quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

E tudo descambou em setas

 

Desde ontem sem Internet nem Televisão, resolvi escrever esta história real, já que o Word não me impediu que ocupasse algum do meu tempo na escrita dactilografada a dedo indicador . Eis a minha história:

 

Muga é um mocinho esperto mas calaceiro, a quem recentes explicações de Matemática do seu primo em segundo grau, João, parece terem tido efeito positivo sobre a sua eficiência, como aluno dessa disciplina, o que, não obstante algumas recaídas, ganhas na convicção, contudo, de que as boas notas anteriores que as primeiras explicações lhe proporcionaram, lhe permitiam abrandar ocasionalmente os ritmos do seu empenhamento, já adepto do “A vida é o dia de hoje, sombra que foge, nuvem que voa, folha que cai…” como escrevera João de Deus, por sinal um estudante também bastante calaceiro nos seus tempos e nos de Trindade Coelho do “In illo Tempore” coimbrão, que a ele se refere, já João de Deus era então conhecido pela sua veia poética pontuada no seu “Campo de Flores”.

Ora o Muga (nome familiar carinhoso) teve, recentemente, que apresentar oralmente um trabalho, em dez minutos, para a disciplina de Literatura Portuguesa, do seu décimo ano, como cada um dos demais colegas. Escolheu as Rimas de Petrarca em tradução de Vasco da Graça Moura, trabalho que se foi arrastando no esquecimento, Muga ultrapassado, julgo que propositadamente, por outros colegas que iam apresentando os seus. No passado domingo, no nosso café matinal na pastelaria que chega a reunir por vezes mais de dez ou doze familiares, da minha irmã e meus – o João, preocupado, falou no Muga, a quem dera, nessa manhã, a sua ensaboadela de Matemática, antes de se juntar a nós: O Muga tinha que apresentar na terça-feira seguinte - que foi ontem – o seu trabalho de dez minutos, sobre Petrarca e a análise de um soneto da tradução de Vasco Graça Moura do livro “Rimas de Petrarca” e perguntou-me se eu não poderia ajudar o Muga  para o seu trabalho oral. Eu não tinha o livro do Vasco da Graça Moura, mas pelo telefone falei com o Muga, aconselhando-o a comprá-lo e a procurar na internet dados sobre Petrarca e até sobre Vasco Graça Moura. Mas no regresso a casa, à boleia do João, descrente na obediência do Muga, pedi-lhe que fosse à Fnac comprar-me o livro do Vasco da Graça Moura, ao que o João se dispôs, eficientemente, tendo, pouco depois, telefonado a dizer que falara com o Muga que recusara a compra e a explicação, ele próprio procuraria na Internet, para organizar o seu trabalho.

Preocupada com o trabalho que o Muga tinha que apresentar, na inconsciência da sua responsabilidade, fiz eu um curto texto orientador, depois de arrumada a cozinha da minha chefia caseira. Procurei dados sobre Vasco Graça Moura e lá encontrei os poemas da sua tradução. Organizei um breve texto orientador, enviei-o ao João, que o mandou para o Muga.

Foi o seguinte:

*

«Um soneto de Petrarca

Li, na Internet, que Petrarca (do sé. XIV) foi, juntamente com Dante, seu antecessor, (do séc. XIII), um poeta influenciador da corrente literária “O Renascimento”, este como Primeiro Período da Época Clássica, também chamado Período Humanista, do séc. XVI, a que pertenceu o nosso Camões. Humanista porque colheu nos clássicos gregos e latinos, características artísticas imitativas destes, que traduziram o HOMEM em descrições e conceitos através do BELO e do REAL, reveladores de conhecimento humano e até mesmo do IDEAL, colhido este no filósofo grego Platão.

Os poemas de Petrarca, entre outras formas poéticas, foram fixados em soneto, uma estrutura métrica que a poesia medieval não utilizava, bem mais simples esta, tanto na forma - (variada), como no conteúdo repetitivo, no lirismo, limitado às cantigas de amigo e de amor, de diferentes critérios descritivos e, na sátira às de escárnio e maldizer.

