domingo, 3 de dezembro de 2023

Pretexto

 

Para uma extrema saliência crítica, desta vez em zurzidela de sabedoria literata, que aprazem, como raridade… Mais uma vez PNS o pretexto.

Lineu, Vespasiano e Pedro Nuno Santos

Circunscritos às obras disponibilizadas pela biblioteca de Vítor Escária (auto-ajuda, folhetos do Lidl) acontece-lhes confundir talões de supermercado com sonetos e Tucídides com um reforço do Alverca

PAULO RAMOS Investigador no Centro de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e tradutor

OBSERVADOR02 dez. 2023, 00:1726

A súbita orfandade em que se viram após aquela inesperada demissão obrigou rebanhos de comentadores, engordados por oito anos de pastoreio de António Costa (em cujos expedientes teimam, ainda hoje, ver “sagacidade”, “brilhantismo” e “perspicácia”), à transumância de semelhantes, digamos, raciocínios para pasto mais fresco e, até ver, mais promissor – o novel terneiro que desponta no prado socialista, Pedro Nuno, primeiro de sua graça na linhagem do Rato. E, diante das atléticas inflexões que a queda do suserano impôs à juvenil starlette, é vê-los, em excitação espasmódica, a exaltar-lhe a “agilidade”, a “destreza” e, juro!, a “ponderação”: afiançam eles que a abjuração de quase tudo o que ainda há poucos meses a criatura asseverava (da localização do aeroporto, aos destinos da TAP passando pelo cumprimento deste novo orçamento) não denuncia, que disparate!, a emergência de um latente  contorcionismo vermicular que a inopinada queda do Governo pôs a nu, mas um conspícuo sinal da sua “maturidade” e “preparação”!

Circunscritos às obras disponibilizadas pela biblioteca de Vítor Escáriaauto-ajuda, folhetos do Lidl e cerca de 75.800 fascículos coloridos em edição esmerada do BCEacontece-lhes confundir talões de supermercado com sonetos e Tucídides com um reforço do Alverca. Frequentassem eles, por breves que fossem, uns quantos capítulos desse general e talvez tivessem percebido a tempo que, já nos idos de desmoronamento da democracia ateniense, um dos primeiros sintomas de crise se manifesta na deterioração do léxico quando a bajulação, por exemplo, ganha foros de lealdade e a conspiração ascende a peculiaríssima forma de esperteza. A sabujice destes tristes vassalos, contudo, é de tal modo espongiforme que nada de melhor lhes ocorre senão invocar a “verticalidade das convicções” do jovem infanção de S. João da Madeira – algo que deixaria Lineu à beira de uma apoplexia dado moluscos gastrópodes no filo chordata serem uma impossibilidade para a prodigiosa harmonia do reino animal.

Penso ser preferível, na verdade, ver nesta viscosidade larvar de Pedro Nuno uma particularíssima forma de reminiscência – aquela teoria platónica segundo a qual o conhecimento humano se reduz a uma simples recordação actual das ideias que a alma intuiu ou contemplou directamente numa existência anterior. No entanto, embora Platão pretendesse, com este mito da preexistência da alma, responder aos sofistas que afirmavam a inutilidade da investigação do que já se sabe e a impossibilidade de se conhecer aquilo de que nada se sabe ainda – a anamnese de Pedro Nuno transforma a inanidade em todo um programa político: subitamente exposta à incandescente e incómoda luz de um escrutínio e de uma eleição, é natural a sua alma já não conseguir reconstruir com fidelidade o caminho até ao mundo das ideias e ei-la a recordar-se, como se fosse hoje, dos lancinantes contornos do “radicalismo da direita” enquanto vê perderem-se no branco glaucoma do oblívio indemnizações milionárias apalavradas naquele grupo de whatsapp que ele havia reservado para a troca brejeirices e horários de padel.

