Agudeza na apreciação, Nobreza
na atitude. São características de Maria João Avillez, de absoluto
desassombro, sabendo ao que se arrisca, ao defender tão conscienciosamente a “dupla”
“Cavaco
/ Passos”, do governo anterior, após leitura do livro de Cavaco Silva “Quinta Feira e Outros Dias” (o segundo volume das memórias presidenciais
de Cavaco Silva da Porto Editora). Uma dupla que, nem sempre de acordo, soube harmonizar-se com o “outro”,
tal como combinam as vozes das várias duplas deste “The Voice Portugal”, que estou a ouvir, grata aos cantores de vozes
maravilhosas e aos elementos do júri que os prepararam para a combinação
harmoniosa, mantendo as suas características próprias, e colaborando, em
pareceria, num resultado de suprema consonância polifónica. A confirmação dessa
excelência é feita pelos comentários de apreço, ignorados, naturalmente, outros
muitos discordantes, de demagogia combinando, por vezes, com a grosseria tosca,
segundo os nossos hábitos ancestrais.
Indispensável /premium
OBSERVADOR, 19/12/2018
Fica-se a conhecer a singularíssima
relação que houve entre dois políticos, não quaisquer, Cavaco e Passos, e a
aliança que teceram e nunca romperam. A visão é ampla e polifónica, goste-se ou
não dela.
1. Primeiro foram os remoques pretensamente
irónicos, uma vozearia sobranceira, as promessas inúteis de não futuras
memórias. Passada o superficial arremedo, esperar-se-ia porém subir a um
patamar superior de opinião: críticas, argumentos, debates, como o livro de
Cavaco Silva obviamente mereceria e deveria suscitar. Mas não. É a fulanização
em curso. Antes do “o
quê” há que atender ao “quem”. O “quem” determina, engole ou liquefaz o resto.
E se houver ainda por cima a ameaça da “verdade dos factos”, pior. Pena é que
vozes mais sérias não se tivessem sobreposto à irrelevância da vozearia, vindo
a terreiro abrir uma discussão que só poderia ser politicamente interessante.
Como o livro é.
Fizeram mal. “Quinta
Feira e Outros Dias” (Porto Editora), o segundo volume das memórias
presidenciais de Cavaco Silva — e o mais político dos seus livros –, tem muito
que se lhe diga. Para quem
acompanhou razoável e relativamente bem a coroa de espinhos que foi a
governação da AD de Passos e Portas, a palavra surpresa não é descabida.
Não foi senão o espinhoso desenrolar dessa saga quem melhor interpelou a minha
leitura que me valeu pelo livro todo. Seja como for, lidas todas as páginas,
fica a saber-se mais. E melhor. Mais claramente. Fica-se a conhecer a
singularíssima relação que houve entre dois políticos, e não quaisquer, Aníbal
Cavaco Silva e Pedro Passos Coelho, e a aliança que teceram e nunca romperam. A
visão é ampla e polifónica, goste-se ou não dela.
2. O livro é político e já
não um “relato”, e nesse sentido é, repito, o melhor dos quatro volumes já
conhecidos. Tudo passa
pela política, as teias que ela engendra, as ilusões que cria, as armadilhas
que tece, o que mostra ou tapa, o que dá e tira, as relações que estabelece, os
eleitos que escolhe, os inimigos que fabrica. A história que conta. Ao longo de
mais de quinhentas páginas o autor lembra, conta e descreve incansavelmente. Um
caudal imenso, permanente, rigoroso, detalhado, minucioso, de informação – não falta
uma circunstância, um nome, um encontro, não falha uma data, uma hora, um lugar
e há que convir que dá pouco jeito duvidar da palavra de alguém como Cavaco
Silva. Um exercício precioso, e só essa disponibilidade para deixar o caudal
escorrer é em si tão rara que deveria ser objecto de atenção e guarda.
Uma obra política sim, na medida
também em que nunca quer o autor largar essa pele, não lhe ocorrendo — ou não
sabendo, ou não querendo – juntar-lhe outra ou aventurar-se por outros
caminhos, e tinha por onde escolher.
Muita gente que (obviamente) não leu o livro
recorrendo apenas ao índice remissivo, logo acusou Cavaco Silva de ser “mau”
com este, “bom” com aquele, “assim-assim” com aqueloutro, quando o livro tem
indiscutivelmente pouco a ver com essa medíocre contabilidade. O que não exclui
que muitos leitores certamente tivessem apreciado algo para além de
“observações pessoais” ditadas quase só pelas circunstâncias políticas e
sociais de cada momento ou pela própria natureza dos factos.
