terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Têm a ver


Os populismos de hoje - dos tempos do Rousseau, também, mas era coisa mais do seu foro pessoal, sensível, que se expandiu, contudo, a ponto de descambar em revolução e crime, lá pela França, onde o povo realmente ordenou, ao contrário daqui, onde são os novos, do palrar facundo, que são levados em rajada piedosa a defender teorias que lhes chegam por várias vias de rápida aquisição, sem necessidade de muito esforço de leitura – nem de empunhamento de armas, felizmente, - para defenderem as nobres causas da sua conveniência, quantas vezes ela própria de intimidade sentimental escondida sob a longa sigla das suas devoções populistas – egotistas também, não queiramos ser mais papistas que o papa antigo, já que o actual se revela também bondosamente populista no sentimento da aceitação multilateral, sintoma de um mundo alargado em conceito, sem preconceito ultrapassado. Por aqui, essa coisa do “povo é quem mais ordena”, do nosso altruísmo populista, serve apenas para destacar mais os próprios que o cantam, sujeitos da enunciação, não o do enunciado, o tal povo valorizador, isso sim, dos que virtuosaente o projectam.

Mas leiamos antes o estudo histórico dos factos, estudo verdadeiramente sapiente e brilhante, como é apanágio deste nosso HISTORIADOR – “bem real” (eu diria mesmo “régio”, no seu saber e clareza corajosa) - JAIME NOGUEIRA PINTO:

Populismo: uma doença crónica da velhice democrática?

A ideia de que o populismo é uma “gripezita” das sociedades políticas ocidentais, que as respectivas classes políticas poderão corrigir e superar desde que se decidam a fazê-lo, é um equívoco.

JAIME NOGUEIRA PINTO Colunista do Observador

OBSERVADOR, 16 dez. 2023, 00:1830

O 25 de Abril, que vai fazer cinquenta anos no ano que vem, tinha como metas programáticas três Dês – Democratizar, Descolonizar, Desenvolver. A Democratização está aí e, entre escândalos de gabinete e cunhas malparadas, recomenda-se; a Descolonização deverá agora ser avaliada mais pelos descolonizados do que pelos descolonizadores; quanto ao Desenvolvimento, um bom princípio é olhar para a economia portuguesa de há meio século e para o seu lugar relativo entre as outras economias europeias do tempo e ver onde agora estamos. O livro de Nuno Palma sobre As causas do atraso português é um bom guia para o exercício.

Os quatro Dês

Mas agora há outros Dês, os quatro Dês que Roger Eatwell e Matthew Goodwin identificaram em 2019 em Populismo: A revolta contra a democracia liberal e que correspondem às quatro causas ou às quatro “alterações sociais” que estão na base da viragem dos eleitores euro-americanos para o nacional-populismo. São eles a Desconfiança, a Destruição, o Despojamento e o Desalinhamento. Assim apresentados parecem não dizer muito; há, por isso que especificá-los, seguindo os autores.

Por Desconfiança, Eatwell e Goodwin entendem a atitude de muitos eleitores perante “a natureza elitista da democracia liberal”. As classes políticas tradicionais dos Estados Unidos e da União Europeia afastaram-se de grande parte dos eleitores, encerrando-se numa bolha de interesses e representações do mundo alheia às preocupações dos seus representados. Parecem querer coisas que os representados não querem, ou querê-las de um modo que os eleitores não entendem. Por isso, os representados desconfiam dos representantes.

A Destruição prende-se, para os autores, com os ataques às comunidades nacionais, às suas identidades étnico-históricas, aos seus modos de vida. Em muitos países a imigração descontrolada é sentida como uma ameaça pelas comunidades nacionais, perante a indiferença dos políticos do sistema, movidos por interesses económicos sectoriais e excessivamente confiantes na sabedoria dos mercado, o que leva os nacionais a buscar alternativas.

