E bem informado em termos legislativos, que seria bom todos conhecermos.
E seguirmos, mais conscientemente. Por MÁRIO PINTO, Professor catedrático da
Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa.
Eleições e liberdades de educação (2) –
Em defesa da autonomia da «escola pública»
A
escola pública não pode ser uma correia de transmissão da ideologia dos
partidos políticos no poder, e dos movimentos de activismo ideológico seus
aliados, como tem vindo a ser ultimamente.
MÁRIO PINTO Professor catedrático da Faculdade de Ciências
Humanas da Universidade Católica Portuguesa.
OBSERVADOR, 29 dez.
2023, 00:21
O presente artigo, dedicado à
defesa da autonomia da «escola pública», corresponde ao artigo número dois
sobre as liberdades de educação em período de eleições, cujo número um foi anteriormente publicado no jornal Observador. Nesse primeiro artigo, o critério editorial
do jornal destacou assim do seu conteúdo: «O Estado tem a pretensão de querer educar melhor as crianças na escola pública, do que elas são
educadas nas famílias e nas escolas privadas? É passar um atestado insultuoso
às famílias e à sociedade».
De facto, as mais recentes avaliações nacionais e
internacionais, e especialmente a avaliação do PISA, como em notáveis artigos
de Alexandre Homem Cristo e de outros colunistas neste jornal tem vindo a ser
criticamente analisado, e não só, vieram demonstrar o que já se pensava, isto
é, que — mal e autoritariamente administrada pelo Ministro da Educação nestes
últimos anos —, a escola pública entrou numa grave crise de degradação no
cumprimento das suas missões. Sem culpa do seu corpo docente, nem do seu corpo
discente, nem dos pais dos alunos menores no exercício dos poderes
constitucionais e legais de encarregados da sua educação. E
pelo contrário, com um inadmissível desprezo destes corpos pelo Ministério da
Educação.
Sinais
extraordinários comprovativos desta avaliação são os protestos amplos,
continuados e veementes, especialmente dos professores, como não há memória
assim. Este Ministro da Educação já
está na história como o pior e o mais contestado de todos os Ministros da
Educação na Terceira República Portuguesa. Que ele e o Governo o não queiram
reconhecer publicamente só agrava o seu mau desempenho.
Pois bem, e como
se anunciou inicialmente, a intenção deste segundo artigo é a
de, no contexto eleitoral em que entramos, e na perspectiva de novo Governo e
de novas políticas, reclamar em favor da autonomia da «escola pública»,
livrando-a da administração directa governamental, que é autoritária,
intrusiva, ideológica, e por fim inconstitucional. É desde logo expressamente inconstitucional porque a Constituição diz
assim no art. 43.º: «O Estado não pode programar a
educação e a cultura segundo quaisquer directrizes filosóficas, estéticas,
políticas, ideológicas ou religiosas». Assim, a escola pública não pode ser uma
correia de transmissão da ideologia dos partidos políticos no poder, e dos
movimentos de activismo ideológico seus aliados, como tem vindo a ser
ultimamente. Violando e humilhando os direitos constitucionais dos professores,
dos alunos e dos pais dos alunos. Lembremo-nos das recentes declarações
do Chefe de Gabinete do actual Ministro da Educação, em representação pública
do Ministro, defendendo que a missão da escola pública é
retirar as crianças das suas famílias — portanto para serem endoutrinadas nas escolas
públicas sob a directa administração das ideologias partidárias do Governo e
dos activismos seus aliados.
É preciso recordar e enfatizar
que a defesa da autonomia das escolas tem um fundamento democrático
indiscutível, que é o dos direitos constitucionais das pessoas humanas que
nelas exercitam as suas liberdades de aprender e de ensinar. Sem dúvida, a autonomia das escolas públicas pode ser justificada com base
no «princípio da descentralização democrática da administração pública»,
consagrado no art. 6.º da Constituição como «princípio
fundamental», que tão ofendido tem vindo a ser pelo centralismo socialista. Alguma coisa se tem feito, neste sentido, mas pouco e só em alguns aspectos materiais e práticos da chamada
«administração escolar», que não têm prejudicado o controlo centralista do
ensino, nas suas componentes científica, pedagógica e de avaliação, essenciais
para as liberdades.