Mas Petrarca foi o poeta que influenciou os poetas líricos do Renascimento (do séc. XVI), como Camões, em Portugal, graças a Sá de Miranda, que, tendo estado em Itália, trouxe para Portugal esse conhecimento humanista.

Vasco da Graça Moura (1942/2014), grande escritor português, fez a tradução de alguns sonetos de Petrarca, de que escolhi o seguinte, por ter um sentido de humor curioso - O Amor apanhando o Homem na armadilha, e deixando o coração da Mulher insensível, não atravessado pelas setas do arco de Cupido:

Era o dia em que ao sol descoloriam

raios por luto a seu factor prestado,

 quando eu fui preso, Dama, descuidado,

que vossos belos olhos me prendiam.

 

Nem reparos ao tempo me advertiam

 contra os golpes de Amor, e eu tinha andado,

 seguro e sem suspeita: e meus ais brado,

que nessa dor comum então se ouviam.

 

Desarmado de todo achou-me Amor

e os olhos abrem via ao coração,

que são saída ao pranto e a seu passar.

 

Mas creio não ser honra a seu favor

 ferir-me a setas nessa condição

e a vós, armada, o arco não mostrar.

Esquema rimático do soneto: abba, a`b`b`a`, cde c`d`e`»

*

Mas na segunda-feira ao fim do dia, telefona-me o João para ver se eu poderia dar umas achegas orientadoras ao seu explicando que tinha a sua apresentação no dia seguinte e estava atrapalhado, pois nunca mais pensara no assunto.

E o Muga chegou, e teve a sua ensaboadela descodificadora, que meteu, além do paralelo apressado entre a poesia de Camões, nas breves citações da memória já com bastas falhas, e a do poema de Petrarca, da tradução de Vasco Graça Moura, brevemente analisado, a Proposição dos Lusíadas, com referência ao primeiro verso da Proposição da Eneida, “Arma virumque cano” para o Muga perceber o que era essa coisa de “imitação humanista” e “influência dos clássicos”, primeiro sobre Petrarca e depois nos discípulos deste, com breve passagem pelas cantigas de amigo e de amor, com apresentação de obras motivadoras, para a definição introdutória de literatura humanista e classicismo, e para poder notar a diferença, entre a poesia mediévica que ele estudara neste primeiro período, e a renascentista, que ia começar a estudar, diferente nos temas e formalmente.

Mas o Muga estava com pressa – ou antes, com stress, por via do palavroso que ali enfrentava, de uma tia maçuda - tinha que ir jantar com a sua Mãe e ainda precisava de compor, nessa noite, um modelo visual objectivador da análise do soneto, esquema (“assemblagem”, ao que parece), que me deixou plenamente satisfeita, e direi mesmo, boquiaberta, dada a rapidez com que lhe acudiu à mente, logo ali: o desenho de uma seta de Cupido a atravessar o coração do Homem, outra a desviar-se do coração da Mulher (segundo o queixume do Poeta Petrarca no dito soneto da excelsa tradução de Vasco da Graça Moura), e que provou uma rapidez de raciocínio logo concretizado em arte pinturesca, que augura um próspero futuro a Muga, na adaptação a diferentes perspectivas de criatividade.

O Muga telefonou-me ontem, dizendo que a professora tinha elogiado a sua apresentação, naturalmente comovida, tal como eu ficara, nessa coisa das setas, da rápida dedução transformadora do Muga.

Para além de tudo isto, achei curiosa a metodologia do ensino actual, que assim globaliza o ensino, provando que as diferentes áreas daquele podem, afinal, unir-se, em democrática confraternização, tão à nossa maneira - desta vez pedagógica: uma aula de literatura visualizada pinturescamente, para não dizer pitorescamente. Chama-se a isto, evolução, e Camões e os clássicos primeiros – e mesmo os seguintes - já o tinham dito: “Mudam-se os tempos…”. A começar nas pedagogias…

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