O Despojamento seria também o resultado destas políticas, com determinados grupos, como os trabalhadores industriais, privados dos seus empregos tradicionais e a viverem pior – um retrocesso que, em sociedades habituadas à ideia de progresso geracional (a esperança de que os filhos vivam melhor que os pais) resulta num choque profundo.

Finalmente, e como consequência dos três fenómenos, o último Dê: o Desalinhamento das massas populares em relação aos partidos tradicionais, tidos como incapazes de perceber a realidade e as suas mudanças.

O livro é de 2019 e desde então acentuaram-se estas tendências, embora, em alguns casos, a chegada ao poder de líderes anti-sistémicos, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, não tenha depois sido reconfirmada nas urnas. Também na Polónia, os nacionais populistas perderam agora o poder.

Mas ainda que a variante nacional-populista tenha perdido a chefia do Estado nas duas grandes nações americanas, os Estados Unidos da América e o Brasil, continua a ser a variante mais importante e poderosa das famílias populistas, de direita ou de esquerda.

Não é difícil perceber o porquê deste progresso: num mundo que se pretende governado por ideais de globalismo, a nação e o nacionalismo são a última protecção das massas populares e da classe média. As esquerdas militantes, nas suas novas devoções identitárias, abandonaram as classes trabalhadoras e os seus interesses por todo um outro folclore reivindicativo. Do mesmo modo, as elites europeias e a burocracia de Bruxelas, que procuram avançar sempre na integração federalizante, veem com receio a subida eleitoral destes movimentos “populistas”, a que procuram colar, com alguma dificuldade, a etiqueta anti-democrática. De um modo geral, quer a Esquerda, quer a “direita liberal” têm procurado arrumar o populismo nascente ou na prateleira das doenças fatais, na secção do fascismo ou até do nazismo, ou na das doenças maçadoras, na secção dos movimentos primitivos, acéfalos, básicos, oportunistas, sem dignidade ideológica – mas passageiros.

Populismo, cesarismo, democracia

Será assim? Uma das dificuldades de caracterização do populismo é que, à força de o termo ser usado em sentido pejorativo pelos seus inimigos e por uma comunidade mediática dominante, aqueles que poderiam, legitimamente, endossar o qualificativo não se afirmam como tal. Um termo assim usado, sem qualquer critério ou intenção que não seja o labelo insultuoso e pejorativo, não é fácil de definir, já que os populistas, de esquerda ou de direita, não se podem reconhecer nele. Podemos recorrer às caracterizações históricas, identificando populismos, por exemplo, na América Latina dos anos 30, 40 e 50 do século passado, com caudilhos como Getúlio Vargas, no Brasil, ou Juan Domingo Perón, na Argentina. Mas até que ponto é que o fascismo italiano não apresenta também aspectos de caudilhismo popular, com o culto de personalidade de Mussolini? E se o populismo está num endeusamento de um “chefe” capaz de interpretar mais e melhor que ninguém os sentimentos e vontades do povo soberano, do verdadeiro povo, a doutrina nacional-socialista do Führer Prinzip, do chefe como intérprete vivo e permanente da comunidade, também poderá qualificar-se como populismo. Bem como a doutrina comunista da “vanguarda esclarecida”, como supremo intérprete e guia do proletariado.

Sem dúvida que haverá no populismo reminiscências dos cesarismos, como quebra da ordem e das magistraturas da República romana, vistas como perturbadoras da autenticidade e da verdade da comunidade. Na ultrapassagem dos quadros médios e sua mediação, o populismo acaba por ser um cesarismo, um mono-arquismo, que pode verificar-se em regimes muito diversos: Luís XIV, Rei Absoluto, encarnava o Estado para o povo francês; como Robespierre, nos meses do Terror, ou Bonaparte depois de Austerlitz. Se Hitler e o nacional-socialismo foram formas de cesarismo popular, então também o foi Estaline, que representava o povo russo, ultrapassando e subordinando, pelo carisma e pelo Terror, as estruturas do Partido Comunista – o Comité Central e o Bureau Político. Assim, o populismo estende-se para lá das ideologias ou pode coexistir com quase todas as ideologias, com exclusão de um conservadorismo ou liberalismo aristocráticos à Chateaubriand ou à Tocqueville, desconfiado dos chefes e das massas. Se Getúlio e Perón foram caudilhos populistas, que dizer de Castro e de Chávez, apesar da cientologia marxista? Patrice Lumumba, Samora Machel, Jonas Savimbi, foram populistas africanos. E Nasser foi o populista da Renascença árabe.