Não obstante, a
autonomia que neste artigo se defende para as escolas não superiores é muito
mais do que isso, mais do que descentralização administrativa. É a mesma
autonomia que — por analogia, e obviamente com as devidas adaptações —, a
Constituição reconhece às universidades, no art. 76.º: «autonomia
estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira, sem prejuízo
da adequada avaliação da qualidade do ensino».
Porquê? Porque nas escolas públicas «não
superiores», tanto como nas Universidades, se exercem exactamente as mesmas
constitucionais e comuns liberdades de aprender e de ensinar de alunos e de
professores. Aquelas mesmas liberdades que estão igualmente garantidas a todos,
sem discriminações, no
art. 43.º da Constituição. E especialmente protegidas, também sem discriminações, contra a
programação do Estado, como já vimos. Nem as liberdades fundamentais são
diversas, nem as pessoas dos professores e dos alunos são menos capazes de
desempenhar responsavelmente as suas respectivas atribuições escolares. Porquê, então, num caso e noutro, a enorme
discriminação que se verifica? Só por causa de uma tradição que não foi criada pelo constitucionalismo
moderno, mas sim pelo despotismo de Estado iluminado, e depois pelos vários
centralismos educativos que se seguiram até hoje, má tradição que tarda em ser
reformada de acordo com o constitucionalismo moderno baseado na Declaração
Universal dos Direitos Humanos.
Mas já há casos exemplares. Como o da Itália, em que,
desde o ano 2000, todas as instituições escolares, mesmo aquelas que
anteriormente se integravam no «sistema escolar nacional», passaram legalmente
a gozar de autonomia organizativa, administrativa, científica e pedagógica,
obviamente no respeito das leis gerais democráticas. Essa autonomia, note-se
bem, inclui a autonomia didáctica e profissional dos professores. O Estado
deixou de ser Educador, para ser apenas Regulador das liberdades de educação,
sem as restringir, com a mesma isenção e distanciamento que usa na regulação
geral das demais liberdades.
Porque, na
verdade, é caso de interrogar: porque é que as liberdades fundamentais de
educação e ensino hão-de ser menos respeitadas pelo Estado do que outras iguais
liberdades fundamentais? Por exemplo: o Estado não se atreve a maltratar as
liberdades de opinião e expressão, em suma, as liberdades dos profissionais e
dos utentes, nos órgãos de comunicação
social públicos.
Mas de facto maltrata as liberdades de aprender e de ensinar, nas escolas públicas. Naqueles órgãos públicos de comunicação
social, as liberdades são respeitadas pelo Estado tanto como o Estado as
respeita nos órgãos de comunicação social privados. Mas não assim nas escolas públicas. Porquê, então, esta grande diferença, nas
escolas públicas, se todas as liberdades aí exercidas são liberdades
fundamentais de aprender e de ensinar, liberdades fundamentais inatas e
invioláveis das pessoas humanas iguais a todas as demais liberdades
fundamentais?
E não, nada
na Constituição o permite. Pelo
contrário: como já vimos, o art 43.º é expresso na proibição de o Estado programar a educação. E uma proibição igual a esta não
existe expressa na Constituição para
nenhuma outra liberdade fundamental.
E não, não
tem que ver com a protecção educativa das crianças, porque essa protecção pertence aos pais, e a Constituição diz expressamente,
no art. 68.º, que esse
direito-dever educativo dos pais é insubstituível pelo Estado, por estas claríssimas palavras: «Os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na
realização da sua insusbstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente
quanto à sua educação […]». «Insubstituível
acção, nomeadamente quanto à sua educação» — não é possível ser mais claro e mais veemente. E — note-se
bem — ao expressar esta proibição de substituição, uma
vez mais a Constituição é excepcional a proteger as liberdades
pessoais de educação e de ensino, porque uma protecção igual a esta também não
se encontra para outras liberdades. Coisa
paradoxal: onde constitucionalmente é mais directa e mais expressa a proibição
constitucional de intrusão estadual no exercício de liberdades fundamentais, é
onde essa intrusão é de facto maior e mais ideológica.
