Dois textos sobre a questão
que nos pende sobre as cabeças, como a espada de Dionísio sobre o pescoço de Dâmocles.
São de Rui Tavares e Paulo Rangel e ambos manifestam a
sua discordância, perante esse aliado poderoso e exibindo a sua superioridade,
feita da sua distância insular. Leiamos os textos e os comentadores. E
aguardemos.
I - OPINIÃO A
Via Crucis do “Brexit” está só a começar
O “Brexit” imaginário que foi vendido
aos britânicos não era só, como se gabava Boris Johnson, o Reino Unido querer
ao mesmo tempo ter um bolo e comê-lo.
A certa altura nas negociações
para a declaração política do “Brexit” houve um comentador britânico que notou
a vitória do Governo espanhol na questão de Gibraltar e se admirou pelo facto
de o Governo grego ainda não ter tentado pedir de volta os mármores do Parténon
que estão no Museu Britânico.
A palavra-chave, aqui, é “ainda”.
Neste momento, a aprovação
do acordo de saída necessita, além do voto positivo do Parlamento Europeu e do
Parlamento britânico, apenas de uma maioria quão assunto ificada entre os
Estados-membros da União Europeia. Nesse sentido, o “veto” espanhol não era
exactamente um veto — a Espanha não podia bloquear sozinha o acordo de saída do
Reino Unido — e por isso se tornou ainda mais notável como vitória política. Espanha ganhou apenas o espaço necessário para que a
questão de Gibraltar se torne, nos próximos anos, aquilo que a questão da
Irlanda do Norte foi nos últimos: uma matéria para uma inevitável cedência
britânica, caso o Governo de Londres queira um acordo.
E
Londres precisa de um acordo, ou melhor, de vários.
Precisa deste acordo de
agora, para a saída. E precisa de um próximo acordo que enquadre as relações
futuras entre a UE e o Reino Unido. Nesse próximo acordo, aí sim,
cada Estado-membro terá direito a veto. E é inevitável que os gregos voltem
a pedir os mármores do Parténon e que os britânicos tenham de lhes
dispensar a atenção que nunca lhes dignaram dar. E é inevitável que a
Espanha queira reabrir o dossier de Gibraltar, tendo obtido este fim-de-semana
o direito de o fazer em dois tabuleiros: no tabuleiro europeu, se necessário
vetando o acordo das relações futuras como qualquer outro Estado-membro; e no
tabuleiro bilateral, para onde a UE remeteu especificamente todas as questões
relativas a Gibraltar, e que será tratado à parte do acordo geral para se
resolver a contento de Espanha. Até Portugal terá também as suas exigências
a fazer, nomeadamente no sector das pescas, onde há uma triangulação
complicada: nós temos acesso às águas norueguesas porque os noruegueses têm
acesso às águas da UE, incluindo as britânicas.
Para que a situação se
mantenha, vai haver certamente uma negociação árdua na qual a peça decisiva
será esta: os britânicos vendem para o resto da União Europeia 80% do peixe que
pescam nas suas águas; para continuarem a ter acesso ao mercado único, alguma
coisa terão de dar em troca. E assim sucessivamente, em setor após setor da
economia. Daqui a muitos muitos anos já poderá o “Brexit” ter caído no
esquecimento público e lá continuarão os negociadores de ambas as partes a
queimar as pestanas em cima de dossiers de milhares de páginas.
O
“Brexit” imaginário que foi vendido aos britânicos não era só, como se gabava
Boris Johnson, o Reino Unido querer ao mesmo tempo ter um bolo e comê-lo. É
querer também retirar os ovos que foram usados na confeção do bolo e
recompô-los com casca e tudo, sem desfazer o bolo que se quer comer e continuar
a ter.
Na raiz deste raciocínio
impossível está, já o vimos, uma noção de soberania que não faz qualquer
sentido no século XXI, se é que alguma vez o fez. A soberania, hoje como antes, depende da relação que
temos com a soberania dos outros, e o Reino Unido encontra-se agora perante 27
outros países que agregam as suas reivindicações — a Irlanda do Norte,
Gibraltar, pescas e infindas outras coisas — em negociações conjuntas, nas
quais sabem que do outro lado da mesa está um Reino Unido que tem uma escolha a
fazer: com acordo, perde “apenas” 2% do seu PIB; sem acordo, perde 8% — e não
como punição ao Reino Unido, mas como simples decorrência do que o Reino Unido
fez a si mesmo, ou melhor: porque os políticos do Reino Unido fizeram isto ao
seu povo em nome das suas carreiras políticas pessoais.