Um dia, há dois ou três verões, estando no Algarve em conversa com
Cavaco Silva, e sabendo-o a escrever este livro, perguntei-lhe porque não “uma
diferença desta vez”? Porque não alguns traços mais impressionistas dos seus
diversos interlocutores, alguns retratos? Alguma coisa de menos relatada e mais
vivida, na pele e na alma? Porque não ousar dizer-nos quem eram “por dentro” e
como eram afinal, alguns dos tão diversos personagens políticos com quem
convivera durante tantos anos?
O escriba não se comoveu, nem sequer pareceu muito interessado no que
lhe sugeria, para cada um o seu registo: exit
retratos psicológicos. O que eu
ignorava era que Cavaco Silva não se eximiria a substituir por vezes uma mera
observação pessoal pelo ácido sulfúrico que derrama sobre alguns dos observados. (Se fôssemos um país normal, mas não somos, tais
observações seriam também as mais esclarecedoras politicamente, havendo que
serem tidas em conta.)
3. Durante quatro anos Cavaco
discute circunspecta e severamente cada medida governamental ditada pela
troika, condena liminarmente muitas, discorda de quase todas, sugere constantes
alternativas, instiga o seu paciente primeiro-ministro à impaciência. Um fala
de Portugal, o outro dos portugueses, sendo porém impossível duvidar da
seriedade intrínseca da aliança entre eles e mesmo quando a tensão sobe até ao
limite do insuportável percebe-se que nunca desistirão. Nem um do outro, nem
cada um de achar que está a fazer o que acha que deve fazer. Duelos de via
sacra política em tempo histórico. Tão densos e tensos por vezes que ficamos
com a surpreendente sensação de um Presidente a tomar permanentemente conta do
seu primeiro-ministro: “alertei-o para”; “espero que esteja à altura de”;
“lembrei-lhe que”; “aconselho-o a que”; “desaconselhei-o firmemente a”.
Um tutor. Um professor, doublé
de árbitro, doublé de juiz. Mas — e nada me fará mudar de
opinião — percebe-se que Cavaco agia
genuinamente em nome dos portugueses, da credibilidade externa, da honra do
compromisso assumido pelo país face a três instituições internacionais. Fazia o
seu melhor e só o sabia fazer assim. Sentado diante dele, durante quatro anos,
Passos que fez mais do que o possível, era paciente e usava de diplomacia.
Sabendo-se cercado, (troika, oposições, Tribunal
Constitucional, socialistas socráticos, comunicação social, bem pensantes,
forças vivas, associaçõess, elites, sindicatos) nunca iria transformar o seu íntimo, único e último aliado, no seu
pior inimigo. E assim se
descobre como – contra os tempos e ventos – nasce, cresce e se solidifica
uma relação política facetada por um tempo de guerra (mas certamente que o
livro que Passos anunciou e já tarda nos elucidará melhor).
4 - Um dia, nos
escombros em que jazia a coligação após a debandada “irrevogável” de Paulo
Portas e o pânico político nacional e internacional que ela fez disparar, o
então Presidente, vendo o mundo a ruir e os capatazes estrangeiros a
enervarem-se demasiado, decide entrar em cena. Uma entrada de leão: o
Presidente da República idealiza, promove e produz um Compromisso de Salvação
Nacional. Objectivo: reinstaurar o espírito de compromisso e confiança entre os
partidos envolvidos no Programa de Assistência Financeira. Modus faciendi:
um acordo interpartidário (PSD/CDS/PS) que assegurasse a governabilidade do
país, a sustentabilidade das finanças publicas, a melhoria da competitividade
da economia. Brinde: a convocação de eleições legislativas um ano antes do seu
calendário.
Cavaco acreditou, Passos não.
Ele próprio — com a reserva com que costumava agir — já o tentara, Martin
Schultz e Durão Barroso podiam comprová-lo (e assim Passos nos desenvolva isto
mesmo no seu livro). O então chefe do Governo sabe da pouca propensão do PS
para cumprir os mandamentos da troika, sabe Seguro sem vontade própria e refém
de um PS dividido que o quer despedir, sabe e não acredita. Cavaco insiste,“vale a pena tentar em
nome do superior interesse nacional”. Homem
sem ilusões, Passos Coelho “embora não acreditando na viabilidade” de nada
daquilo,“não se opõe”. Os dois divergem, discordam, discutem, debatem, mas
Passos “não se opõe”. O toque de “Vésperas” em tempos históricos.
5 - Ambíguo tudo isto,
ambíguas afinal as relações entre Cavaco Silva e Passos Coelho impressas nestas
“Quintas feiras”? Não: a coincidência no diagnóstico de um agonizante chamado
Portugal, divergia porém na cura do moribundo. Aparentemente terá divergido sempre. Mas nunca por nunca ser,
pondo em risco a aliança entre ambos. Nem a sua indispensabilidade, a sua
solidez e a sua (inverosímil?) verosimilhança. Não é senão nesta tensa, intensa e
divergente aliança que se pode encontrar uma das chaves para que a espantosa
saga política vivida entre 2011 e 2015, tenha chegado a porto seguro.
