A análise psicológica feita por EDUARDO
SÁ, que é psicólogo. Plena de dados e farpas irónicas, revertendo para cada humano
- que vai envelhecendo na consciência sinistra da nulidade que representa no
cômputo das vidas que criou ou acompanhou na sua vida - e pondo a nu, ironicamente,
a pecha humana dos egocentrismos que rebuscam na sua introversão, provavelmente
mais ociosa, por mais avançada em idade, os motivos da sua solidão. Uma solidão
que na era do telefone mais se acentua, contudo, se também esse falha, nestes tempos
de contactos à distância - que, aliás, os jovens hoje em dia tão singularmente utilizam,
já, talvez, prevendo a fraca durabilidade das suas ligações afectivas, mesmo as
de idades mais precoces. Ocorre-me a imagem dos lares para idosos, que são
consequência, tantas vezes, da banalidade das vidas no sentimento dos
familiares, mesmo os mais chegados, pesem embora outros motivos de peso que faz
que sejam despachados para os tais lares necessários, as tais vidas tornadas definitivamente
solitárias, definitivamente onerosas para os familiares, o que, de resto, é
natural, nestes tempos de horários sobrecarregados pelo trabalho exterior.
Um texto brilhante, para reler e
meditar, este de Eduardo Sá.
A pandemia do futuro
A solidão está a transformar-se numa pandemia porque
nós deixamos que nos tratem como se não fôssemos pessoas que sentem, que pensam
e que intuem.
EDUARDO SÁ, Psicólogo
OBSERVADOR, 03
dez. 2023, 19:446
A solidão é o pó (pegajoso) dos gestos que as pessoas têm para
connosco. Com que nos demonstram que, por mais que nos amem, não alcançam as
entrelinhas daquilo que somos. Não nos conhecem. E não apanham o jeito de
gostar de nós. E talvez seja esse o lado mais desconcertante da solidão: ela é
construída, peça a peça, pelas pessoas mais importantes para nós.
Às vezes, fala-se, com muito
ênfase, da forma como a solidão se estará a transformar na grande pandemia do
futuro. (E está!)
Porque ela se alastra, fulgurante. Porque se estende e se aprofunda,
independentemente das latitudes, das culturas e dos níveis sociais e económicos
das pessoas. E porque parece passível dum arrepiante contágio. Tudo depois
doutra pandemia com que, no furor dos confinamentos, descobrimos a importância
daqueles que amamos. Para que, de seguida, qual droga que nos
agarra, voltarmos a viver virados sobre nós próprios. Agitados. Ásperos.
Zangados. Altivos. Intolerantes. Inflamáveis. Ou arrogantes. Sempre com a
desculpa que temos vidas preenchidas e agitadas. Deixando nas entrelinhas a
ideia que as pessoas que amamos merecem os restinhos residuais do nosso tempo e
da nossa atenção. Como se, ao contrário daquilo que repetimos, não tivessem
para nós a importância que, repetidamente, dizemos que merecem. Ao mesmo tempo
que falamos, com vaidade, da forma como somos uma sociedade da comunicação. Na verdade, temos ao nosso dispor formas
de comunicar em tempo real. Com som e imagem. E é fácil comunicar. Logo, a
solidão não se faz porque tenhamos todos, hoje, vidas intensas. Essa
explicação, muito egocêntrica, esquece-se da forma como os nossos antepassados
tinham vidas mais violentas, muitíssimo mais carenciadas, menos educadas e com
obstáculos — de mobilidade, de comunicação ou, até, pessoais —
incomparavelmente mais agrestes e intransponíveis.
A solidão costura-se no silêncio. E devagarinho. Quando
pessoas preciosas não reparam em nós. Ou, se reparam, se fecham no seu coração.
Não manifestam curiosidade pelo que estamos a construir connosco mesmos, todos
os dias. Não comparticipam nas nossas decisões e, quando muito, surgem para nos
repreender pelas escolhas que fizemos. Não nos dão nem colo nem mimo. E não falam. Não falam daquilo que lhes
damos a sentir. Do que esperam de nós. Ou do que as magoa em tudo o que
fazemos. A solidão é assim: transforma pessoas que se conhecem em estranhos que
se vão desconhecendo como mais ninguém.
A solidão existe porque, de forma
doentia, acumulamos descuidos, desamparos e desinteresse para com quem é
importante para nós. E lhes falhamos. Uma vez e mais outra. Muitas
vezes! Mesmo quando dispomos de recursos e de instrumentos para lhes
demonstrarmos que os conhecemos (melhor, até, do que elas se conhecem a si
próprias). E, por isso, somos omissos. Mesmo que sejamos capazes de falar por
elas e antecipar, em gestos, as respostas pelas quais mais anseiam, antes,
ainda, delas as configurarem e de as “formatarem” em palavras. E engonhamos. E
lhes demonstramos que, sendo importantes para nós, não serão tão indispensáveis
para estarmos de bem com a vida e em paz connosco como, qual slogan,
transformamos num pregão. E remetemo-nos a um: “ela sabe que gosto dela!…”.
Mesmo que lhe demostremos que não sabemos gostar nem queremos aprender a gostar
de si de forma a que ela o sinta. E num jeito que a acalente e lhe preencha a
alma.