Que isto não tem de ser sempre
assim prova um voto de ontem que passou despercebido no mundo: na Suíça — país que está habituado
a referendos e os sabe fazer regularmente e com toda a informação disponível —,
66% dos eleitores rejeitaram ontem uma emenda constitucional que invalidava o
direito internacional na ordem interna suíça, deixando assim de reconhecer as
decisões de juízes internacionais. Os
suíços, de cuja soberania e independência ninguém duvida, e que vivem a seu
contento fora da UE, sabem porém
que se toda a gente decidisse rejeitar o direito internacional isso
significaria também que a própria Suíça não poderia fazer valer os seus
direitos em disputas com outros países quando isso for necessário. A soberania
num mundo interdependente parte deste reconhecimento simples.
Como o exemplo suíço
demonstra, ver o “Brexit” por aquilo que ele é — uma diminuição de soberania cujas consequências ainda
estão apenas agora a começar a revelar-se —
não significa ser contra referendos nem instintivamente pró-UE. Significa
ser-se objectivo e perceber que o Reino Unido tinha, sim, como tem ainda,
alternativas fora da UE: sair com acordo ou sem ele. Só que uma alternativa era
má e a outra é péssima.
COMENTÁRIOS:
Ricardo Bugalho, Lisboa: A sua
impressão está errada. Nada do que o autor aqui enumera é anormal ou raro no
resto do mundo fora da UE. Sair da UE é fácil, se os países estiverem
verdadeiramente dispostos a aceitar todas as implicações normais de ser
"100%" soberano. Por exemplo, é perfeitamente normal que os
pescadores do país A não possam simplesmente atracar o barco e vender o peixe
num porto do país B. A UE é que é excepcional ao permitirmos isto, sustentado
por regras e tribunais comuns. O problema é que no RU não há uma maioria forte
para aceitar o normal. 48% votaram para ficar na UE e dos outros 52% ... foram
prometidos vários mundos e fundos, incluindo ficar no mercado único.
Rusty Tachikoma: Não é uma questão de ser mais ou menos seita. É simplesmente o
resultado de incompetência de políticos que falharam redondamente em perceber
até que ponto as economias estão interligadas e quanto dependem umas das
outras. É uma reversão que obviamente terá grandes impactos que foram
(propositadamente ou não) subestimados em vários sectores da vida económica.
II -OPINIÃO - "Brexit": há algo de podre
no “soberano” Reino da Noruega
Postas as coisas noutro plano, que a
esquerda radical lusa também não quer entender: a saída do Reino Unido também
tira alguma soberania a Portugal.
PÚBLICO, 27 de Novembro de 2018
A propósito do acordo de
saída da União Europeia, tem feito caminho a ideia de que se trata de um mau
acordo para o Reino Unido e de que, por isso, ele merece uma rotunda
reprovação. Entre nós, esta posição tem aparecido, aqui e ali, pela mão do PCP,
mas tem sido essencialmente protagonizada pelo Bloco de Esquerda.
Espanta
esta defesa intrépida dos britânicos feita pela esquerda radical, quando
sabemos que a Grã-Bretanha dispõe de uma das economias mais amigas do
capitalismo financeiro de todo o mundo. Mais espanta quando sabemos também que
a grande motivação do "Brexit" foi a restrição drástica em matéria de
imigração e de liberdade de circulação. Afigura-se evidente que o sentido do
voto do "Brexit" incorpora uma vontade de relaxamento de certos
padrões das políticas sociais e ambientais em ordem a fomentar a
competitividade global, visa libertar-se dos grilhões supostamente
hiper-reguladores de Bruxelas para animar a economia, pretende reforçar a
ligação privilegiada ao grande
aliado histórico (Estados Unidos da América) e, finalmente, alimenta-se de uma
certa nostalgia dos tempos imperiais (a esquerda diria mesmo “imperialistas”). Deixemos de lado esta profunda
e insanável contradição, pois ela não é senão a confirmação da enorme
convergência – mesmo que táctica (embora, verdade seja dita, é muito mais do
que táctica) – da extrema-esquerda com a extrema-direita.
