa – e por todas as atitudes que assumiu após o seu gesto irreflectido. Rubiales era o Presidente da Federação, e Jenni uma jogadora. Um beijo à queima-roupa revelou uma banalização do seu papel institucional. O que o levou a pensar que tal acção seria algum dia aceitável? Perdemos já toda a noção do sentido de urbanidade e institucionalismo? A elegância e o respeito, não só no modo de estar, de vestir, mas também no modo de interagir, parecem ter sido esquecidos.

É preocupante quando tudo, até mesmo um beijo pequeno-burguês que mistura suor e cuspo se torna numa náusea pública levada a extremos, precisando para ser avaliado de empurrarmos o gesto para a censura política e penal. Numa era em que a polarização toma conta de todos os debates, perdemos as referências básicas, os códigos de conduta que, embora subtis, são essenciais para a ordenação social. Estes códigos não são simples regras, mas reflectem o respeito mútuo e o reconhecimento das responsabilidades que vêm com posições de autoridade, e as regras de urbanidade e boas maneiras que deveriam – sempre – subsistir nas relações sociais.

Não precisamos, nos dias de hoje, de discussões acesas sobre identidades, onde o debate público se move, apenas, à força do ressentimento. Precisamos, sim, de encontrar um equilíbrio, um espaço público onde possamos debater sem radicalismos, onde o respeito e a dignidade não sejam meras palavras, mas valores vividos e praticados. Como Durkheim salientou, a coesão social depende muito mais de normas e valores partilhados que definem as expectativas e comportamentos dentro de uma comunidade, do que de imposições legais artificiais ou de postulações políticas. Um mundo onde tudo se torna politizado, que esquece que não são apenas as leis explícitas que nos regem, mas também os códigos tácitos de conduta e respeito mútuo, fica entregue à arbitrariedade e nas mãos dos mais brutos e fanáticos.

Se continuarmos a negligenciar as normas de boa ordenação social, desprezando a elegância e os bons modos como exigência de actuação no espaço público, continuaremos a cavar o fosso rumo à mais completa alienação e a desconexão, devendo esperar conflitos mais acentuados por tudo aquilo que agite o ressentimento das massas. Tal como Hannah Arendt observou, o espaço público requer um certo nível de decoro para assegurar o respeito mútuo e a dignidade. Para que o espaço público seja saudável e frequentável, é necessário que haja confiança e respeito mútuo entre os participantes. As normas, os rituais e um certo grau de formalidade ajudam a estabelecer e a manter essa confiança. Sinalizando os comportamentos, até para pessoas boçais como Rubiales (ou, diga-se em abono da verdade, dos seus apoiantes e também de muitos dos seus críticos). Sem tais normas e sem reconhecimento mútuo, o espaço público acaba necessariamente corroído, levando o desgaste ao conflito boçal, à desintegração do tecido social e à erosão da própria política.

Precisamos urgentemente de reavivar a nossa compreensão e apreço pelo papel do decoro, da urbanidade e do institucionalismo na preservação da ordem social e do bem-estar colectivo – isto se queremos continuar, no Ocidente, a poder viver em espaços públicos marcados pela mínima decência, onde um Mundial de futebol feminino conquista o espaço público pelas virtudes que só o desporto nos consegue cativar.

Pode ser que, assim, possamos ter de novo um mundo onde um beijo volte a ser um momento de celebração da beleza. É que há muito tempo que um beijo partilhado por todos não se faz derreter como um pedaço de açúcar num copo de água, nem faz connosco o que o que a primavera faz com as cerejeiras. Aguardo, assim, pelo tempo em que caiam os ressentimentos, e tudo fique bem novamente.

COMPORTAMENTO    SOCIEDADE    FUTEBOL    DESPORTO

COMENTÁRIOS (de 25):

José Paulo C Castro: A coisa mais válida deste artigo é fazer uma associação directa entre o puritanismo vitoriano (via Óscar Wilde) e o novo feminismo woke, ambos focados em reprimir comportamentos não normativos (ou politicamente incorrectos) para manterem o seu controlo sobre o tecido social. A partir daí, o autor espalhou-se ao comprido ao ceder a essa dupla pressão puritana, sacrificando a liberdade e responsabilidades individuais ao altar das normas definidas para um espaço público cada vez menos livre. O cerne da questão devia ser do âmbito interno da federação espanhola e FIFA (por causa do comportamento institucional) e nunca do governo intromissor. A questão criminal devia ser do âmbito individual da jogadora e de Rubiales, via MP, e nunca dos mil actores laterais que classificaram e interferiram nos media para condicionar qualquer julgamento, muitas vezes com óbvios interesses paralelos. Se vamos definir o fundo de qualquer questão pública sob o preâmbulo de as normas e comportamentos estarem legitimados pelo decoro exigível, já não estamos a discutir a questão mas quem é adequado para intervir, num condicionamento total da liberdade nesse mesmo espaço e das pessoas que lhe podem aceder. E isto não tem nada a ver com a legítima escolha posterior de ouvir ou não os intervenientes, valorizar ou não os seus pontos, votar ou apoiar alguns e rechaçar outros. Apenas com a inexistência de condicionantes.

Maria Augusta Martins: Este assunto já fede e é  o corolário duma sociedade de inúteis que não precisam de ganhar o pão com o suor do rosto, mas sim explorando a coscuvilhice dos outros.

 

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