quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

A consciência


É elástica, todavia, o Bem e o Mal andam num virote tal de variáveis, na tranquilidade ou arrogância dos procederes de cada um, a própria Justiça indecisa nos seus parâmetros e nas suas actuações. E tudo parece mistificação, até mesmo as sensibilidades, viradas para valores segundo as modas do momento, que a velocidade das comunicações torna cada vez mais fluidas e pueris. Mas ainda bem que vão existindo as Patrícias Fernandes a lembrar os clássicos, ao menos para estabelecer certa elegância espiritual no pensamento, na bestialidade do caos em que nos vamos movendo -  ressalvando os justos, que vai sempre havendo, confiemos nisso.

A politização da medicina

Uma posição quanto à interrupção voluntária da gravidez cabe à consciência de cada um, mas as regras que instituem liberdades individuais e a objecção de consciência existem para a garantia de todos.

PATRÍCIA FERNANDES Professora na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

OBSERVADOR, 15 jan. 2024, 00:1941

1A liberdade de consciência

Um dos tópicos mais relevantes de discussão filosófica na segunda metade do século XVII foi a questão da tolerância: após a cisão provocada pela Reforma e a multiplicação das seitas e confissões protestantes, a Europa assistiu a sucessivas guerras religiosas. O contexto exigia, como Artur Morão afirma, uma “resposta às aspirações de muitos espíritos europeus que, de vários pontos de vista, sentiam a necessidade da conciliação prática e social das pessoas, não obstante a divergência das suas opções doutrinais.

Uma dessas respostas foi dada pelo filósofo inglês John Locke, enquanto se encontrava nos Países Baixos como refugiado político, num texto que seria publicado em 1689 sob anonimato. A “grande tradição ocidental da tolerância” já tinha sido iniciada com Nicolau de Cusa, Thomas More e Pico della Mirandola, e continuada por Pierre Bailey e Baruch Espinosa – mas será a Carta sobre a Tolerância, de Locke, a estabelecer os princípios fundamentais das sociedades liberais. De acordo com o filósofo inglês, a comunidade política e a sociedade religiosa constituem duas dimensões distintas: a primeira é necessária e visa a paz, a segurança e a prosperidade (o bem público); a segunda é voluntária e visa a salvação das almas.

Desta diferente natureza e propósito deduz Locke o princípio da tolerância: o estado deve garantir tolerância religiosa (com excepção dos católicos ou papistas) uma vez que as confissões remetem para o foro interno e não colidem com a ordem pública. No que diz respeito ao bem público, o poder político tem legitimidade para legislar (até sobre aspectos formais das confissões); mas no que diz respeito ao domínio da consciência, o poder político já não tem qualquer jurisdição. Quanto à fé e à salvação, cada um torna-se o único juiz: aplica-se a lei da consciência individual, que resulta do juízo racionalmente formulado por cada um de decidir o que deve ou não fazer considerando a salvação da sua alma.

Nas famosas palavras de Thomas Jefferson, os poderes legítimos do governo estendem-se apenas aos actos que são prejudiciais a outros. Mas não me faz mal que o meu vizinho diga que há vinte deuses ou que não há deus nenhum. Não afecta o meu bolso nem me parte a perna.

A consagração deste princípio de secularidade tornou-se um dos pilares da modernidade, permitindo sociedades mais pacíficas e politicamente mais plurais, pois as liberdades individuais – de consciência, pensamento e expressão – conduzem ao florescimento intelectual e ao surgimento de diferentes concepções de moralidade.

2A objecção de consciência

A liberdade de consciência é, assim, um requisito das sociedades livres, que assentam na separação entre esfera pública e esfera privada e garantem um conjunto de liberdades individuais. Diferenciam-se, nessa medida, dos regimes totalitários em que a consciência é politicamente construída e é a própria ordem pública a determinar a moralidade aceitável. Nestes regimes, não decidimos de acordo com a nossa consciência, mas somos obrigados a cumprir as regras estabelecidas, mesmo que as consideremos imorais.