Por entre trôpegas veredas de memórias difusas, o jovem infante aproveitara já esta última semana para protagonizar um dos mais emocionantes e libertadores coming out, da história política quando confessou – trémulo, compungido e timorato – que jamais fora esquerdista, mas antes um ferrenho social-democrata coagido desde a infância à clandestinidade e ao opróbrio: convicto da excelência da economia de mercado e da liberdade individual, do mérito, do trabalho e da salvaguarda da propriedade privada, recolhia pela manhã os lençóis sujos pelas poluições nocturnas provocados pelos sonhos com uma sociedade burguesa e consumista (Porsche, Defender, fatinhos de fino corte) e ia lavá-los, ainda o sol vinha por terras de Espanha, aos tanques comunitários da freguesia onde, por trás de uma pedra, ocultara o seu oratório em que ardia em lume perpétuo uma velinha diante da pagela de Hayek.

Um coração liberal treme só de imaginar o ror de festas familiares em que, fatia de broa numa mão e malga de verde na outra, foi obrigado a comer sardinhas com as mãos e a cantar A Internacional enquanto, de lábio trémulo e gorduroso, sonhava com as festas do Patiño, ou a vergonha que sentiu quando, num grupo de teatro infantil, lhe calhou uma deixa em que tinha de fazer voz grossa a banqueiros alemães, logo ele que, para o bacio, não conseguia senão verter duas ou três pingoletas, luzidias e nada viris, de urina. Comovida com o seu sofrimento, a Câmara sanjoanense organizou nesse mesmo dia uma marcha, com charanga e confetti, para celebrar o orgulho de mais uma alma que, após anos de silêncio e reclusão, pôde por fim assumir-se em público como verdadeiro social-democrata que sempre foi, cruzando, de cabeça erguida, as veredas da liberdade.

Na Roma Antiga, o mijo das latrinas públicas era um bem apetecível: cobiçado por curtidores de peles e por lavadeiros, o Estado encontrou aí uma infalível fonte de receitas, ao ponto de Vespasiano – uma espécie de socialista do Palatino – ter taxado o precioso líquido, obrigando todos aqueles artesãos a pagar principescamente pela urina pública. Quando Tito, o seu filho, lhe censurou a ganância, Vespasiano, esfregando-lhe no nariz uma moeda de ouro que recebera daquele novo imposto, perguntou-lhe se cheirava mal.

Como bom socialista, Pedro Nuno sabe que o capital não tem bandeira e, mesmo que vindo das latrinas, também não tem cheiro.

PS     POLÍTICA     PEDRO NUNO SANTOS

COMENTÁRIOS (de 26):

