Não, não dá para
rir. Trata-se de uma lição a sério.
Retrato do jornalismo enquanto caricatura
Se não escrutina e incomoda, o jornalismo não é jornalismo. Se não
for escrutinado e incomodado, o poder não é democrático.
ALBERTO GONÇALVES Colunista
do Observador
OBSERVADOR, 13
jan. 2024, 01:177
Foi nos finais de Março de 2020, durante
o primeiro de quinze ou dezasseis “estados de emergência” e o primeiro de não
sei quantos “confinamentos”. A “Notícias
Magazine”, distribuída com o JN e o DN, ofereceu a capa e uma data de páginas
interiores às dras. Graça
Freitas e Marta Temido. Era um
relato quase hagiográfico, em que ambas as senhoras se viam elevadas ao
estatuto de guerreiras incansáveis no combate à epidemia. As guerreiras,
coitadas, mal tinham tempo para comer (“Tenho
comido mal”, informou sem se queixar a então ministra; “tenho feito saladas, com feijão encarnado ou
abacate, e uns grelhados”, assegurou a dra. Graça) ou dormir (apenas
da “uma às cinco e meia da manhã”,
esclareceu uma das combatentes). A dra. Graça, imagine-se, nem sequer conseguia ouvir Jorge Palma ou cuidar devidamente das
suas orquídeas. Ainda assim, ambas juravam: “Não somos heroínas, nem mártires, nem
supermulheres, nem magas”. Obviamente, a “Notícias Magazine” discordava.
Todo o artigo transbordava louvor e
veneração. Em cada depoimento, as protagonistas fingiam
modéstia. Em cada parágrafo, a autora,
Alexandra Tavares-Teles, babava veneração enquanto recordava ao leitor o
contraste entre a modéstia e a desmesura do trabalho em curso.
Principalmente recordava-nos a sorte de, na luta com o tenebroso vírus, dispormos de duas santas sem sono nem grande
apetite. Nem por uma vez se questionava a pertinência das medidas
aplicadas, nem por uma vez discutia os respectivos custos. Só havia encómios às loucuras vigentes,
que à data da publicação já cheiravam a desnorte e a irresponsabilidade.
Na altura, li aquele amontoado de propaganda com o prazer dos pervertidos e
decidi comentá-lo em público. Depois lembrei-me que um antigo colega da
“primária” exercia funções editoriais na revista. E comentei na mesma. Num
ápice, recebi uma mensagem furiosa do ex-colega, que além de não voltar a
falar-me tentou, felizmente em vão, convencer diversos amigos e amigas comuns a
imitá-lo.
O artigo citado é susceptível de ser
dissecado nas escolas de “comunicação social”, dado constituir um exemplo
perfeito do que o jornalismo não deve ser e não é. Por azar, dentro do
“estilo” o artigo está longe de ser único. Para não mudar de assunto, nos meses
posteriores a Março de 2020, em que aconteceu Portugal liderar as tabelas
internacionais de mortes por Covid, o tom
subserviente face a incompetentes terminais manteve-se como regra com
poucas excepções. E a regra estende-se ao tratamento “informativo” do governo,
dos partidos, da economia e da sociedade, sempre subordinado a uma ortodoxia
determinada pelos que tomaram conta do Estado e do pensamento. A
bajulação de quem manda e o deleite acrítico de quem assina são um padrão (ia
escrever “praga”) disseminado por boa parte do “jornalismo” impresso e
televisivo da nossa paróquia. A
propósito, o “estilo” parece inspirado pelos folhetos das próprias paróquias,
ou pelos pasquins “regionais” pagos pela autarquia e dirigidos por um cunhado
do vereador do urbanismo: o respeitinho e a reverência, pelo menos, são iguais
e igualmente ridículos. E é o “estilo” da vasta maioria dos produtos da Global
Media desde há anos.
Falo na Global Media porque é da Global Media que se fala, com a
empresa em risco de fechar, o que é natural em qualquer negócio, com os
funcionários sem receber, o que é grave, e – grita-se por aí – com a democracia
em perigo, o que é absurdo. Seja da
Global Media ou dos grupos que calhar, a democracia não carece deste jornalismo
bem-comportado, aliás uma contradição em termos. Os simulacros de informação é
que representam uma ameaça à democracia e, no limite, um sintoma de que a
democracia não existe. Se não escrutina e incomoda, o jornalismo não é
jornalismo. Se não for escrutinado e incomodado, o poder não é democrático. Por mim,
que cresci e vivi décadas obcecado por jornais, não sentiria a falta de 80% dos
diários e semanários que restam, e de 100% das televisões que sobram. E pelos
vistos uma crescente maioria dos portugueses também não.
Os “media” tradicionais não estão a desaparecer por renunciarem ao
jornalismo a sério, mas graças às mudanças do mundo que regularmente tornam
anacrónicos ofícios outrora relevantes. É o contrário: os “media”
tradicionais renunciaram ao jornalismo a sério por estarem a desaparecer, e
por, na ausência de audiências e receita, julgarem que a solução depende dos
desavergonhados “apoios”, os “apoios” que transformam redacções já de si algo
obsequiosas em meras assessorias dos senhores que pagam.
Não me esqueço de uma ressalva. Por
catequização universitária, deformação profissional, espírito de grupo e a
genérica impressão de que a esquerda é mais propensa a comprá-los com
subsídios, uma generosa porção dos jornalistas tendem a servir a esquerda com
um empenho que nunca dedicam à “direita”. Se calhar, do que o JN e o DN
necessitam não é de petições, “intervenções” ou vigílias na praça, e sim de uma
vitória das “forças reaccionárias” a 10 de Março. Talvez então voltem a
escrutinar o poder e, afinal, a praticar jornalismo. E continuem a não vender
nada.
COMENTÁRIOS (de 7)
F. Mendes: Temo que o resultado da situação na Pravda (perdão, na
Global Media) acabe em nacionalização, mais ou menos encapotada. Tudo em nome
da defesa da liberdade de informação, bem entendido. Ainda arriscamos ver o
prof. Marcelo, cuja popularidade já conheceu melhores dias, defender a
atribuição de subsídios e ajudas, em nome do combate à epidemia de caspa, ao
agravamento de episódios de seborreia, à inesperada emergência de uma nova
doença (chamada gripe sazonal), à elevada mortalidade de idosos com mais de 97
anos, e de tudo o que calhar para safar esta nossa imprensa neo-Gonçalvista.
Uma miséria tudo isto.
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