Não
há dúvida. Estamos todos lá, por decisão própria, seguros do bem-estar que nos
é prometido, pelo Dom Sebastião da anterior constatação, que até já cá está, Alcácer-Quibir
sendo treta de gente pateta. Este é o tal, Alexandre Borges tem toda a razão, no retrato que faz desta nação: o
que se passou na questão Sebastião foi ficção, ele já cá está, a refazer o que
ninguém quer nunca perder – o cantinho, a côdeazinha, o bocadinho, segurinho,
anemicozinho, pois que o vigor do conjunto será para o tal - e a sua frota - servil
que agora é, a prometer e a espalhar o seu amor, até pelo presidente, que
honrado se sente. E nós com ele, na selfie inteirinha da nossa glória
constante.
Portugal inteiro, como quem
diz: all you can eat
Nem a gola alta do novo
secretário-geral do PS, nem a sensual aparição da barriga do dito. Esta semana,
amig@ leitorx quero falar-lhe é de Portugal. Inteiro.
ALEXANDRE BORGES, Escritor
e argumentista
OBSERVADOR, 11
jan. 2024, 00:182
O meu amigo (sempre gostei muito
quando se nos dirigem por “o meu amigo”. Geralmente, significa que não se
lembram do nosso nome e que jogaram as cartas todas na fuga em frente. Todavia,
nestes tempos sensíveis, talvez seja avisado actualizar: o/a meu/minha/minhe
amig@) perdoará. Em semana de congresso do Partido Socialista, talvez
esperasse de uma crónica das pequenas coisas que falasse da gola alta do
novo secretário-geral ou da sensual aparição da barriga do dito espreitando a
oportunidade, ilustração acabada da eterna verdade de que a manta nunca chega
para tudo. Contudo, a crónica é, lá
está, das pequenas coisas; e, afinal, para quem trabalha com palavras, são
quase sempre elas a saltar-nos à vista. Sim, aquilo de que lhe quero falar
esta semana, amig@ leitorx, é de Portugal. Inteiro.
Tipicamente, os slogans políticos contêm
um “call to action”: uma chamada à acção, a tentativa de convocar quem
lê para um determinado objectivo. Daí
a presença quase obrigatória de um verbo: “mudar”, “ganhar”, “vencer”, “fazer”,
o “can” ou o “change” de Obama”, o “make” de Trump. Fórmulas
mais concisas dispensam o verbo, mas optam por conceitos que diríamos “activos”
por si só: “Esperança”,
“Mudança”, “Confiança”, “Futuro”. Os “Tempos
Novos” da aliança
que Carlos Moedas encabeçou para Lisboa, por exemplo, contêm esse elemento; não
precisamos de verbo para subentender a acção: mudar, virar a
página, votar noutros, fazer diferente, para ter resultados diferentes,
políticas diferentes, uma cidade diferente.
Desde o início, pois, algo surpreendia no “Portugal Inteiro” com que
Pedro Nuno Santos se apresentou às eleições do PS. Parecia demasiado
monolítico, fechado, grande, mas inerte. O
que éramos chamados a fazer? Pensar no país como um todo? Mas não o costumamos
fazer? Os eleitores não o fazem? Costa não o fazia? A oposição não o faz? Terá
Portugal algum problema de unidade? De identidade? Estaremos em risco
separatista, como Espanha? Ou com desejos expansionistas de recuperar Olivença?
Onde é que me alisto? Alguém estará a fazer campanha só pelo Norte? Ou pelo
Sul? Ou pelas ilhas? Ou pelos distritos com R no nome? Ou por aqueles onde há
lampreia? Ou por onde se diz estrugido em vez de refogado?
Certo. Poderia tratar-se da mesma ideia do “Unir Portugal”, do PSD de Montenegro, mas aí ela parece mais bem conseguida, não parece? Num país
em que, como em boa parte do Ocidente, as posições políticas se começam a
extremar, aqui estamos nós para unir, moderar, juntar ao centro. E, justamente
porque o nosso adversário já está a dizer isso (isto é, antes de ter variado
para o insosso “Sentir Portugal”), será que deveríamos ir a correr dizer
exactamente o mesmo?
Talvez
fosse mensagem apenas para consumo interno: José Luís Carneiro recolhia mais apoios a Norte, Pedro Nuno dizia que tinha o país todo com ele. Talvez.
Todavia, este fim-de-semana, no dito
congresso de apresentação da nova colecção para o Outono/Inverno socialista, já
resolvida a questão das eleições internas e podendo agora falar ao eleitorado
em geral, lá continuava, no cenário e no discurso, inflamado, o
“Portugal Inteiro”.