Mas o princípio mono-árquico casava-se com a representação popular sem a mediação do voto, o que não acontece agora.

O populismo, sobretudo o nacional-populismo, tem a vantagem de conciliar uma realidade politicamente determinante na modernidade – a comunidade nacional – com a base de legitimidade euroamericana da soberania popular. Tem também a vantagem de arrumar e neutralizar como “oligarquias” as classes altas mediadoras, os “notáveis” do dinheiro, da sociedade, da política, da cultura.

Será o populismo uma doença crónica da velhice democrática? Será que a dificuldade de impedir o mimetismo globalizante das classes políticas das democracias liberais, a sua funcionalização de interesses, a sua dependência da cultura e da narrativa dominantes, não as condenaram a chamar e a sofrer a reacção populista?

A ideia de que o populismo é uma reacção circunstancial, uma “gripezita” das sociedades políticas ocidentais, que as respectivas classes políticas poderão corrigir e superar desde que se decidam a fazê-lo, é um equívoco. O chamado “momento populista” corresponde a um fenómeno de fundo de reacção a situações que se tornaram insuportáveis para largas franjas da população das sociedades euroamericanas. Os quatro Dês de Roger Eatwell e Matthew Goodwin pretendem catalogar e definir essas causas, mas na reacção, os movimentos chamados populistas estão a reencontrar valores republicanos que nada têm que ver com o discurso político dominante.

São valores de nação, mais do que quaisquer outros; mas também de realismo político perante as ideologias da nova esquerda ligadas aos pânicos climáticos, à manipulação e abstração do género, às práticas inquisitoriais e intimidatórias que promovem e protegem novas e particularmente delirantes utopias.

Todas as grandes correntes ideológicas nasceram da negação do status quo; numa primeira fase como antítese, depois buscando sínteses. A política e as ideias políticas são reactivas: o liberalismo reagiu ao Ancien Régime; o marxismo e o marxismo-leninismo reagiram ao capitalismo; o nacionalismo social procurou unir a nação e os seus valores à justiça no trabalho e ao solidarismo das classes. O populismo ou o neo-populismo nacional começou por ser uma reacção, mas embora já paire de outra forma sobre a Europa, os seus líderes ainda encarnam a negação das oligarquias dominantes.

O avanço dessa reacção, a revisão histórica e política que vai trazer, acabará, no exercício da negação, por redescobrir e renovar as bases e a essência dos valores de afirmação, os valores estruturantes das sociedades euro-americanas. Nem de outro modo poderia ser.

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COMENTÁRIOS (de 30)