António Lamas

É sempre com duplo prazer que leio a opinião de Paulo Ramos. Por um lado, o prazer da leitura de uma escrita fabulosa, recuperando a língua portuguesa em todo o seu esplendor, aliada a um humor corrosivo impagável.  Por outro lado o gozo antecipado de saber que os analfabetos a que se dirigem os textos não o percebem.                 Maria Tubucci: Está sublime, Sr.PR. O PNS será sempre um eterno bezerro da manada com linhagem do Rato (gostei deste termo), irá sempre querer mamar em alguém, se não for nos portugueses será no progenitor. Para ele os fins justificarão sempre os meios, significa que a sua ética é imprópria para comandar um país.                João Floriano: Excelente! PNS excede todos os limites do bom senso quando após uma defesa entusiástica dos anos da geringonça e o apontar para  outra futura, vem dizer que é social-democrata convicto e ainda por cima é um social-democrata moderno. A acompanhá-lo as comadres Assis e Beleza e as vestais já nossas conhecidas conduzidas por Alexandra Leitão. A falta de vergonha tem limites, o ridículo parece que não. A crónica de hoje é um desfile delirante de imagens que só nos podem fazer rir e muito: os folhetos do Lidl misturados com a correspondência oficial de António Costa sobre a secretária de Escária, PNS lavando envergonhado os seus lençóis após mais um incontrolável sonho molhado. E ainda bem que os lençóis da sua cama de social democrata moderno ficavam apenas maculados de esperma com os cabeçudinhos frustrados e perdidos na flanela, em vez de fazer chichi no pijama. Desta vez não será Dura lex sed lex mas Dura Veritas sed Veritas. O choque com  a realidade já está  a conduzir PNS para caminhos mais moderados.  O dinheiro dos repugnantes como Vespasiano, cheira mal, mas é tão necessário para manter o circo a funcionar e distribuir pão pelas clientelas , que PNS tem pela frente um equilíbrio periclitante entre a sua social democracia moderna e o apoio dos parceiros da  geringonça moderna mais desconfiados agora do que em 2015. As mentiras têm as perna curtas e PNS mente descaradamente ao afirmar-se social-democrata moderno e colar rótulos de radicalismo à oposição.            Eduardo Fernandes: Uma delícia ler esta prosa! Desconfio que o Pedro N Santos tenha capacidade para a compreender!  Já Montenegro, a quem reconheço capacidade para a erudição da peça, deveria extrair um par de ideias. Crónica sublime quando faz uso da Filosofia e da História. Ao nível dos comentários do ilustre Cipião Numantino.                       bento guerra: Impagável este Paulo! O monstro rochoso que é o PS, pariu qual parideira da Freira, este jovem tribuno, que nem tem nada a ver com o pântano actual, conforme atestado pelo dr Beleza e o impoluto Assis                   Coxinho: Considero importantíssima a presença de Paulo Ramos entre os colaboradores do Observador, nesta fase crítica em que a Língua Portuguesa vem sofrendo o desrespeito e maus tratos de uma boa parte desses mesmos colaboradores.                      antónio carvalho: Hossana! Hossana! Haja alguém que não deixa cair no esquecimento o recém nascido Estadista Pedro. Sim, este hino de glorificação ao personagem Pedro  será como que o Registo Criminal a atestar a qualidade dos voos  que o Pedro se propõe realizar. Eu aplaudo.                    Jose Miguel Pereira: O apóstolo Pedro negou a Cristo por três vezes. Parece-me que este Pedro negará bastantes mais vezes o seu socialismo.                Coxinho: Temos de exaltar o nível excepcional da prosa e do sentido de humor do autor. E não podemos deixar de salientar a importância da sua presença entre os colaboradores do Observador, nesta fase crítica em que a Língua Portuguesa vem sofrendo o desrespeito e maus tratos de uma boa parte desses mesmos colaboradores.               JOHN MARTINS: Ninguém se engane. Acabamos de ler a mais sofisticada leitura do candidato, Santos, novo cristão social-democrata, depois da derrocada e queda do líder do marxismo ignorante, na república das bananas do Algarve.Se até agora ouviamos falar em virar a página, de livros cheios de notas coloridas à vontade do freguês, na livraria de S. Bento da porta aberta; o que seria se acordássemos, dia, 11 de Março, com o Santos, de punho no ar a dizer: Finalmente, aeroporto, comboios em folha, alta velocidade, casas para todos, dívida pública paga, TAP agora dá lucro, fica, continuamos o legado do camarada Costa, com a geringonça comunista... Lourenço de Almeida: Fabuloso! Os outros comentadores já disseram tudo o que eu penso sobre este artigo, mas parabéns e agradecimentos nunca são demais por isso aqui deixo os meus!                Seknevasse: Sugiro que este artigo entre para o programa de Português do 10º ano de escolaridade, com carácter obrigatório. Anda por lá muito pior...                     Kakuri Kanna: Mais um escrito de rir até às lágrimas, sobre a figura que exalta as gaspeadeiras, como se fosse uma delas, com um estilo literário ímpar que vai desde a classificação do naturalista sueco Lineu seguindo para a Grécia antiga do general e historiador Tucídides e Roma de Vespasiano com muito propósito. Simplificar a escrita poderá ser o caminho, mas a simplificação da política nunca o será, como assinante e leitor, noto alterações no Observador há cerca de muito poucos meses e parece ser progressiva.

 

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