Já nas sociedades democráticas, foi necessário desenvolver mecanismos constitucionais e legais de compatibilização entre a regra da maioria e a liberdade de consciência. É o que acontece entre nós com a salvaguarda da liberdade de consciência no art. 41.º da Constituição da República Portuguesa (que prevalece mesmo em estado de sítio ou emergência: art. 19.º/6) e a garantia de um direito à objecção de consciência (art. 41.º/6 da CRP).

Este direito revela-se particularmente importante na medicina e áreas afins, não só por estas lidarem directamente com questões morais e de consciência (nomeadamente, as relativas aos limites da vida e da morte), mas também porque a história já nos mostrou como podem ser apropriadas politicamente por regimes que as colocaram ao serviço de uma moralidade única.

A objecção de consciência encontra, por isso, previsão legal no art. 138.º do Estatuto da Ordem dos Médicos e no art. 12.º do Regulamento de Deontologia Médica; no art. 113.º do Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (com regulamento específico); e no art. 19.º do Código Deontológico da Ordem dos Farmacêuticos. Está também garantida no diploma que regula a Interrupção Voluntária da Gravidez (e na sua Portaria de regulamentação); no diploma relativo ao Regime das Directivas Antecipadas de Vontade – Testamento Vital; e, mais recentemente, no diploma que aprovou a Morte Medicamente Assistida.

O reconhecimento deste direito garante a estes profissionais que, independentemente das leis aprovadas, eles não ficam obrigados a praticar actos contra os seus valores éticos, morais, religiosos, filosóficos ou ideológicos – o mesmo é dizer, contra a sua consciência (os pacientes terão de ser reencaminhados para outros profissionais ou serviços; a capacidade de o estado gerir os seus recursos é, obviamente, outra questão).

3A politização da medicina

Em linha com o meu último texto, temos de ter em conta as transformações políticas e sociais ocorridas nas últimas décadas: a crescente politização da sociedade tem diminuído a esfera de consciência individual e fortalecido uma dimensão pública de moralidade, numa espécie de progresso imposto por activismos, sobretudo de carácter identitário. É o caso do aborto, que se tornou alvo de disputa, aguerrida e polarizada, não só nos Estados Unidos, como também em alguns países do leste da Europa.

Particularmente relevante é a posição da União Europeia, que denuncia, mais uma vez, o seu recuo nos valores liberais. Em junho de 2021, o Parlamento Europeu aprovou o relatório “Saúde e direitos sexuais e reprodutivos na UE, no contexto da saúde das mulheres” (o chamado Relatório Matic), que “insta os Estados-Membros a despenalizarem o aborto e a eliminarem e combaterem os obstáculos ao aborto legal”. As recomendações, apesar de não vinculativas, excedem claramente os limites da actuação legítima da União, mas o problema mais grave do relatório reside no facto de questionar directamente o direito à objecção de consciência:

“[O PE] Lamenta que, por vezes, a prática comum nos Estados-Membros permita que profissionais médicos – e, em algumas ocasiões, instituições médicas inteiras – se recusem a prestar serviços de saúde com base na chamada cláusula de consciência, o que conduz à recusa de serviços de aborto por motivos de religião ou consciência e põe em perigo a vida e os direitos das mulheres.” (itálico meu)

Uma posição de valor quanto ao acto em si caberá à consciência de cada um, mas importa destacar o ímpeto de recusar que se possa pensar de modo diferente, negligenciando esta conquista civilizacional básica: as regras que instituem liberdades individuais foram feitas para a garantia de todos, pois servem de salvaguarda para quando, em outros momentos, ideias que não as nossas estão em posição de poder. Este novo mundo pode estar repleto de “direitos humanos”, mas não será um mundo mais livre.