klaus muller: JNP tem toda a razão no que escreve neste seu artigo. Mas não devemos fugir à questão principal relativamente à origem de movimentos populistas na Europa: a imigração muçulmana. Eu não posso admitir que se bloqueie uma rua de Lisboa porque, não cabendo todos numa mesquita, os muçulmanos resolvem vir para a rua e não deixam passar ninguém.              Carlos Real: Como sempre uma análise inteligente e bem fundamentada. Eu sou talvez um bom exemplo de eleitor populista. Nunca me identifiquei cegamente por nenhum partido, e tendo vivido o PREC nunca militei em nenhum. Tive amigos importantes, mesmo de casa, como o Cansado Gonçalves, afastado por Cunhal por ser trotskista, pessoas dirigentes desde o MRPP até ao PRD do Eanes. Sou um liberal com consciência social e por isso a social-democracia nórdica é a minha matriz. Sou um ateu profundo, e recomendo vivamente para todos, a leitura do Segredo de Espinosa do José Rodrigo dos Santos. Vou votar Chega porque estou farto dos políticos do sistema. Mentem com todos os dentes. Veja-se o descaramento do Montenegro. Depois de meses sem saber como se relacionar com o Chega, agora diz que NAO e não. Depois do que fez nos Açores e na Madeira todos sabemos que se precisar dos deputados do Chega, a justificação mentirosa vai sair imediatamente. Só querem o poder. É confrangedor assistir a Marta Temido que não indica uma única medida na área da saúde, e tentar desviar a discussão para outros temas (ver o último Expresso da Meia Noite na SIC). Estou farto de uma União Europeia que não tem vergonha nem princípios. As negociatas com o feirante Orban são o último exemplo. Estou enojado com o wokismo, em que a censura intelectual e de costumes é muito preocupante. Agora na publicidade é preciso colocar o negro, o gay, qualquer dia o trans e o béu béu. Estou cansado de ver gente como o Goucha, ou o Ricardo Araújo Pereira defenderem tanto os amigos da Ana Gomes, mas eu convidaria a fazerem a experiência de receber gente comum por 24 horas nas suas casas. Eu que vivo numa aldeia alentejana, sei que salvo raras excepções são pessoas anti-sociais que poluem a atmosfera. Por tudo isto sou um pré-histórico analfabeto, que não conhece o mundo, e deseja ardentemente a miséria económica e social do salazarismo.             klaus muller > Lúcio Monteiro: Oh Lúcio, eu não te critico por seres um esquerdalho desclassificado; critico-te por fingires ser aquilo que nós somos, ie, democratas.                      vitor Manuel: Portugal precisa urgentemente de J.N.P. e de outros como ele. Não é possível que a criminosa canalha instalada consiga os objectivos de destruição por si programados, desde há quase meio século.                Maria Augusta Martins: As repúblicas populares de babuínos que se seguiram á descolonização estão aí para se saber quem os coloniza agora. Pois com tanta democracia as populações fogem dos babuínos que os governam.                    Jose Marques > Lúcio Monteiro: Ó Luci(o)fer, quem é que te julgas para sequer te atreveres a comentar a vasta cultura histórico/filosófica derramada semanalmente nas crónicas de Jaime Nogueira Pinto? Remete-te à tua dimensão de metralha esquerdopata e compulsivo e.. já agora, dá de frosques que é tempo de advento!                Meio Vazio: Excelente lição.                João Ramos: Aquilo a que por cá chamam de populismo não passa de uma sã reacção à incúria e à falta de « espinha dorsal » das políticas maioritariamente de esquerda que nos têm (des)governado e nos têm imposto este « plano inclinado » em que Portugal se tem afundado!                     vitor Manuel > Lúcio Monteiro: Correcto, embora os portugueses a quem foram prometidos médicos de família pelo "não populista" que mesmo  perdendo as eleições acabou por manter o emprego não concordem assim tanto...                     Tim do Á: Muito esclarecedor e transparente. Clarinho como água. Parabéns por mais um artigo a reler. Maria Nunes: Excelente, como sempre.                AGOSTINHO MACEDO >  Carlos Real: Excelente texto, Parabéns! Também vou votar Chega. Até dia 10 de Março.                 José B. Dias: Mais claro seria difícil e só não entende quem não o quiser ...            Antonio Berberan: Eu alinho mais numa definição mais prosaica de populismo que observei aplicada por António Costa sem quaisquer escrúpulos, em grande profundidade e com maior sucesso: chega ao poder quem ganha as eleições, ou seja, quem tem mais votos (mesmo que se tenha que geringonçar). Portanto só há é que dirigir-se e prometer benesses à maioria da população para conquistar os votos que levam ao poder. Quanto mais dependente de subsídios (ou seja, quanto maior a pobreza) e menos letrada (ou seja, ensino a não funcionar seja por facilitismo ou por falta de professores) for essa maioria, tanto melhor. O populismo de Costa é muito mais eficaz que o de Marcelo ou do Bloco de Esquerda.

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