domingo, 17 de setembro de 2023

Indispensável

 

JAIME NOGUEIRA PINTO, nos seus competentes alertas históricos sobre o status internacional e um porvir aparentemente condenado, se não for invertido. Muitos respondem à chamada, comentando com saber. Mas o mundo vai crescendo em importâncias esmagadoras, e este ocidente euro-americano nortenho pelos vistos está-se borrifando, para os BRICS em progressão numérica, numa permissividade que pretende ser democraticamente amável e acolhedora, gradualmente a ser ocupado pelos seus aniquiladores futuros, embora aparentemente, ainda em situação de inferioridade, apesar dos muitos danos que vão cometendo os primitivos da invasão.

O fim da ordem liberal internacional?

Não podemos confundir os esforços para melhorar este mundo, comandados pela ética e pelo humanismo, cristão ou agnóstico, com a hipócrita ou estúpida ignorância da realidade.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 16 set. 2023, 00:2240

Os valores e as regras que regulam a repartição do espaço do mundo entre os Estados e o modo como estes se relacionam são postas em causa sempre que há um conflito geral em que estão envolvidas as grandes potências. Como em qualquer conflito, são geralmente os vencedores que tratam da nova repartição territorial, dispondo dos territórios dos vencidos e estabelecendo regras sobre os valores e princípios que devem passar a regular as relações internacionais. Às vezes vão mais longe e tratam mesmo de universalizar os seus princípios ideológicos e as suas instituições, impondo-os aos vencidos e até aos neutros.

Com a afirmação de novas ordens internacionais já se implantaram organismos multilaterais, teoricamente independentes e igualitários, mas com mecanismos sancionatórios ditados pelos vencedores que punem os prevaricadores. Todos sempre apresentados como grandes conquistas da Civilização e da Humanidade.

Num mundo que começou, modernamente, por ser eurocêntrico e depois se alargou a “todo o globo”, as grandes etapas das ordens mundiais foram a guerra dos Trinta Anos (1618-1648), regulada pelos Tratados da Vestfália de 1648-1649; as guerras da Revolução e do Império (1792-1815), reguladas pelos Tratados de Viena de 1814-1815; a Grande Guerra de 1914-1918, regulada pelo Tratado de Versalhes de 1919; a Segunda Guerra Mundial, que não foi regulada por tratado, já que quer a Alemanha quer o Japão foram obrigados à rendição incondicional (com as conferências entre os vencedores em Ialta e Potsdam e a Carta das Nações Unidas a regularem a repartição territorial e a nova ordem do mundo); e finalmente, a Guerra Fria (1948-1991), que também acabou por não ter tratado de paz firmado, pois a União Soviética implodiu, com os vencedores norte-americanos e, por inerência e conveniência também os europeus, a instituírem a ordem liberal internacional.

Só que para a vitória na Guerra Fria tinham contribuído decisivamente muitos Estados que não eram liberais nem democráticos – como a monarquia saudita, que com a escalada das exportações de petróleo foi decisiva para atirar a URSS de Gorbatchev, empenhada em melhorar a economia, para um buraco negro; e a China comunista que, desde a abertura Nixon-Kissinger a Mao, tinha Moscovo por inimigo principal.

Destinada ao fracasso

A História, os Estados e os homens têm uma realidade e uma natureza que tem pouco que ver com as narrativas globalmente correctas e o optimismo antropológico hoje instalados como discurso dominante.

Na revista International Security (Primavera de 2019), em “Bound to Fail: the Rise and Fall of the Liberal International Order”, John Mearsheimmer, professor de Ciência Política na Universidade de Chicago, defensor do realismo crítico e autor do famoso The Tragedy of Great Power Politics, explicou porque é que, já então, dava por ultrapassada a ordem internacional liberal.

Para ele, a ordem internacional liberal, em vigor desde o fim da União Soviética (1989-1991) teria curta vida porque “os modernos Estados nacionais” privilegiavam “a soberania e a identidade nacional” que os defendiam das intromissões das instituições multilaterais e das migrações indesejadas. Para esta rejeição também contribuíam razões económicas, na medida em que as classes trabalhadoras e as classes médias dos países mais desenvolvidos passavam a ser vítimas do mercado global, inerente à ordem liberal.

Além disso, a imposição de princípios políticos e de regimes como a democracia liberal, obrigava a uma unipolaridade directora. E a unipolaridade directora existente logo depois do fim da Guerra Fria era americana.

Ora, entretanto, nos vinte e cinco ou trinta anos que se seguiram, a China cresceu e a Índia também. E se a União Soviética desaparecia, a Rússia, embora a braços com um sério problema demográfico, continuava a ser um forte poder militar, com uma base energética e alimentar que lhe permitia, para mal do vizinho ucraniano, fazer o que fez e faz. Estados como a Turquia, o Brasil ou a Arábia Saudita, têm políticas de interesse nacional com uma plasticidade sofisticada e pouco ou nada ideológica. E há regiões, como o Médio Oriente e a África Subsahariana, onde, por uma série de razões, a importação da democracia não interessa às elites no poder e as populações privilegiam o desenvolvimento e a estabilidade sobre as liberdades políticas, que veem como um luxo que os desenvolvidos lhes querem impor para melhor as dominar.