SAÚDE DA MULHER     SAÚDE    ABORTO    MEDICINA    CIÊNCIA

COMENTÁRIOS (de 41)

Carlos Chaves: Caríssima Patrícia Fernandes, só faltou dizer que esta politização veio acrescentar-se a muitas outras que a esquerda tem implementado. O objectivo é minar os nossos sistemas “democráticos” por dentro, não admirando o próprio PE estar (indevidamente) envolvido nesta tarefa! No nosso caso temos um PNS prontinho para continuar esta missão da esquerda.                    João Floriano: A politização da medicina pode ser vista em inúmeros exemplos e não apenas naquele que a Dra. Patrícia Fernandes aborda: Quase 2 milhões de portugueses não terem médico de família, SNS em ruínas, braços de ferro entre profissionais da saúde e o governo, falta de equipamentos nos hospitais, mortalidade excessiva, a lista poderia continuar com muitos outros exemplos. O caso das gémeas luso brasileiras é um exemplo da intromissão grosseira dos políticos na medicina. No presente caso lembro-me perfeitamente da indignação da deputada Isabel Moreira que além de pôr em causa o direito à objecção de consciência, também se manifestava contra os dias de reflexão que são dados à mulher que pede uma IVG para decidir se é realmente o que quer fazer. As questões éticas levantadas pela vida moderna e por uma nova sociedade que se diz, se apresenta como mais justa, levam muitas vezes a que haja confrontos entre direitos, neste caso o da mulher que quer abortar em segurança e o do profissional de saúde que se recusa a participar no acto. E quando isto acontece, sabemos perfeitamente qual o direito que tem «mais direito»: o que for apresentado pela  extrema esquerda.                 Paulo Silva: Cara Patrícia Fernandes, é um sinal dos tempos que vivemos. É o que acontece quando se dá rédea solta às ideias do radicalismo apresentadas como progressistas. Primeiro levam o dedo, a seguir a mão, depois o braço... e depois sabe-se lá o que mais... É realmente um 'progresso'Aqui chegados temos a objecção de consciência como último baluarte do estado de direito democrático. Mas não precisávamos de ter chegado aqui porque os problemas do aborto a pedido da mulher estão bem a montante desta questão, e a maioria não quis saber. A começar na desumanização do feto e embrião humanos perpetrada pelos advogados do aborto em sua defesa, e a acabar na negação do direito dos homens a terem uma palavra. E esta não é uma questão religiosa. O intelectual Christopher Hitchens, ateu convicto e adversário feroz da Igreja em escritos, e inúmeras querelas mediáticas, reconheceu validade ao conceito de nascituro defendido pela Igreja, sustentado nos avanços da embriologia. A criança por nascer é um candidato a futuro membro da sociedade e como tal a sociedade tem o dever de a proteger. Não sou contra o aborto tout court, porque já não acredito em valores absolutos. A anterior lei do aborto era perfeitamente aceitável, (perigo de vida da mãe, violação, malformação), e aceitava-se a sua extensão a outras circunstâncias, (talvez a decidir em tribunal), mas nunca com o facilitismo com que hoje acontece e que o contribuinte é obrigado a pagar. Só serve à desresponsabilização de homens e mulheres. Por tudo isto o tema deve ser revisto e debatido. PS: o marasmo e o silêncio à volta destas questões num país a envelhecer todos os dias a olhos vistos é um crime de lesa-pátria, mesmo!     Lily Lx: Gostei. Urge combater este totalitarismo que se instala nas sociedades ocidentais; a matriz de pensamento único, em que qualquer discordância é alvo de cancelamento público. Como se as pessoas não fossem pessoas, mas meros instrumentos. A questão do aborto e da eutanásia é particularmente sensível; para alguém beneficiar de um homicídio, é preciso quem o pratique. Questiono-me porque é que alguém que retira vantagem do homicídio pode impor a outro a dor e o sofrimento de tirar uma vida?                    José B. Dias > Maria da Graça Frazão: Leia com atenção o parágrafo final que para maior facilidade transcrevo:
Uma posição de valor quanto ao acto em si caberá à consciência de cada um, mas importa destacar o ímpeto de recusar que se possa pensar de modo diferente, negligenciando esta conquista civilizacional básica: as regras que instituem liberdades individuais foram feitas para a garantia de todos, pois servem de salvaguarda para quando, em outros momentos, ideias que não as nossas estão em posição de poder. Este novo mundo pode estar repleto de “direitos humanos”, mas não será um mundo mais livre.

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