Usou palavras
com que o seu “experto peito” o fez atacar a glória de mandar, que levou os
impulsionadores de Vasco da Gama a fazê-lo ir em busca da Índia, mas ele
próprio, Velho resmungão, se contradisse no final do seu discurso, com
elogios a essas ousadias da “estranha condição” humana que a levou a insistir,
mesmo com dor e grandes trabalhos, numa empresa extraordinária, que só em 1961,
quase cinco séculos depois - neste caso da Índia – se revelou
definitivamente errática, sem contradições de peso - as outras
“Índias” prolongadas por mais alguns anos ainda, vivendo nós hoje as consequências
da tal glória, neste Ocidente pejado do retorno sem ela.
Mas isto é apenas um exemplo de brincadeira, de alguém que não tem medo de estar errado, num mundo de muitas certezas, e que não aceitará jamais razão contrária, nem que a vaca tussa. Não, não responde ao discurso filosófico de Patrícia Fernandes, de tão limitada que é a escutar opiniões opostas a essa sua, brilhante de saber…
O medo de estar errado
Nesse admirável mundo novo da Europa,
os jornalistas, como a Comissão Europeia bem salienta, têm uma missão a
cumprir: não a de dar informação sobre factos, mas a de serem guardiões de
certas opiniões
PATRÍCIA FERNANDES, Professora
na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
OBSERVADOR, 11
dez. 2023, 00:2035Jogar Agora
“Há
sempre esperança quando as pessoas são forçadas a escutar os dois lados; é
quando prestam atenção a apenas um deles, que os erros se solidificam e se
tornam preconceitos.”
John Stuart Mill, Sobre a Liberdade
O elogio do erro
Em 2010, a jornalista Kathryn Schulz debruçou-se sobre um tema improvável: ao
invés de escrever sobre os grandes feitos e conquistas da história, dedicou-se,
em Being wrong, ao elogio do
erro. De acordo com Schulz, “estamos errados sobre o que significa estar errado”:
tendemos a considerar o erro como sinal de inferioridade intelectual, falha
moral ou mesmo sintoma de indiferença ou intolerância; mas, na verdade, a capacidade de errar é crucial para a
cognição humana, está relacionada com algumas das nossas qualidades mais nobres
e constitui uma parte vital de como aprendemos e mudamos.
Acreditar que estamos certos consiste num mecanismo de sobrevivência: precisamos
dessa certeza para responder aos desafios naturais e sociais e não paralisarmos
sob o poder da dúvida. Foi provavelmente por esse motivo que o nosso cérebro
desenvolveu o viés de confirmação, fazendo-nos procurar informações que confirmam
as nossas crenças anteriores. E quando nos pedem para descrever o que sentimos
quando sabemos estar errados, falamos em embaraço, vergonha e muito desconforto
– reacções que nos levam a recear estar errados. Mesmo sabendo que é
impossível estarmos sempre certos, sentimo-nos como Molière (numa frase que
Schulz cita, mas que não consegui referenciar): “enfurece-me estar errado quando sei que estou certo”.
O objectivo de Schulz é chamar a atenção
para a importância do erro: errar é fundamental para que possamos melhorar,
pessoal e colectivamente: “graças ao
erro, podemos rever o nosso entendimento de nós mesmos e corrigir as nossas
ideias acerca do mundo”. E assim, quanto mais as sociedades estão
abertas ao erro e à humildade de reconhecer que podem não ter razão – por mais
que isso nos enfureça – mais capazes são de se aperfeiçoar. E não há melhor
fórmula política para esse tipo de sociedades do que garantir uma ampla
liberdade de pensamento e expressão.
Três argumentos pela liberdade de expressão
Passaram mais de 160 anos desde que John
Stuart Mill publicou o seu Sobre a Liberdade, a que já
recorremos a propósito de outro tema.
Mas o segundo capítulo deste livro, dedicado à liberdade de expressão, continua
a ser o texto de referência sobre este assunto: os seus argumentos continuam a
ser considerados a melhor defesa filosófica da liberdade de expressão, e embora
não convençam todos, obrigam aqueles que consideram que esta liberdade é
sobrevalorizada a responder directamente a Mill.