Que quereriam eles com isto?, pensámos
cá com os nossos botões antes de ir ao roupeiro verificar como estávamos de turtlenecks. Claro que há desigualdades no país, litoral/interior, cidades/campo,
mas, de todos os nossos problemas, diria que estes não têm estado no top 20 dos
últimos tempos. Talvez assim
que resolvamos o caos das urgências, a falta de médicos, os ordenados dos
enfermeiros, a carreira dos professores, a greve dos polícias, a dos
funcionários judiciais, os atrasos da justiça, a crise na habitação, o caos nos
transportes, a inflação, a fuga dos jovens qualificados, a sustentabilidade da
Segurança Social, os sem-abrigo, a pobreza, o combate aos efeitos da seca, a
falta de meios na defesa e outros temas transversais a todas as regiões, talvez
possamos voltar a
falar sobre os desequilíbrios no país – mas primeiro, podemos concentrar-nos
nos desequilíbrios do país?
Só que, entretanto, começaram os
discursos e levantou-se-nos a dúvida. Veio Carlos César e disse que Marcelo não fez “o que era devido”.
Veio Manuel Alegre e disse que Marcelo cometeu “um erro”. Veio o inefável
Ascenso e disse que não deviam ter apoiado aquele Presidente. Veio Pedro Nuno e
deixou claro que, para a próxima, vão ter um candidato “próprio”. Pelo meio,
Costa declarou que foi “derrubado”, enquanto Augusto e o resto da tropa lá
continuaram a distribuir ataques ao Ministério Público, porque a justiça não
pode interferir na política, mas os políticos podem tentar, quantas vezes
quiserem, condicionar a justiça. À descarada.
Voltámos a olhar bem para o cenário e
vimos melhor. Lá estava o “Portugal Inteiro” e, por cima, o símbolo
do PS. E pensámos: tu queres ver que o “call to action”, a chamada a agir, não
é para o país, mas para o PS? Será que o PS é que quer “Portugal Inteiro”? Não apenas o governo, não apenas um Presidente da
Assembleia da República completamente partidário, não apenas um Banco de
Portugal controlado, mas também um Presidente da República amigo, e talvez
outra Procuradora-Geral da República, porque esta que lá pusemos, afinal,
também não serve? “Interfere”?
Já no discurso de encerramento, aquele
que, tradicionalmente, é mais aberto ao país, veio o ímpeto muito pessoal do
novo secretário-geral completar a ambição: quer ser primeiro-ministro, mas
também quer gerir as empresas públicas, e decidir no que devem investir as
empresas privadas, quanto ganham as pessoas e por quanto podem arrendar as suas
próprias casas. E já agora, um país “de topo”, esse que até pela Roménia já foi
ultrapassado.
Sim, neste país em que parece
fácil a um socialista chegar a ministro, mas a um contribuinte difícil
conseguir uma consulta, talvez o PS queira “Portugal Inteiro” como quem diz o
fiambre inteiro. Para depois fatiar a gosto. De Belém a São Bento, do
público ao privado. A maioria absoluta já lá vai. Agora, o tempo é de “all you
can eat”.
COMENTÁRIOS
JOHN MARTINS: Por Portugal inteiro, está muito bem descrito no seu parágrafo
nº 5, que vai da falta de médicos à pobreza e
o resto está a chegar às forças de segurança; ou seja vai de mal a pior. E isto
é que ninguém no congresso hipnotizado teve coragem de abordar, nem sequer
levemente e muito menos uma sofisticada crítica aos fazedores de escândalos na
pessoa do seu maior fazedor de todos os tempos o camarada António Costa...Isto
é o que corre por Portugal inteiro!...
observador censurado: Excelente
texto que explica o "Portugal Inteiro". Quando estava a ler o
antepenúltimo parágrafo: "Voltámos a
olhar bem para o cenário e vimos melhor. Lá estava o “Portugal Inteiro” e, por
cima, o símbolo do PS. E pensámos: tu queres ver que o “call to action”, a
chamada a agir, não é para o país, mas para o PS? Será que o PS é que quer
“Portugal Inteiro”?"
arrepiei-me e lembrei-me da citação: “Primeiro eles vieram buscar ... e eu fiquei calado
... Então, vieram buscar ... e eu fiquei calado ... Em seguida, vieram buscar
... e eu fiquei calado ... Foi então que eles me vieram buscar, e já não havia
mais ninguém para me defender."
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