O texto de Mearsheimmer é de 2019, mas tudo o que aconteceu desde então veio confirmar a sua análise. A Covid-19 causou uma grande perturbação na comunicabilidade de pessoas e bens e fez regredir o comércio mundial. A invasão da Ucrânia pela Rússia veio mais uma vez confirmar a importância dos nacionalismos: o dos russos, ameaçados por uma penetração ocidental no que consideram o seu Heartland securitário na Eurásia; e o dos ucranianos, afirmado e consolidado na resistência à invasão russa.

Interregno multipolar

Outros fenómenos recentes reforçam a ideia de que caminhamos para uma ordem multipolar, como a nova etapa de crescimento dos BRIC. Dos seis novos membros que agora se juntam aos fundadores (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), um é sul-americano (a Argentina), três médio orientais (a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Irão) e dois africanos (o Egipto e a Etiópia). Quando se olha para a dispersão continental, para a disparidade ideológica e de regime e para o poderio demográfico e económico de todos estes Estados, percebe-se que os BRIC, não hostilizando directamente a ordem liberal ainda vigente (o Brasil, a Argentina, e mesmo a Arábia Saudita, o Egipto e os Emirados, dada a relação com Washington, não se atreveriam a tal), estão claramente noutro comprimento de onda.

Entretanto, a Índia, ao assumir-se como cabeça do “Sul Global” sob o governo de um nacionalista realista como Narendra Modi e tendo exercido um papel chave de ponte mediadora na reunião do G-20, tem vindo a afirmar-se neste interregno como um terceiro eixo de poder.

É como se, neste caminho para uma nova ordem – ainda não estamos numa ordem delineada, como a de Viena ou de Ialta –, houvesse um polo em Washington, outro em Pequim e um terceiro em Nova Deli, um bloco neutralista à moda de Bandung mas mais poderoso.

Esta é a realidade dos Estados e das relações de continuidade e de ruptura entre eles. Não podemos confundir os esforços para melhorar este mundo, comandados pela ética e pelo humanismo, cristão ou agnóstico, com a hipócrita ou estúpida ignorância da realidade. Uma das características do pensamento ocidental foi a consciência de que os ideais de que nos podíamos e devíamos aproximar eram uma meta tão essencial quanto inalcançável.

Na definição dos ideais e na forma como devem afirmar-se, ou na sua expedita redefinição e “implementação universal”, a ordem liberal internacional que ainda vigora nas relações internas entre o bloco norte-americano e europeu, a NATO e a União Europeia, tornou-se refém de movimentos minoritários, mas com grande poder de manipulação e imposição cultural. Movimentos empenhados na aplicação arrogante, cega e aleatória da dialéctica opressor-vítima a todos os tempos e espaços e a todas as realidades culturais e sociais.

E isso que “o resto do mundo” rejeita.

RELAÇÕES INTERNACIONAIS     POLÍTICA     MUNDO

COMENTÁRIOS (de 40)

Rui Lima: Mais um brilhante e sábio artigo só ao alcance de poucos, o que me chamou a atenção foi a não presença da Europa que até à 2.ª guerra definia o mundo, está atolada nas leis e convenções que criou que fazem dela o refúgio do mundo com custos económicos de segurança e de futuro . (A ilha de Lampedusa recebe mais refugiados em 24 horas que os habitantes que tem e há centenas de milhões para vir gente que prega outros costumes , outra cultura , outra fé ) A Europa não só não conta como deixará de existir. Entretém-se com as estátuas que devem ir abaixo , um beijo de um treinador é o assunto maior , enquanto quem chega ou melhor os seus descendentes, por discordarem do programa escolar sobre a igualdade de sexo, queimam as escolas, ontem Liege e Namur Bélgica ….e serão mais, mas é segredo, pois não foi feito pelo homem branco, só os crimes dele merecem divulgação . Foram os heróis nacionais e suas epopeias que no passado fizeram a unidades das nossas nações e nos deram vontade de lutar pelos nossos países , não só deixaram de estar nos programas escolares, exemplo, em França até o herói dos heróis, Napoleão, morreu na escola e nas comemorações , como hoje esses homens são apresentados como criminosos, estamos matando  o nosso passado, destruindo o nosso presente .                GateKeeper: Caro JNP, gosto de ter sempre como livro de cabeceira o seu "A direita e as direitas". Na minha humilde opinião, a "ordem liberal internacional" já se finou há algum tempo; a decadência das sociedades é tão  óbvia, quase tão "física" que dói. Vivemos tempos muito difíceis; viveremos, em breve, "tempos de chumbo". Hoje em dia vive-se do e para o MOMENTO e pensa-se cada vez menos. Deixámos de aprender com o nosso passado e nunca tiramos lições do nosso presente. Hoje quem é simplesmente realista é condenado por, supostamente, ser "fascista", "antidemocrático" , " da direita ( seja lá isso o que for), etc, etc.. O epíteto mais "suave" que nos atiram à cara é o de sermos "pessimistas". Infelizmente, alguns de nós ainda negamos, p.e., NÃO  sermos "woke" e FINGIMOS sê-lo porque "dá jeito". E, contudo, mesmo assim, somos dos poucos que ainda ouvem e lêem " a direcção do Mundo" e se importam verdadeiramente com isso. Sobretudo evitamos confundir as primeiras árvores à beira do caminho com a floresta. Excelente artigo meu caro Jaime. Como sempre. Bem haja.                Glorioso SLB > Rui Lima: O Napoleão era um ditador sanguinário. Invadiu o nosso país, violou as nossas mulheres, e fugiu rico e sem punição. Ñ compreendo um chefe de Estado português visitar Paris e ir ver a tumba desse bárbaro.

 

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