Para uma extrema saliência crítica, desta vez em zurzidela de sabedoria literata, que aprazem, como raridade… Mais uma vez PNS o pretexto.
Lineu, Vespasiano e Pedro Nuno Santos
Circunscritos às obras
disponibilizadas pela biblioteca de Vítor Escária (auto-ajuda, folhetos do
Lidl) acontece-lhes confundir talões de supermercado com sonetos e Tucídides
com um reforço do Alverca
PAULO RAMOS Investigador no Centro de Estudos Clássicos
da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e tradutor
OBSERVADOR02 dez. 2023, 00:1726
A súbita orfandade em que se viram após
aquela inesperada demissão obrigou rebanhos de comentadores, engordados por
oito anos de pastoreio de António Costa (em cujos expedientes teimam, ainda
hoje, ver “sagacidade”, “brilhantismo” e “perspicácia”), à transumância de
semelhantes, digamos, raciocínios para pasto mais fresco e, até ver, mais
promissor – o novel terneiro que desponta no prado socialista, Pedro Nuno,
primeiro de sua graça na linhagem do Rato. E, diante das atléticas inflexões
que a queda do suserano impôs à juvenil starlette, é vê-los, em
excitação espasmódica, a exaltar-lhe a “agilidade”, a “destreza” e, juro!, a
“ponderação”: afiançam eles que a abjuração de quase tudo o que ainda há poucos
meses a criatura asseverava (da
localização do aeroporto, aos destinos da TAP passando pelo cumprimento deste
novo orçamento) não denuncia, que disparate!, a emergência de um
latente contorcionismo vermicular que a inopinada queda do Governo pôs a
nu, mas um conspícuo sinal da sua “maturidade” e “preparação”!
Circunscritos às obras
disponibilizadas pela biblioteca de Vítor Escária – auto-ajuda, folhetos do Lidl e cerca de
75.800 fascículos coloridos em edição esmerada do BCE – acontece-lhes
confundir talões de supermercado com sonetos e Tucídides com um reforço do Alverca. Frequentassem eles, por breves que fossem,
uns quantos capítulos desse general e talvez tivessem percebido a tempo que, já
nos idos de desmoronamento da democracia ateniense, um dos primeiros sintomas
de crise se manifesta na deterioração do léxico – quando a bajulação, por exemplo,
ganha foros de lealdade e a conspiração ascende a
peculiaríssima forma de esperteza. A sabujice destes tristes vassalos,
contudo, é de tal modo espongiforme que nada de melhor lhes ocorre senão
invocar a “verticalidade das convicções” do jovem infanção de S. João da
Madeira – algo que deixaria Lineu à beira de uma apoplexia dado moluscos
gastrópodes no filo chordata serem uma impossibilidade para a
prodigiosa harmonia do reino animal.
Penso ser preferível, na verdade, ver nesta
viscosidade larvar de Pedro Nuno uma particularíssima forma de reminiscência – aquela
teoria platónica segundo a qual o conhecimento humano se reduz a uma simples
recordação actual das ideias que a alma intuiu ou contemplou directamente numa
existência anterior. No entanto, embora
Platão pretendesse, com este mito da preexistência da alma, responder aos
sofistas – que afirmavam a
inutilidade da investigação do que já se sabe e a impossibilidade de se
conhecer aquilo de que nada se sabe ainda – a anamnese de Pedro Nuno
transforma a inanidade em todo um programa político: subitamente exposta à
incandescente e incómoda luz de um escrutínio e de uma eleição, é natural a sua
alma já não conseguir reconstruir com fidelidade o caminho até ao mundo das
ideias e ei-la a recordar-se, como se fosse hoje, dos lancinantes contornos do
“radicalismo da direita” enquanto vê perderem-se no branco glaucoma do oblívio
indemnizações milionárias apalavradas naquele grupo de whatsapp que ele havia
reservado para a troca brejeirices e horários de padel.