O capítulo exige algum trabalho
hermenêutico, mas podemos resumir a posição de Mill da seguinte forma: “silenciar
a expressão de uma opinião constitui um roubo à humanidade; à posteridade, bem
como à geração actual; àqueles que discordam da opinião, mais ainda do que
àqueles que a sustentam”. E trata-se de um roubo à humanidade ainda
que todas as pessoas tenham a mesma opinião com excepção de uma. De acordo
com Mill, o mal desse silenciamento resulta de três alternativas:
A opinião minoritária pode ser verdadeira
Tentar
suprimir uma opinião, mesmo que a julguemos falsa, coloca-nos numa posição de
arrogância intelectual: estamos a partir do pressuposto de que somos infalíveis. Mas
devemos ter a humildade intelectual de reconhecer que podemos estar errados e a
opinião minoritária ser verdadeira: a história mostra-nos que não só os
tempos se enganam (de que a
morte de Sócrates e Jesus é exemplo), como também pessoas sábias
se enganam (de que é exemplo a perseguição
aos cristãos feita pelo sábio Marco Aurélio), e opiniões consideradas
falsas foram mais tarde validadas como verdadeiras.
Mill recorda um princípio da razão
que parece hoje esquecido: numa
sociedade livre, não impedimos o debate e a discussão de uma ideia porque a
presumimos verdadeira, mas consideramo-la verdadeira porque foi sujeita a
debate e discussão, e ainda assim resistiu.
A opinião minoritária é falsa
Na opinião de Mill, a supressão da discussão de uma ideia é igualmente
prejudicial se a opinião minoritária for falsa. Nesse
caso, os defensores da opinião
maioritária perdem a oportunidade de conhecer melhor a sua
posição e fortalecer os seus argumentos. O mesmo é dizer, para usar a deliciosa
expressão do filósofo inglês, “aquele
que conhece apenas o seu lado da questão sabe pouco acerca do seu lado”.
Num passo particularmente feliz, Mill acrescenta: quando uma opinião deixa de ser contestada, perde a sua força viva e
torna-se dogma adormecido e fraco; por essa razão, os adversários das nossas
ideias prestam um excelente serviço à nossa causa.
As duas opiniões partilham a verdade
entre si
Esta é a situação mais usual, e é
particularmente importante na política, onde a verdade nunca se encontra só num
dos lados. Neste caso, o conflito de opiniões opostas revela-se fundamental: só
assim a verdade poderá ganhar forma.
Considerando os três argumentos, não é
difícil imaginar que Mill subscreveria a lição de Schulz: não devemos deixar que o medo de estarmos errados nos faça suprimir
uma opinião contrária à nossa: se estivermos certos, a nossa posição sairá
reforçada; se estivermos errados, poderemos corrigi-la; e o mais provável é
termos meia-verdade que ficará completa com o outro lado.
Três tentativas de silenciamento
As sociedades actuais parecem,
no entanto, cada vez mais dispostas a suprimir vozes contrárias: a vontade e a certeza de estarem certas
fazem com que muitas pessoas se recusem a ouvir opiniões diferentes das suas,
escudando-se em dispositivos juridicamente formulados para defender uma visão
única, como “discurso de ódio”, “discriminação” ou “incitamento ao ódio ou à
violência” – mas que constituem recorrentemente modos daquilo que, em inglês,
se designa como “concept
creep” (algo como deslizamento
conceptual).
A União Europeia está, como sempre, na
linha da frente desta agenda avançada. Na semana passada adoptou a
comunicação “No place for hate: a Europe united against hatred” para apelar à acção contra o ódio,
estipulando, entre outras coisas, que a Comissão apoiará acções de formação para jornalistas sobre
o respeito pelas normas dos meios de comunicação social e reconhecimento de
discursos de ódio.
Embora o conflito
israelo-palestiniano ofereça muitos casos sensíveis para a liberdade de
expressão, optarei por referir três
exemplos mais relevantes para o nosso país.
O primeiro ocorreu com
o apelo ao boicote de
algumas livrarias e editoras pela presença de Jaime Nogueira Pinto na sessão de encerramento da Festa do Livro Independente da freguesia de Arroios em
outubro. Em sentido contrário à convicção de infalibilidade
que estas pessoas convocam, a sociedade portuguesa deve reconhecer a
sua dívida e gratidão a Jaime Nogueira
Pinto, por nunca ter receado expressar publicamente as suas opiniões, mesmo
que minoritárias (curiosamente, agora menos minoritárias do que nunca). Como
sempre acontece na política, algumas opiniões de Jaime Nogueira Pinto
estarão certas e outras estarão erradas – como acontece com todos nós –, mas se
optarmos pela decisão de não ouvir as opiniões com as quais não concordamos não
só teremos uma visão mais limitada da realidade, como ficaremos impedidos de
corrigir os nossos erros.
