Como obstáculo a qualquer teoria, nem que seja por um conceito de “mudança”, que em todos os tempos se impôs. Ou de “despertar”. Ou de “revolta”, a acordar consciências e a suprimir cobardias. Tudo o que é demais enjoa. E o enjoo pode descambar em vómito, que faça retomar uma consciência e um arrojo imprescindíveis para essa mudança com o ostracismo necessário do poder.
A politização de tudo
Um mundo em que tudo é politizado é um mundo não só sem liberdade de
expressão como sem liberdade de pensamento: não podemos dizer coisas
(politicamente) erradas, como não podemos pensar “errado”.
PATRÍCIA FERNANDES, Professora na Escola de Economia e Gestão da
Universidade do Minho
OBSERVADOR, 08
jan. 2024, 00:212
1The right to be alone
Um
texto fundamental para compreender a consolidação dos regimes democráticos
liberais é a conferência proferida por Benjamin Constant em 1819:
intitulada A liberdade dos modernos comparada com a dos antigos, foi
publicada entre nós pela BookBuilders
com uma excelente introdução de António
Araújo (falei com Pedro Almeida Jorge sobre este texto no podcast Clássicos da Liberdade).
Naquela
conferência, Benjamin Constant
pretendeu fazer a defesa do regime representativo face à vontade expressa por
alguns, na altura, de recuperar o sistema político dos antigos (de participação política e daquilo que
viríamos a designar como democracia directa). De
acordo com Constant, essa recuperação era uma impossibilidade: como as
circunstâncias históricas se tinham alterado, os modernos apresentavam um
entendimento distinto de liberdade e já não estariam interessados num regime
político semelhante ao dos antigos.
Para os antigos, ser livre
significava participar no governo da cidade, e parte do orgulho grego passava
por, ao contrário dos bárbaros, não se curvarem perante um senhor. Eram livres porque sentiam (de diferentes
maneiras em diferentes momentos) que determinavam as leis da cidade. Já os
modernos entendem por liberdade o gozo da vida privada: ser livre não é participar politicamente,
mas ter um espaço de liberdade privada onde o poder político não interfere
(como Araújo chama a atenção, é o princípio que a tradição inglesa traduz
como the right to be alone, o direito de ser deixado em paz).
Essa alteração do entendimento de
liberdade aconteceu em
resultado de três acontecimentos históricos, que podemos identificar a partir
de três palavras-chave: paz, tempo e comércio. Que acontecimentos foram esses? Em
primeiro lugar, o
nascimento do estado moderno, que cria condições de paz que não existiam quando
as comunidades se organizavam politicamente em cidades pequenas e estavam, por
essa razão, sempre sob ameaça. O
facto de a sua independência ter de ser permanentemente assegurada levava a que
as cidades antigas tivessem um caráter essencialmente militar e era
essa condição de defensores da cidade que estabelecia um elo indissolúvel entre
deveres e direitos políticos. O tamanho
dos estados modernos libertou-nos dessa condição de disposição permanente.
O segundo acontecimento prende-se
com o facto de as sociedades
modernas terem gradualmente prescindido da instituição da escravatura, que não
constitui um traço fundamental da sua organização social. Este aspecto
eliminava o tempo de ócio que
permitira uma dedicação
permanente ao governo da cidade: como é habitualmente notado, passou-se
de uma sociedade de ócio para
uma sociedade de negócio – sendo
este precisamente o terceiro
factor apontado por Constant. As
sociedades modernas assentam em dinâmicas económicas e de troca comercial, na
dupla relação que os liberais sempre apontaram ao comércio: a paz permite o
comércio, mas o comércio também cria condições mais propícias para a paz na
medida em que estimula relações de cooperação, e não de agressão, entre os
estados.
Esta dimensão profissional,
que nos remete para a vida privada, é hoje um dado adquirido, mas não deve
negligenciado: corresponde à vida burguesa, ao cidadão envolvido nos seus
negócios, que lhe permitem a satisfação dos prazeres privados; é a vida
quotidiana, que nos mantém higienicamente afastados da vida política. E em
bom rigor, como Mário Cesariny notou, burgueses somos nós todos.
É precisamente a isto que Constant
pretende referir com a sua liberdade dos modernos: é o gozo da vida privada, que se mantém
afastada da lógica política e da intervenção do estado, e leva à constituição
de um dos pilares fundamentais do liberalismo ao consagrar a separação entre a
esfera pública e a esfera privada. Aquela remeteria para a dimensão política da
vida do cidadão e estaria sujeita a princípios de caráter político; a última
remeteria para a nossa privacidade, e estaria sujeita às regras determinadas
pela livre consciência individual. É este aspecto fundamental da modernidade que está
hoje posto em causa.
2The personal is political
A
conferência de Constant é também fundamental para uma área específica de estudo
– as teorias
da democracia –, por
permitir contrapor com clareza as duas principais teorias democráticas: por um lado, a teoria da democracia representativa, de
acordo com os princípios supra; por
outro, a teoria
da democracia participativa, que se inspira no sentido de
liberdade dos antigos e, em larga medida, em Jean-Jacques Rousseau, contra
quem, com muito respeito, Constant escreve.
