Desde ontem sem Internet nem Televisão, resolvi escrever esta história real, já que o Word não me impediu que ocupasse algum do meu tempo na escrita dactilografada a dedo indicador . Eis a minha história:
Muga é um mocinho esperto mas
calaceiro, a quem recentes explicações de Matemática do seu primo em segundo
grau, João, parece terem tido efeito positivo sobre a sua eficiência, como
aluno dessa disciplina, o que, não obstante algumas recaídas, ganhas na
convicção, contudo, de que as boas notas anteriores que as primeiras
explicações lhe proporcionaram, lhe permitiam abrandar ocasionalmente os ritmos
do seu empenhamento, já adepto do “A vida
é o dia de hoje, sombra que foge, nuvem que voa, folha que cai…” como escrevera
João de Deus, por sinal um estudante também bastante calaceiro nos seus tempos
e nos de Trindade Coelho do “In illo
Tempore” coimbrão, que a ele se refere, já João de Deus era então conhecido
pela sua veia poética pontuada no seu “Campo
de Flores”.
Ora o Muga (nome familiar carinhoso) teve,
recentemente, que apresentar oralmente um trabalho, em dez minutos, para a
disciplina de Literatura Portuguesa, do seu décimo ano, como cada um dos demais
colegas. Escolheu as Rimas de
Petrarca em tradução de Vasco da
Graça Moura, trabalho que se foi arrastando no esquecimento, Muga ultrapassado,
julgo que propositadamente, por outros colegas que iam apresentando os seus. No
passado domingo, no nosso café matinal na pastelaria que chega a reunir por
vezes mais de dez ou doze familiares, da minha irmã e meus – o João,
preocupado, falou no Muga, a quem dera, nessa manhã, a sua
ensaboadela de Matemática, antes de se juntar a nós: O Muga tinha que apresentar na
terça-feira seguinte - que foi ontem – o seu trabalho de dez minutos, sobre
Petrarca e a análise de um soneto da tradução de Vasco Graça Moura do livro “Rimas de Petrarca” e perguntou-me se eu
não poderia ajudar o Muga
para o seu trabalho oral. Eu não tinha o livro do Vasco da Graça Moura,
mas pelo telefone falei com o Muga, aconselhando-o a comprá-lo e a procurar
na internet dados sobre Petrarca e até sobre Vasco Graça Moura. Mas no regresso
a casa, à boleia do João, descrente na obediência do Muga, pedi-lhe que fosse à Fnac
comprar-me o livro do Vasco da Graça Moura, ao que o João se dispôs,
eficientemente, tendo, pouco depois, telefonado a dizer que falara com o Muga que
recusara
a compra e a explicação, ele próprio procuraria na Internet, para
organizar o seu trabalho.
Preocupada com o trabalho que o Muga tinha que apresentar, na
inconsciência da sua responsabilidade, fiz eu um curto texto orientador, depois
de arrumada a cozinha da minha chefia caseira. Procurei dados sobre Vasco Graça
Moura e lá encontrei os poemas da sua tradução. Organizei um breve texto
orientador, enviei-o ao João, que o mandou para o Muga.
Foi o seguinte:
*
«Um soneto de Petrarca
Li, na Internet, que Petrarca (do sé. XIV) foi, juntamente com Dante, seu antecessor, (do séc. XIII), um poeta influenciador da corrente literária “O
Renascimento”, este como Primeiro Período da Época Clássica,
também chamado Período Humanista, do séc. XVI, a que pertenceu o nosso Camões. Humanista porque colheu nos
clássicos gregos e latinos, características artísticas imitativas destes, que
traduziram o HOMEM em descrições e conceitos através do BELO e do REAL,
reveladores de conhecimento humano e até mesmo do IDEAL, colhido este no filósofo
grego Platão.
Os poemas de Petrarca, entre outras formas poéticas, foram
fixados em soneto, uma estrutura métrica que a poesia medieval não utilizava, bem mais
simples esta, tanto na forma - (variada), como no conteúdo repetitivo, no
lirismo, limitado às cantigas de amigo e de amor, de diferentes critérios
descritivos e, na sátira às de escárnio e maldizer.