2. O grande argumento da líder do Bloco de Esquerda – que, aliás, já tinha
sido reiteradamente enunciado por muitos outros dirigentes – consubstancia-se
na asserção de que os britânicos ficarão vinculados a um grande acervo europeu,
mas perderão qualquer capacidade de influenciar a política europeia (pois,
deixarão de ter representação nas várias instituições da União). Há mesmo quem
tenha chegado a dizer que compreendia a desaprovação dos trabalhistas de
Corbyn, por esta mesma razão. O que manifestamente releva do
desconhecimento: os trabalhistas queriam um acordo bem mais
vinculante para os britânicos, basicamente mantendo a união aduaneira. Mas
esse acordo mais vinculante não teria, nem poderia ter, nenhuma contrapartida
do lado da sua influência sobre a formulação das políticas europeias. É aquilo a que chamo o paradoxo norueguês: a Noruega
está dentro do mercado interno, cumpre todas as suas regras, paga para isso,
mas não participa de nenhuma das decisões que dizem respeito a esse mercado e à
definição das suas regras de enquadramento e funcionamento. Concentremo-nos
então neste eixo do argumentário.
3. Em primeiro lugar, nunca será demais
recordar que foi o Reino
Unido, com toda a legitimidade e sem que ninguém beliscasse essa sua
prerrogativa, que quis deixar de pertencer à UE.
É por demais evidente que, saindo da União, não faria qualquer sentido que pudesse
estar representado nos órgãos respectivos ou que pudesse influenciar
formalmente e a título próprio a adopção das políticas da União. Adite-se, em
boa verdade, que a vontade dos “brexiteers” de permanecer nos órgãos é nula; há quase orgulho ou, ao menos, brio em afirmar que
finalmente deixarão de participar “nesses” fóruns.
Em segundo lugar, revisite-se a acusação do “acordo
humilhante”, em que a velha Albion ficará com o pior de dois mundos: obedece às
regras, mas não tem voz nem voto na sua prolação. Esta afirmação arranca de uma falácia, de que aqui se
fala há muito e que tem a ver com o que hoje deve entender-se pelo conteúdo
essencial do poder dos Estados. Tomemos o exemplo norueguês. A Noruega é
habitualmente apontada como um caso de afirmação superlativa da soberania, pois
recusou aderir à UE. À primeira vista, pode parecer bizarro, mas países como a
Eslovénia ou a Irlanda podem ter mais poder (“mais” soberania) do que a
Noruega, apesar da enorme riqueza e avanço deste Estado escandinavo. Sob
pena de ser condenado a um isolamento albanês, o Reino da Noruega
quis beneficiar do mercado interno e até do espaço Schengen. Mas como quis
manter-se fora da UE, não pode participar na definição de quaisquer regras
desses dois espaços de integração. E,
por isso, mantendo-se orgulhosamente soberano, limita-se a executar as
políticas e as regras que são definidas por outros 28 Estados e nas quais não
tem palavra a dizer. A sua capacidade de influência é altamente
reduzida, mas pode exibir, para
inglês ver – e aqui é, literalmente, “para inglês ver” –
o troféu de uma soberania (imaginária). Por via de alianças internas, por via
de negociação diplomática, por via da regra da unanimidade (onde ela valha), a
Eslovénia e a Irlanda podem condicionar muito mais o seu próprio destino do que
podem os detentores das “petro-coroas”.
A República da Irlanda, aliás, na questão da fronteira, acaba de dar um
notável e irrefutável exemplo disto mesmo: a
sua “soberania” saiu altamente ampliada da integração europeia. Em que termos e com que força poderia ela,
fora da Europa unida e diante da velha metrópole, defender o seu interesse
vital? Foi isto e é isto que não entendem ou não querem entender muitos e
ilustres políticos britânicos. E o mesmo se diga dos nossos líderes dos partidos
de extrema-esquerda. O Reino Unido, até pelas múltiplas excepções de que
dispunha, tinha muito mais força dentro da UE do que terá fora.
4. Postas as coisas
noutro plano, que a esquerda radical lusa também não quer entender: a
saída do Reino Unido também tira alguma soberania a Portugal. Com a sua saída, desaparece da távola
redonda europeia, o mais forte dos Estados atlânticos, que ali pugnava por
alguns interesses comuns. Para lá de segurar e reforçar a relação bilateral,
deve ser nossa prioridade estratégica ajudar a criar condições para a mais
estreita cooperação entre a UE e o Reino Unido. A saga da saída dos britânicos só agora
começou. É por isso
que é fundamental reter a fala de Horácio a Hamlet quando descreve a disposição
da aparição do fantasma de seu pai: a countenance more in sorrow than in anger.
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