quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

“Rangendo os dentes”


Uma história bem contada, pelo menos na aparência de um saber linguístico e de uma efabulação saborosa, evocadora de mitos e costumes sumidos nos tempos e trazidos à baila por um amante afectuoso desses povos a que pertenceu, ou seja, Mia Couto, o autor do livro em referência – “O Último Voo do Flamingo” - e a que talvez pertença ainda, por opção de amor - nos acasos de uma história pátria sua que, se não a aprovou – conquanto tivesse sido uma história de heróis, dificilmente imitáveis, e daí que admiráveis, não só pela coragem mas pelos condicionalismos de representantes de um país estreito e pobre – em todo o caso, um destino superior fez que o escritor nela participasse, de menino - de nascituro - como descendente de familiares que não tiveram tantos escrúpulos na ocupação desse espaço – ocupação menos dificultosa, todavia, que a dos navegantes condenáveis das naus primeiras, num passado quatrocentista e posterior - semeadores, contudo, de amplitude de conhecimentos e de visão de espaços, onde em breve outros povos maiores se imporiam, até criarem os seus próprios países, sem tantos escrúpulos de ocupação independentista - como de resto, tal fora sempre feito, através das histórias verdadeiras de todos os tempos errantes das Histórias nacionais – fossem eles povos vikings, vândalos, celtas, suevos, godos, preenchendo-os na sua errância, que os romanos conquistaram também pela força e a sua cultura, impondo a sua língua em tantos deles, ponto de partida para os seus derivados de linguagem novilatina, no caso românico, que é o nosso também, ao que se diz. A essa pátria moçambicana Mia Couto se habituou, apreciou e participou – participa ainda, ao que parece - com carinhoso sentido de afinidade conterrânea, como, de resto nos apercebemos ao longo das leituras dos seus livros, que traduzem o seu afecto pelos naturais, nos seus mitos e costumes, para além da desmistificação linguística, pejada de anomalias perpetradas pelos próprios naturais - ora de um abastardamento específico dos não naturais da língua, ora de um saber erudito e elegante, de causar estranheza - iniciada a narrativa, com a irónica embrulhada em torno de um pénis - “um sexo avulso e avultado” de atribuição desconhecida, até ser encontrado o boné de um dos soldados, assim identificado, das Nações Unidas, ali chegados após a independência da ex-colónia portuguesa.

Tão espectacular recriação linguística, de chocarreiro artifício simultaneamente causador de admiração, quando praticado pelos naturais – ora de terminologia tosca carregada de trocadilhos de trapaça linguística, ora de uma nobreza de expressão artificial e pedante, quando colocada na boca de naturais desse Moçambique que portugueses enriqueceram linguisticamente – julgo que também culturalmente - mas não, naturalmente, ao ponto de dilatarem tão excelsamente a linguagem erudita, usada por Mia Couto, em pedantismo de deturpação, quando posta na fala dos seus naturais, de que é exemplo o pai do narrador - aliás, a sua alma, em poética efabulação de mito - de saber e sabor trocista, misturando a língua erudita e a da deturpação tribal, admirável, contudo, pelo que traduz de domínio perfeito da língua assim abastardada com saber e troça pelo escritor Mia Couto.

De facto, sempre a língua literária acompanharia a linguagem oral – (não, é claro, logo após a invenção da escrita, utilizada esta primariamente com fins pragmáticos) – mas, ao cultivar-se, impondo-lhe os requintes próprios de uma elaboração mais cuidada, que não só a leitura de obras desde os clássicos primeiros a Ocidente, ajudaria a fabricar, mas a sua elaboração resultando de um tempo de fabrico de maior amplitude, permitindo reflexão mais pausada do que a da expressão oral. Se a oralidade é muitas vezes motivo de ironia - seja nos preciosismos retóricos que Molière e bem assim Marivaux, souberam imortalizar, e o nosso Prémio Nobel da Literatura, na narração da sua fluência temporal, atropela graficamente - estruturalmente - os discursos da personagem com os do narrador, a escrita gramatical sendo virada do avesso, ou os poetas do futurismo se expandem em expressões de uma emotividade de exaltação e descontrole - só para citar alguns exemplos mais comuns omitindo outros como a escrita surrealista recriada – atropelada - ao sabor do inconsciente – quando não ao sabor da pedantice da nossa estreiteza criativa – o discurso, no livro em questão, de Mia Couto, quer oral implicando falas das personagens, quer da referência contextual, é fonte de artifícios vocabulares ou do pensamento, recriados irreverentemente, constantes de atropelo, trocadilho ou desconstrução mistificatória verbal de que exemplos como “ fala afluentemente”, “viceversamente”, “esbafurado”, “li nas extralinhas”, “chamarisco” (por “chamariz ”), ou frases de pura troça politiqueira “Ex: “Vai deixar de ser ministro. Transitará para ex-ministro”, são provas ínfimas de um contínuo recriar irónico de língua - desta vez não utilizando os termos moçambicanos aliados com as designações linguísticas portuguesas, como já eu lera, (em “Cronicando”, por exemplo) em troça da língua portuguesa, mas ficando-se apenas pela adulteração da língua portuguesa, assim desmistificada, no desprezo de sempre, em brincadeira aparentemente rica de “desconstrução”, para mim rica – viciada - também, em desrespeito,  apelativo não de prémio mas de censura. Tal como hoje o caso da alteração da bandeira nacional, de que se fala. Tal como a alteração do “Hino Nacional” que me ficou na memória como proposta de  António Vitorino de Almeida, lembro-me bem, pois chegara há pouco de Moçambique, entre os mais retornados desse mesmo Moçambique e outros lugares da História Antiga, casos que bem pontuam a nossa pobreza moral.

É também o que eu sinto, ao ler tanto desperdício cultural numa leitura rica em criatividade e em poeticidade, mas pobre em sentimento, o respeito sendo coisa que não existe, e talvez só o afecto pelos irmãos negros, de Moçambique, perdure, apesar dos prémios que colhe do bastardo branco metropolitano, que jamais, ou muito pouco, é referido, em desdenhosa “desinformação”, numa história verdadeira, embora passada num lugar imaginário desse Moçambique de um tempo real – “Tizangara” – com, de resto, informações de sabor lendário num contexto político histórico de independentismo pós descolonizatório.

Não, apesar da admiração pela sua capacidade criativa, sobretudo da linguagem – sempre revelada em jeito de galhofa desprestigiante, que me indigna, pese embora o riso do ardil anedótico grotesco, mas fatigante, de tão repetitivo - prefiro o discurso normal de quem, como esse futurista Álvaro de Campos desmistificando tantas vezes o pensamento da norma estética corrente, traz novidade para uma realidade que, sendo bem viva, nunca se julgaria matéria de tanta reflexão – poética, neste caso, como esse filosofar de exaltação emotiva em torno dos ruídos modernos do mundo.

 

«À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto, totalmente desconhecida dos antigos.»

……….

….«Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas

Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,

E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,

Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,

Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,

Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,

Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.»….

Álvaro de Campos “Ode Triunfal” 


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