Por entre trôpegas veredas de
memórias difusas, o jovem
infante aproveitara já esta última semana para protagonizar um dos mais
emocionantes e libertadores coming out, da história política quando
confessou – trémulo, compungido e timorato – que jamais fora esquerdista, mas
antes um ferrenho social-democrata coagido desde a infância à clandestinidade e
ao opróbrio: convicto da excelência da economia de mercado e da liberdade
individual, do mérito, do trabalho e da salvaguarda da propriedade privada,
recolhia pela manhã os lençóis sujos
pelas poluições nocturnas provocados pelos sonhos com uma sociedade burguesa e
consumista (Porsche, Defender, fatinhos de fino corte) e ia lavá-los, ainda o
sol vinha por terras de Espanha, aos tanques comunitários da freguesia onde,
por trás de uma pedra, ocultara o seu oratório em que ardia em lume perpétuo
uma velinha diante da pagela de Hayek.
Um coração liberal treme só de imaginar
o ror de festas familiares em que, fatia de broa numa mão e malga de verde na
outra, foi obrigado a comer sardinhas com as mãos e a cantar A
Internacional enquanto, de lábio trémulo e gorduroso, sonhava com as
festas do Patiño, ou a vergonha que sentiu quando, num grupo de teatro
infantil, lhe calhou uma deixa em que tinha de fazer voz grossa a banqueiros
alemães, logo ele que, para o bacio, não conseguia senão verter duas ou três
pingoletas, luzidias e nada viris, de urina. Comovida com o seu sofrimento, a
Câmara sanjoanense organizou nesse mesmo dia uma marcha, com charanga e
confetti, para celebrar o orgulho de mais uma alma que, após anos de silêncio e
reclusão, pôde por fim assumir-se em
público como verdadeiro social-democrata que sempre foi, cruzando, de cabeça
erguida, as veredas da liberdade.
Na
Roma Antiga, o mijo das latrinas públicas era um bem apetecível: cobiçado por
curtidores de peles e por lavadeiros, o Estado encontrou aí uma infalível fonte
de receitas, ao ponto de Vespasiano – uma espécie de socialista do Palatino –
ter taxado o precioso líquido, obrigando todos aqueles artesãos a pagar
principescamente pela urina pública. Quando Tito, o seu filho, lhe censurou a
ganância, Vespasiano, esfregando-lhe no nariz uma moeda de ouro que recebera
daquele novo imposto, perguntou-lhe se cheirava mal.
Como bom socialista, Pedro Nuno sabe que
o capital não tem bandeira e, mesmo que vindo das latrinas, também não tem
cheiro.
COMENTÁRIOS (de 26):
António Lamas
É sempre com duplo prazer que leio a opinião de Paulo
Ramos. Por um lado, o prazer da leitura de uma escrita fabulosa,
recuperando a língua portuguesa em todo o seu esplendor, aliada a um humor
corrosivo impagável. Por outro lado o gozo antecipado de saber que os
analfabetos a que se dirigem os textos não o percebem. Maria
Tubucci: Está sublime, Sr.PR. O PNS será sempre um eterno bezerro da manada com linhagem do Rato (gostei
deste termo), irá sempre querer mamar em alguém, se não for nos portugueses
será no progenitor. Para ele os fins justificarão sempre os meios, significa
que a sua ética é imprópria para comandar um país. João Floriano: Excelente! PNS excede todos os
limites do bom senso quando após uma defesa entusiástica dos anos da geringonça
e o apontar para outra futura, vem dizer que é social-democrata convicto
e ainda por cima é um social-democrata moderno. A acompanhá-lo as comadres
Assis e Beleza e as vestais já nossas conhecidas conduzidas por Alexandra
Leitão. A falta de vergonha tem limites, o ridículo parece que não. A crónica
de hoje é um desfile delirante de imagens que só nos podem fazer rir e muito:
os folhetos do Lidl misturados com a correspondência oficial de António Costa
sobre a secretária de Escária, PNS lavando envergonhado os seus lençóis após
mais um incontrolável sonho molhado. E ainda bem que os lençóis da sua cama de
social democrata moderno ficavam apenas maculados de esperma com os
cabeçudinhos frustrados e perdidos na flanela, em vez de fazer chichi no
pijama. Desta vez não será Dura lex sed lex mas Dura Veritas sed Veritas. O
choque com a realidade já está a conduzir PNS para caminhos mais
moderados. O dinheiro dos repugnantes como Vespasiano, cheira mal, mas é
tão necessário para manter o circo a funcionar e distribuir pão pelas
clientelas , que PNS tem pela frente um equilíbrio periclitante entre a sua
social democracia moderna e o apoio dos parceiros da geringonça moderna
mais desconfiados agora do que em 2015. As mentiras têm as perna curtas e PNS
mente descaradamente ao afirmar-se social-democrata moderno e colar rótulos de
radicalismo à oposição. Eduardo Fernandes: Uma delícia ler esta prosa!