Mas Petrarca foi o poeta que influenciou os
poetas líricos do Renascimento (do séc. XVI), como Camões, em Portugal, graças a Sá de Miranda, que, tendo estado em
Itália, trouxe para Portugal esse conhecimento humanista.
Vasco da Graça Moura (1942/2014), grande escritor português, fez a tradução de alguns sonetos de Petrarca, de que escolhi o seguinte, por ter um
sentido de humor curioso - O Amor apanhando o Homem na armadilha, e deixando o
coração da Mulher insensível, não atravessado pelas setas do arco de Cupido:
Era o dia em que ao sol descoloriam
raios por luto a seu factor prestado,
quando eu fui
preso, Dama, descuidado,
que vossos belos olhos me prendiam.
Nem reparos ao tempo me advertiam
contra os
golpes de Amor, e eu tinha andado,
seguro e sem
suspeita: e meus ais brado,
que nessa dor comum então se ouviam.
Desarmado de todo achou-me Amor
e os olhos abrem via ao coração,
que são saída ao pranto e a seu passar.
Mas creio não ser honra a seu favor
ferir-me a
setas nessa condição
e a vós, armada, o arco não mostrar.
Esquema rimático do soneto: abba, a`b`b`a`,
cde c`d`e`»
*
Mas na segunda-feira ao fim do dia, telefona-me o João para ver se eu
poderia dar umas achegas orientadoras ao seu explicando que tinha a sua
apresentação no dia seguinte e estava atrapalhado, pois nunca mais pensara no
assunto.
E o Muga chegou, e teve a sua ensaboadela descodificadora, que meteu,
além do paralelo apressado entre a poesia de Camões, nas breves citações da
memória já com bastas falhas, e a do poema de Petrarca, da tradução de Vasco
Graça Moura, brevemente analisado, a Proposição
dos Lusíadas, com referência ao primeiro
verso da Proposição da Eneida, “Arma
virumque cano” para o Muga perceber o que era essa coisa de “imitação
humanista” e “influência dos clássicos”, primeiro sobre Petrarca e depois nos discípulos
deste, com breve passagem pelas cantigas de amigo e de amor, com apresentação
de obras motivadoras, para a definição introdutória de literatura humanista e
classicismo, e para poder notar a diferença, entre a poesia mediévica que ele
estudara neste primeiro período, e a renascentista, que ia começar a estudar,
diferente nos temas e formalmente.
Mas o Muga estava com pressa – ou antes, com stress, por
via do palavroso que ali enfrentava, de uma tia maçuda - tinha que ir jantar
com a sua Mãe e ainda precisava de compor, nessa noite, um modelo visual objectivador
da análise do soneto, esquema (“assemblagem”, ao que parece), que me deixou
plenamente satisfeita, e direi mesmo, boquiaberta, dada a rapidez com que lhe
acudiu à mente, logo ali: o desenho de uma seta de Cupido a atravessar o
coração do Homem, outra a desviar-se do coração da Mulher (segundo o queixume
do Poeta Petrarca no dito soneto da excelsa tradução de Vasco da Graça Moura),
e que provou uma rapidez de raciocínio logo concretizado em arte pinturesca, que
augura um próspero futuro a Muga, na adaptação a diferentes perspectivas de
criatividade.
O Muga telefonou-me ontem, dizendo que a professora tinha elogiado
a sua apresentação, naturalmente comovida, tal como eu ficara, nessa coisa das
setas, da rápida dedução transformadora do Muga.
Para além de tudo isto, achei curiosa a metodologia do ensino actual,
que assim globaliza o ensino, provando que as diferentes áreas daquele podem,
afinal, unir-se, em democrática confraternização, tão à nossa maneira - desta
vez pedagógica: uma aula de literatura visualizada pinturescamente, para não
dizer pitorescamente. Chama-se a isto, evolução, e Camões e os clássicos primeiros
– e mesmo os seguintes - já o tinham dito: “Mudam-se
os tempos…”. A começar nas pedagogias…
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