A intrusão do
Estado nas liberdades de aprender e de ensinar durante o ensino não superior
também não se justifica com o específico dever de um ensino básico. Este dever
não reduz as liberdades de aprender e de ensinar. Rigorosamente, é um dever que
deve ser cumprido no exercício das liberdades de aprender e de ensinar. A
função estadual de determinar legalmente os «conteúdos mínimos» do ensino
básico, ou elementar, termina aí. De acordo com o art. 18.º, «A
lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições
limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos». Mais ainda, diz
o número seguinte: «As leis restritivas de direitos liberdades
e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito
retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos
preceitos constitucionais». Ora
a Constituição não prevê nem justifica nenhum destes
requisitos para que as liberdades de aprender e de ensinar, nas escolas, possam
ser restringidas, no cumprimento do ensino básico obrigatório. Aliás se o
fizesse, seria em contradição com as proibições constitucionais que já vimos. Este
dever é de facto normalmente cumprido por toda a gente, salvo em raríssimas
excepções. E por isso nem há sanções legais previstas para o seu não
cumprimento. Mas, em princípio, se
este dever não for cumprido, restam as sanções correspondentes, sendo certo
que, mais do que isso, e tratando-se de exercício de direitos de personalidade,
«nemo potest praecise cogi ad
factum», isto é, ninguém pode ser coagido a praticar um determinado acto.
Fui ver, na
Internet, sobre a autonomia do ensino escolar, os programas dos partidos que
não defendem um socialismo de Estado, nem um Estado Educador, e encontrei o
seguinte.
O programa do
«Partido Social Democrata» defende expressamente que «…é necessário
reafirmar os valores da escola, como comunidade autónoma de transmissão de
conhecimentos, de saberes e de referências sociais […]».
No Programa do Partido
Político «Chega» está escrito assim: «O Chega
defende um modelo institucional de ensino profundamente renovado, assente no
reforço da dignidade e autoridade de educadores e professores…».
No programa do Partido
«Iniciativa Liberal» consta o seguinte: «Exigimos que o Estado permita um
maior envolvimento a todos os agentes de ensino, como os estudantes e os seus
pais, e não apenas os professores, e garanta mais autonomia às escolas».
Na mais recente Declaração de
Princípios do CDS-PP, proposta por um grupo de trabalho liderado por António
Lobo Xavier, encontra-se esta posição: «Não é o Estado que assegura aos indivíduos, em primeira linha, os
sentimentos de confiança, de segurança e de pertença a uma comunidade, e muito
menos deve ter o monopólio da formação e da realização pessoal, que suportam a
verdadeira liberdade fundada na responsabilidade. Para essa tarefa, o CDS conta
essencialmente com as pessoas e as suas organizações mais tradicionais ou mais
criativas, começando pelas famílias e continuando nas escolas…».
Ora bem, com
base nestes compromissos programáticos dos partidos não socialistas nem
centralistas, favoráveis à autonomia das escolas, públicas e privadas, autonomia que não prejudica os
direitos sociais de ninguém, é de esperar,
nesta conjuntura da maior crise de sempre na educação escolar, e em tempo de
campanha eleitoral, um anúncio público partidário muito vivo e muito
determinado de reforma das actuais políticas de educação, contra o Estado
Educador. Proposta reformista bem clara
e concreta, que permita aos cidadãos votar com maior informação e com
mais esperança na democracia pluralista e nos direitos humanos.
Aqui fica uma
expectativa independente, dirigida aos partidos, nesta campanha eleitoral, que
creio ser justa e oportuna.
EDUCAÇÃO ELEIÇÕES
LEGISLATIVAS POLÍTICA CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA PORTUGUESA PAÍS
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