O paradigma representativo foi sendo amadurecido nas sociedades
ocidentais desde as revoluções liberais e foi o paradigma dominante até ao
início da Guerra Fria. Serão
as décadas de 1960 e 70 a marcarem o nascimento das teorias da democracia
participativa, no contexto dos movimentos de contestação
política daqueles anos. A ideia passava por defender o afastamento do
paradigma liberal, que era naturalmente opressivo com os seus conceitos de
representação, liberdades burguesas, gozo da vida privada. Era urgente (a palavra mágica dos nossos tempos)
uma revolução política que se aplicasse a todas as áreas da sociedade e
democratizasse todos os domínios, desde universidades e escolas até empresas e
famílias. Na
formulação dos movimentos feministas da altura, importava defender que “o
pessoal é político”, pelo que uma sociedade verdadeiramente livre e igualitária
deve politizar todas as esferas da vida. (Apesar da evidente proximidade
teórica, este paradigma democrático não se confunde com a proposta marxista.)
Como quase sempre acontece na reflexão
política, aquele lema partia de uma reivindicação de justiça: a
convicção de que a posição social da mulher continuava desvalorizada,
nomeadamente no domínio profissional e no casamento, pelo que se exigia uma
democratização desses domínios. Mas
esse ímpeto de justiça deve ser avaliado com justeza: quais são as
consequências de querermos sujeitar todas as esferas da vida a uma lógica
política?
A primeira consequência é a de passarmos a interpretar todos os
acontecimentos de acordo com o padrão que usamos para o universo político: tudo passa a ser luta por poder,
exigindo que descortinemos quais as
relações de poder em causa em todas as dimensões da vida, e isto
independentemente da sua diversidade ontológica (como diz Paulo Tunhas) ou do seu propósito. É por esta
razão que os defensores da lógica da politização entendem que se deve olhar para a
investigação científica, a prática médica, a educação, o jornalismo, o
desporto, a religião a partir desta lente (debruçar-me-ei sobre estes tópicos
nos próximos textos). O
objectivo destas áreas não seria chegar aos factos, à verdade, ao conhecimento,
à fé ou ao “melhor resultado” – mas antes gerar justiça social. Ao invés de ser, como diz Tunhas, “a natureza – a ontologia – dos
objectos estudados [a] determinar a maneira como pensamos sobre eles”, é o que pensamos sobre eles que deve
condicionar a sua natureza.
A segunda consequência da politização de tudo consiste
na supressão da esfera privada: quando adoptamos o princípio de que tudo
é política, todas as dimensões da nossa vida passam a estar sujeitas a
princípios políticos. Não
espanta, por isso, que em Espanha se tenha proposto a regulação da arquitectura
das casas por forma a que se tornem mais feministas. Que fique
claro: que as pessoas queiram, por sua iniciativa, construir casas com uma
arquitectura mais feminista (seja lá o que isso for) é totalmente legítimo –
mas do que estamos a falar é de uma proposta para que o estado regule todas
as casas nesse sentido. O mesmo
vale para a forma como queremos educar os nossos filhos, praticar a nossa fé ou
gozar o nosso tempo livre: quando politizamos tudo, deixamos de ter esfera
privada e somos continuamente corpos políticos e sujeitos a regras políticas. Devemos,
por isso, ter cuidado com o fetichismo da palavra “democracia”.
Por fim, e em última instância, um mundo em que tudo é politizado é um
mundo não só sem liberdade de expressão como também sem liberdade de
pensamento: não podemos dizer coisas (politicamente) erradas, como não podemos
pensar coisas (politicamente) erradas. Urge instituir uma educação
política, urge estabelecer regras de expressão obrigatórias e, em
último recurso, urge criar centros de reeducação para os
incumpridores. No seu
texto, Constant recorda como o Abade de Mably (defensor das ideias
rousseaunianas) lamentava o “facto de a
lei só poder alcançar as acções. Queria que a lei atingisse os pensamentos, as
impressões mais fugazes, que perseguisse o homem sem trégua e sem lhe deixar um
refúgio onde pudesse escapar ao seu poder”. Se isto faz lembrar os regimes
totalitários, não é pura coincidência.
LIBERDADES SOCIEDADE FILOSOFIA
POLÍTICA POLÍTICA
COMENTÁRIOS:
Manuel Matos: Magistral. Obrigado Francisco
Alcorcon: Mais um excelente texto,
Patrícia, muito obrigado! Tim do Á: Neste momento, em Portugal, só o Chega combate a ditadura do
politicamente correcto. Veja-se até o PSD e a IL a aprovarem na assembleia da
república os nomes neutros para acabar com os 2 sexos biológicos. Uma loucura.
Temos de reagir. Chega! Joaquim
Albano Duarte: Excelente
trabalho!
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