E no entanto… a dúvida que muitos já tinham pode tornar-se hoje
mais legitima após a leitura das “Quintas Feiras”: como teria sido se Passos
Coelho tivesse sido mais “flexível”, se tivesse tido um comportamento em
sintonia com o olhar do Presidente? Poderiam as coisas, as imensas coisas que
vivemos, ter sido diferentes? As negociações com o FMI, a UE e o BCE, teriam
decorrido de forma, mais amável para com o país se Passos tivesse batido o pé e
levantado a voz? Não sabemos.
E se — como parecia alvitrar o
então Presidente – Passos Coelho tivesse logo em 2011 publicitado a vil mentira
de Sócrates sobre a astronómica dimensão financeira da herança socialista,
teria havido mais “compreensão” para com o governo?
Poderia enfim o que se passou, ter-se passado de outra maneira,
conforme o autor do livro ás vezes parece acreditar? Também não sabemos. Mas
isto dito e estas (obrigatórias ) perguntas feitas, uma coisa vem permanentemente ao de cima
das “Quintas Feiras” e é a sua descoberta que muito “faz” o livro: a
espécie rara de lealdade de que dois politicos foram capazes na divergência que
quase se julga permanente, nas inúmeras vicissitudes partilhadas. Nunca o então
Presidente deixou cair Passos — salvou-lhe o governo na infeliz TSU e apoiou-o
quanto pôde no antes, durante e depois da devastadora Sétima Avaliação da
troika. E nunca Passos Coelho deixou
ficar mal o Presidente da República (ao contrário, por exemplo, de algumas
figuras de direita mas também de esquerda de quem – é um suponhamos
–
Cavaco teria esperado mais. Um comportamento diferente daquele que veio a
verificar.
6 - Em resumo: aí está a
partir de agora uma história política entre dois homens políticos num momento
crucial da vida do país, como não me lembro de ver ou ler nestas quatro décadas
de mais feliz ou menos feliz democracia. Uma história singular de uma aliança
singular, da qual aliás, após ler o livro, me interrogo que marcas terá deixado
em cada um destes dois sobreviventes e se essas marcas terão, seja lá quando
for, um futuro. Mas isso é preciso esperar pelo livro de Pedro Passos Coelho.
Só o que ele escolher contar, responderá a esta (não dispiscienda) dúvida.
COMENTÁRIOS
Natália Guerreiro Constâncio Fernandes: Trocando tudo por miúdos, resta dizer que se não fosse por estas duas grandes figuras, (Passos e Cavaco) Portugal estava tramado! Eles pegaram o touro pelos cornos e tiraram este país do atoleiro, em que a Máfia socialista o tinha atirado. Agora que a
já de um
presidente sério e preocupado com o país. Por isso temos um presidente
levezinho, amigo da Máfia socialista (exactamente os mesmos), tudo numa boa!
Natália Guerreiro Constâncio Fernandes: Trocando tudo por miúdos, resta dizer que se não fosse por estas duas grandes figuras, (Passos e Cavaco) Portugal estava tramado! Eles pegaram o touro pelos cornos e tiraram este país do atoleiro, em que a Máfia socialista o tinha atirado. Agora que a
José Ramos: Em relação à perseverança teimosa - positivamente
teimosa, diga-se - de Pedro Passos Coelho durante a crise suscitada pelo
"irrevogável" Portas, já comentei há anos chamando a Passos
Coelho A Man for All Seasons, título de um filme dos finais dos anos de 1960
sobre Thomas More vs. Henrique VIII. Mantenho esse título e continuo a achar o
protagonista involuntário dessa crise um homem vertical, mas, talvez, demasiado
leal e cavalheiresco para aquilo em que a política se transformou. Cavaco,
também o é, não tenho dúvidas, e aguentou com estoicismo e pose de Estado o
período mais difícil da III República. Já Portas, culto e bem falante, "o
que leu os livros todos", segundo uma querida amiga minha, está muito
longe disso. Certamente ganharia um concurso de "cultura geral" com
os outros dois como adversários, mas aos costumes não diz nada e à Ética
também, nem por isso.
Francisco Ramalho: Como
os tempos de Cavaco-Passos parecem estar tão longe! Noutra época? Noutra
galáxia? Da seriedade, passou-se para a palhaçada do novo PR e a manhosice do
actual PM. Do interesse nacional, para o interesse pessoal. Da dedicação aos
outros, à promoção dos próprios. Até quando?
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