Desconfio que o Pedro N Santos tenha capacidade para a compreender! Já
Montenegro, a quem reconheço capacidade para a erudição da peça, deveria
extrair um par de ideias. Crónica sublime quando faz uso da Filosofia e da
História. Ao nível dos comentários do ilustre Cipião Numantino. bento
guerra: Impagável este Paulo! O monstro
rochoso que é o PS, pariu qual parideira da Freira, este jovem tribuno, que nem
tem nada a ver com o pântano actual, conforme atestado pelo dr Beleza e o
impoluto Assis Coxinho: Considero importantíssima a
presença de Paulo Ramos entre os colaboradores do Observador, nesta fase
crítica em que a Língua Portuguesa vem sofrendo o desrespeito e maus tratos de
uma boa parte desses mesmos colaboradores. antónio
carvalho: Hossana! Hossana! Haja alguém que não deixa cair no esquecimento o recém
nascido Estadista Pedro. Sim, este hino de glorificação ao personagem
Pedro será como que o Registo Criminal a atestar a qualidade dos
voos que o Pedro se propõe realizar. Eu aplaudo. Jose
Miguel Pereira: O apóstolo Pedro negou a Cristo por três vezes. Parece-me que este Pedro
negará bastantes mais vezes o seu socialismo. Coxinho: Temos de exaltar o nível
excepcional da prosa e do sentido de humor do autor. E não podemos deixar de
salientar a importância da sua presença entre os colaboradores do Observador,
nesta fase crítica em que a Língua Portuguesa vem sofrendo o desrespeito e maus
tratos de uma boa parte desses mesmos colaboradores. JOHN
MARTINS: Ninguém se engane. Acabamos de ler a mais sofisticada leitura do candidato,
Santos, novo cristão social-democrata, depois da derrocada e queda do líder do
marxismo ignorante, na república das bananas do Algarve.Se até agora ouviamos
falar em virar a página, de livros cheios de notas coloridas à vontade do
freguês, na livraria de S. Bento da porta aberta; o que seria se acordássemos,
dia, 11 de Março, com o Santos, de punho no ar a dizer: Finalmente, aeroporto,
comboios em folha, alta velocidade, casas para todos, dívida pública paga, TAP
agora dá lucro, fica, continuamos o legado do camarada Costa, com a geringonça
comunista... Lourenço de Almeida: Fabuloso! Os outros comentadores já disseram tudo o
que eu penso sobre este artigo, mas parabéns e agradecimentos nunca são demais
por isso aqui deixo os meus!
Seknevasse: Sugiro que este artigo entre para o programa de
Português do 10º ano de escolaridade, com carácter obrigatório. Anda por lá muito pior... Kakuri Kanna: Mais um escrito de rir até às
lágrimas, sobre a figura que exalta as gaspeadeiras, como se fosse uma delas,
com um estilo literário ímpar que vai desde a classificação do naturalista
sueco Lineu seguindo para a Grécia antiga do general e historiador Tucídides e
Roma de Vespasiano com muito propósito. Simplificar a escrita poderá ser o
caminho, mas a simplificação da política nunca o será, como assinante e leitor,
noto alterações no Observador há cerca de muito poucos meses e parece ser
progressiva.
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