Por
isso é curioso que falemos da solidão como a solidão… dos outros. A solidão nas grandes cidades. A solidão
das minorias. Ou a solidão que o sofrimento humano aviva e acentua. A solidão
das pessoas que se queixam, amiúde, dela, seja quando se sentem votadas ao
abandono no casamento, pelos pais ou pelos filhos. E a solidão da velhice. Como
se colhêssemos, de supetão, uma solidão para a qual não trabalhámos. Mesmo sem
querer.
E, no entanto, muitos (mas, mesmo,
muitos!!) de nós, continuamos distraídos por todos os apelos que chovem, em
cascata, nos nossos dias. Distraídos pelas pessoas feias, agrestes ou
horrorosas que se atravessam nos nossos dias e nos contaminam com a sua solidão
porque a nossa luz acentua a sua inveja de lutarmos por aquilo de que elas
desistiram e com que parecem conspurcar com sombras e escuro a nossa luz.
Distraídos pela forma como há sempre pessoas que desconsideram o nosso esforço
e o carinho com que trabalhamos e nos pespegam objectivos, criam climas
laborais tensos ou paranoides e, ao mesmo tempo, nos enchem de traquitanas
motivacionais e lideranças clonadas de quem leu um livro de psicologia positiva
e descobriu que tem a luz dum coach. Distraídos. Distraídos. Distraídos! E, se
for assim, atormentados…
Mas — não! — os déficits de atenção são
um exclusivo dos alunos que saturamos com escola e mais escola quanto mais eles
querem aprender, conviver, amar a vida e “adorarem” um professor… Não, a falta
de saúde mental tem a ver com outros…Quase sempre, com os outros. Quase só com
os outros… E, entretanto, de descuido em descuido, costuramos desamparos.
De desamparo em desamparo, chegamos ao desinteresse. E de desinteresse em
desinteresse à indiferença. Indiferença de confusão, de aceitarmos ficar
amalgamados no mal dos outros. E indiferença de distração absoluta em relação a
eles.
E, no entanto, a indiferença contamina e contagia. (Já repararam?…) Conspurca a forma como a nossa
história — única e fabulosa — se acanha e se anula. E não se traduz
numa sabedoria que traz massa crítica à vida dos outros. Atrofia a
singularidade daquilo que sentimos, que se perde no labirinto dos dias e não
nos deixa nem sermos transparentes nem espontâneos. E corrói aquilo em que pensamos — sempre novo; sempre fulgurante —
que, por falta de palavras ou pelo acanhamento que nos impuserem sem querer,
nos leva a sentir que fazemos todos parte da “multidão anónima” com que os
apresentadores de televisão falam do “povo”. Das pessoas sem nome… Como se
fôssemos uma ganga no lugar dum florescer que nunca se cansa.
A solidão faz-se, também — e muito! — de
todos os “relaxa, respira fundo, ouve
as ondas do mar ou a chuva a cair”. E de todos os “distrai-te e não penses mais nisso”. Desta necessidade de
esvaziar a cabeça para se chegar a um bem-estar “supremo”. De preferência,
sozinho… Com a ajuda duma aplicação qualquer. Como se “limpar” o pensamento, não pensando nele, não fosse o que
mais o conspurca e o abarrota de coisas com que ele adoece.
A solidão está a transformar-se numa
pandemia porque nos deixamos que nos tratem como se não fossemos pessoas que
sentem, que pensam e que intuem. Como se a inteligência artificial dos
algoritmos fosse uma ameaça maior que esta inteligência artificial das banalidades
com que maquilhamos as nossas omissões.
Por isto tudo, para que a solidão (e, já
agora, a estupidez) não vença, precisamos de pôr as pessoas primeiro.
Precisamos de lhes dar aquilo que queremos, também, que elas nos dêem.
Precisamos de gestos. E de falar! Precisamos do brincar, da ironia e da festa.
E precisamos de amar (desculpem!). Que é antídoto da solidão. Que, nos dias que
correm, parece ser um tabu. Sem alma. Sem perspectiva. E sem amanhã.
E (há sempre um “e”!…) se tudo isto
vos parecer um enfado, tenham cuidado: o enfado é a linguagem, com que a
solidão, com pezinhos de lã, cresce e atordoa. Empurra para a saudade. E
abalroa.
COMPORTAMENTO SOCIEDADE PESSOAS
COMENTÁRIOS
Francisco Almeida: E se a solidão nos abandonar, o
que resta? Nada, por castigo. Carlos Real: Eu diria que a solidão é a
pandemia do presente. A minha mulher nos anos 70 veio com a família viver em
Almada. Todos os primos alentejanos aproveitavam as férias para acampar lá em
casa. Era a praia que não tinham. Em Castro Verde, na altura da feira famosa
vinham das aldeias e faziam o mesmo na casa da prima. Hoje praticamente só
comunicam através das redes sociais. Ninguém visita ninguém. Todos com
carrinho, estradas modernas, dinheiro no bolso, mas convívio familiar fica
reduzido aos pais e irmãos (cunhados). O ponto de encontro é nos funerais. Não
preciso de acrescentar mais nada. Lily Lx: Muito bem posto. Miguel Ramos: modernices... bento guerra: Eu tenho conhecido vários tipos de solidão, ao longo de já longa vida. Gosto
de várias interpretações sobre o tema: a máxima chinesa "um solidão, dois
companhia, três multidão" e a poética do Jorge Fernando "Boa noite, solidão",
que ele escreveu com 16 anos! António
Tomás Ribeiro (tuga): Excepcional!
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