Uma história bem
contada, pelo menos na aparência de um saber linguístico e de uma efabulação
saborosa, evocadora de mitos e costumes sumidos nos tempos e trazidos à baila
por um amante afectuoso desses povos a que pertenceu, ou seja, Mia Couto, o autor do livro em
referência – “O Último Voo do Flamingo” - e a que talvez pertença ainda, por opção de amor - nos acasos de uma
história pátria sua que, se não a aprovou – conquanto tivesse sido uma história
de heróis, dificilmente imitáveis, e daí que admiráveis, não só pela coragem
mas pelos condicionalismos de representantes de um país estreito e pobre – em
todo o caso, um destino superior fez que o escritor nela participasse, de
menino - de nascituro - como descendente de familiares que não tiveram tantos
escrúpulos na ocupação desse espaço – ocupação menos dificultosa, todavia, que
a dos navegantes condenáveis das naus primeiras, num passado quatrocentista e
posterior - semeadores, contudo, de amplitude de conhecimentos e de visão de
espaços, onde em breve outros povos maiores se imporiam, até criarem os seus
próprios países, sem tantos escrúpulos de ocupação independentista - como de
resto, tal fora sempre feito, através das histórias verdadeiras de todos os
tempos errantes das Histórias nacionais – fossem eles povos vikings, vândalos,
celtas, suevos, godos, preenchendo-os na sua errância, que os romanos
conquistaram também pela força e a sua cultura, impondo a sua língua em tantos
deles, ponto de partida para os seus derivados de linguagem novilatina, no caso
românico, que é o nosso também, ao que se diz. A essa pátria
moçambicana Mia Couto se habituou, apreciou e participou – participa
ainda, ao que parece - com carinhoso sentido de afinidade conterrânea, como, de
resto nos apercebemos ao longo das leituras dos seus livros, que traduzem o seu
afecto pelos naturais, nos seus mitos e costumes, para além da desmistificação
linguística, pejada de anomalias perpetradas pelos próprios naturais - ora de
um abastardamento específico dos não naturais da língua, ora de um saber
erudito e elegante, de causar estranheza - iniciada a narrativa, com a irónica
embrulhada em torno de um pénis - “um sexo avulso e avultado” de
atribuição desconhecida, até ser encontrado o boné de um dos soldados, assim
identificado, das Nações Unidas, ali chegados após a independência da
ex-colónia portuguesa.
Tão espectacular
recriação linguística, de chocarreiro artifício simultaneamente causador de
admiração, quando praticado pelos naturais – ora de terminologia tosca carregada
de trocadilhos de trapaça linguística, ora de uma nobreza de expressão
artificial e pedante, quando colocada na boca de naturais desse Moçambique que
portugueses enriqueceram linguisticamente – julgo que também culturalmente -
mas não, naturalmente, ao ponto de dilatarem tão excelsamente a linguagem
erudita, usada por Mia Couto, em pedantismo de deturpação, quando posta na fala
dos seus naturais, de que é exemplo o pai do narrador - aliás, a sua alma, em poética efabulação de mito - de saber e sabor trocista, misturando a língua
erudita e a da deturpação tribal, admirável, contudo, pelo que traduz de
domínio perfeito da língua assim abastardada com saber e troça pelo
escritor Mia Couto.
De facto, sempre a língua literária acompanharia a linguagem oral – (não, é claro, logo após a invenção da escrita, utilizada esta primariamente com fins pragmáticos) – mas, ao cultivar-se, impondo-lhe os requintes próprios de uma elaboração mais cuidada, que não só a leitura de obras desde os clássicos primeiros a Ocidente, ajudaria a fabricar, mas a sua elaboração resultando de um tempo de fabrico de maior amplitude, permitindo reflexão mais pausada do que a da expressão oral. Se a oralidade é muitas vezes motivo de ironia - seja nos preciosismos retóricos que Molière e bem assim Marivaux, souberam imortalizar, e o nosso Prémio Nobel da Literatura, na narração da sua fluência temporal, atropela graficamente - estruturalmente - os discursos da personagem com os do narrador, a escrita gramatical sendo virada do avesso, ou os poetas do futurismo se expandem em expressões de uma emotividade de exaltação e descontrole - só para citar alguns exemplos mais comuns omitindo outros como a escrita surrealista recriada – atropelada - ao sabor do inconsciente – quando não ao sabor da pedantice da nossa estreiteza criativa – o discurso, no livro em questão, de Mia Couto, quer oral implicando falas das personagens, quer da referência contextual, é fonte de artifícios vocabulares ou do pensamento, recriados irreverentemente, constantes de atropelo, trocadilho ou desconstrução mistificatória verbal de que exemplos como “ fala afluentemente”, “viceversamente”, “esbafurado”, “li nas extralinhas”, “chamarisco” (por “chamariz ”), ou frases de pura troça politiqueira “Ex: “Vai deixar de ser ministro. Transitará para ex-ministro”, são provas ínfimas de um contínuo recriar irónico de língua - desta vez não utilizando os termos moçambicanos aliados com as designações linguísticas portuguesas, como já eu lera, (em “Cronicando”, por exemplo) em troça da língua portuguesa, mas ficando-se apenas pela adulteração da língua portuguesa, assim desmistificada, no desprezo de sempre, em brincadeira aparentemente rica de “desconstrução”, para mim rica – viciada - também, em desrespeito, apelativo não de prémio mas de censura. Tal como hoje o caso da alteração da bandeira nacional, de que se fala. Tal como a alteração do “Hino Nacional” que me ficou na memória como proposta de António Vitorino de Almeida, lembro-me bem, pois chegara há pouco de Moçambique, entre os mais retornados desse mesmo Moçambique e outros lugares da História Antiga, casos que bem pontuam a nossa pobreza moral.
É também o que
eu sinto, ao ler tanto desperdício cultural numa leitura rica em criatividade e
em poeticidade, mas pobre em sentimento, o respeito sendo coisa que não existe,
e talvez só o afecto pelos irmãos negros, de Moçambique, perdure, apesar dos
prémios que colhe do bastardo branco metropolitano, que jamais, ou muito pouco,
é referido, em desdenhosa “desinformação”, numa história verdadeira, embora
passada num lugar imaginário desse Moçambique de um tempo real – “Tizangara” –
com, de resto, informações de sabor lendário num contexto político histórico de
independentismo pós descolonizatório.
Não, apesar da
admiração pela sua capacidade criativa, sobretudo da linguagem – sempre
revelada em jeito de galhofa desprestigiante, que me indigna, pese embora o
riso do ardil anedótico grotesco, mas fatigante, de tão repetitivo - prefiro o
discurso normal de quem, como esse futurista Álvaro de Campos desmistificando
tantas vezes o pensamento da norma estética corrente, traz novidade para uma
realidade que, sendo bem viva, nunca se julgaria matéria de tanta reflexão –
poética, neste caso, como esse filosofar de exaltação emotiva em torno dos
ruídos modernos do mundo.
«À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas
da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza
disto,
Para a beleza disto, totalmente desconhecida
dos antigos.»
……….
….«Porque o presente é todo o passado e todo o
futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e
das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos
Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez
cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro
do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por
estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo,
ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa
só carícia à alma.»….
Álvaro de Campos “Ode Triunfal”
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