A segunda tentativa de silenciamento prende-se com a proposta apresentada pelo
Partido Socialista, felizmente retirada a tempo, para criminalizar actos
de discriminação em função de “convicções políticas ou ideológicas, instrução,
situação económica, condição social ou a pretexto de uma culpa coletiva baseada
em qualquer um destes fatores”. O facto de um partido
considerar que cabe ao estado condicionar deste modo o uso da palavra é
perturbador. Mas mais revelador é o facto de não compreenderem que, ao abrir a porta a esses
mecanismos, estão a possibilitar que outros partidos façam uso deles no futuro:
ou presumem que vão ficar para sempre no governo?
O terceiro exemplo leva-nos à Irlanda: no final de
novembro, cinco pessoas, três delas
crianças, foram esfaqueadas em Dublin, o que gerou uma reacção de violentos
protestos, não habituais no país. A identidade do atacante foi
escondida pela polícia e pelos media, o que só terá aumentado a revolta. Num
país tradicionalmente de emigrantes, o problema da imigração está na ordem do
dia: de acordo com notícia do Expresso “dos
cinco milhões de habitantes da Irlanda, cerca de um milhão que se declararam
‘residentes habituais’ nos últimos Census (2022) não nasceram no país”.
Mas o problema, em vez de ser discutido, está a ser silenciado, com a
maioria dos media a omitir informações ou declarações consideradas de
“incitamento ao ódio” (a liberdade de expressão tem estado, aliás, em discussão
na Irlanda em virtude da polémica lei sobre “crimes de ódio” e “discurso
de ódio”).
Representativas desta atitude são as declarações da jornalista Kitty Holland,
que defende que referir a raça e a
nacionalidade (neste caso do homem condenado pelo assassinato de Ashling
Murphy, em 2022) constitui incitamento ao ódio, pelo que nem as declarações de
Ryan Casey, namorado da jovem, que levantam preocupações honestas sobre o
problema migratório, devem ser noticiadas. Nesse admirável mundo
novo, os jornalistas, como a Comissão Europeia bem salienta, têm uma missão a
cumprir: não a de dar informação sobre factos, mas a de serem guardiões de
certas opiniões.
O diagnóstico não é, na verdade, difícil
de fazer: se aqueles que ocupam
posições hegemónicas insistirem na tática de silenciamento, paralisados pelo
medo de estarem errados, os problemas não se resolverão. Pelo contrário, as pessoas procurarão quem
as ouça e expresse as suas preocupações – pelo que não pode ser visto como
surpreendente o crescimento dos partidos de extrema-direita na Europa. As
tácticas de demonização e silenciamento não são legítimas em democracia e, para
além disso, não são eficazes. Se optarem por elas, não se queixem dos
populismos.
PS: Na semana passada, a Oficina da Liberdade lançou um novo livro,
publicado na Alêtheia Editores, com o título Polarização – ensaios de história, filosofia e
teoria política. O livro conta com um texto meu sobre o papel
desempenhado pelas universidades no processo de polarização política, mas é
o ensaio de Paulo Tunhas que se destaca, provavelmente o último que escreveu
antes da sua morte. A sessão de
apresentação, que terá lugar no dia 19 de dezembro, prestar-lhe-á a merecida
homenagem.
LIBERDADE DE
EXPRESSÃO LIBERDADES SOCIEDADE
COMENTÁRIOS (de 35)
José B. Dias: Excelente crónica que faço votos não deixe de ser lida
e relida por grande parte dos elementos da redacção deste mesmo jornal! E, já
agora, por alguns dos aqui comentadores ... Manuel Lourenço: Na mouche, o big brother União Europeia não deixa que
os factos sejam relatados. Aqui no Observador também acontece - já agora a
autora do artigo poderia esclarecer quem foi o autor do esfaqueamento na
Irlanda - este comportamento de silenciar os factos (e de inventar outros) é
tão ridículo que lembra a história do rei vai nu. Acontece que a realidade
se impõe, não interessa o que o alforreca Guterres diga, a iluminata Úrsula
afirme, ou o senil Biden papagueie. Rui Medeiros: Mais um excelente artigo que dá gosto ler. Obrigado por escrever no Observador! Espero que
continue a escrever e partilhar a sua opinião e conhecimentos com os
assinantes do Observador (e não só...). É claramente uma voz lúcida e não
alinhada com o pensamento "dominante" ou que alguns nos querem impor... Alcides Longras > Joaquim Almeida: A autora defende a posição da Comissão Europeia? De
certeza que leu bem? Pedro
Calado: Excelente
artigo de opinião...deu mesmo prazer lê-lo. Obrigado!
Nenhum comentário:
Postar um comentário