segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

The importance of being Earnest

Era nos tempos em que a leitura de Sartre, de Simone de Beauvoir, de Albert Camus, sintonizados com uma filosofia que implicava liberdade e responsabilidade, nos enchiam de um prazer de convicção de outros mundos possíveis, de libertação de vínculos e simultaneamente de ausência de preconceitos a que estávamos habituados, quer na vida familiar ou social, quer na literatura anterior, em todo o caso, numa expressão de rigor jamais descendo de nível. Para mim, sobretudo, os livros de Simone de Beauvoir, “Mémoires d’une Jeune Fille Rangée”, “L’Invitée” e outros, eram como exemplos de mundos que revelavam uma ânsia de viver bem diferente das leituras do nosso convencionalismo menos intervencionista. Bem assim as peças de Sartre, os livros de Camus, que sublinhavam o absurdo da vida, terrivelmente condicionada pela loucura ambiciosa e criminosa da guerra, para além do sentimento da precariedade existencial. Mas muitos outros escritores franceses nos causaram, de facto, um grande prazer face à sua dimensão humanística, num tempo de abertura para a diversidade das escolhas. Faziam pensar, os livros desses escritores existencialistas, libertadores de grilhetas. Mas faziam rir ou meditar os livros dos séculos anteriores, e sobretudo o XIX. Entre esses, Óscar Wilde, e as suas peças de teatro, entre as quais “The importance of being Earnest”, obra prima de graça simultaneamente irreverente e polida, própria das esferas sociais de elegância vitoriana, em que contrastam irreverência e sensatez, a par dos sentimentos de real nobreza e amizade. Uma peça de gargalhada contínua, (sem os excessos da nossa modernidade de requinte obsceno), desempenhada, em filme por Colin Firth no papel de Algernon, actor que já conhecia da série “Orgulho e Preconceito” dos meus encantos.
Tudo isto, a propósito dos conceitos expendidos nos textos de Salles da Fonseca, de responsabilização desses escritores filósofos, apontada por Camus, nessa evolução rápida para os excessos de imoralismo provenientes dessas filosofias do nihilismo e da libertação, e da cada vez maior ausência de senso nos excessos sociais e até literários da nossa actualidade portuguesa e do tempo em si.
Não, não é mais tempo de rir com as brincadeiras do Algernon sobre o seu amigo Jack, que se faz passar por Earnest, nome severo, junto da sua amada, nome usurpado por Algernon para satisfazer os gostos da sua meiga e caprichosa Cecily, o que origina, naturalmente quiproquós e baptizados a contento, antes de tudo se deslindar, os amigos transformados em irmãos, uma preceptora responsável pela trama das identidades, uma tia convencional, alvo da irreverência crítica do autor, um padre necessário à história e objecto de troça igualmente.

Nada disto tem a ver com os textos sérios de Salles da Fonseca. Os excelentes comentários de Duarte Justo, de Palhinha Machado e de  Adriano Lima, servem bem de justificação dos textos da escolha e comentário de Salles da Fonseca. Perante a enormidade do desastre dos tempos que vivemos, sucedâneos ao tal nihilismo e ao tal existencialismo responsáveis de tanta “nulidade” actual, apeteceu-me refugiar-me num outrora das maravilhas literárias que íamos vivendo, sem se contar então que descambasse assim.
CAÍDOS NO POPULISMO: REVENDO CAMUS E NIETZSCHE
 HENRIQUE SALLES DA FONSECA                           
A BEM DA NAÇÃO, 09.12.18
Friedrich Nietzsche (1844 —1900)
«Uma vez que o velho Deus abdicou, governarei o mundo doravante» - assim apregoava Nietzsche, o pai do niilismo.
A era niilista manifestou-se muito antes do que o filósofo imaginara: catorze anos depois da sua morte iniciou-se a Primeira Guerra Mundial e depois dela a Europa ficou nas garras do fascismo, do comunismo e do nazismo. E pouco tempo depois da primeira, sofreu outra guerra pior ainda que a anterior.
Desprezada a Civilização no que ela continha de valores perenes dando corpo à dignidade humana, a violência triunfou sobre a verdade e sobre a bondade. Dezenas de milhões de vidas foram aniquiladas sob o aplauso de dezenas de milhões de admiradores da violência. Sim, porque o niilismo só pode conduzir à ditadura, à violência e à aniquilação.
E como começou ele? Perante o igualitarismo, todos têm razão, a ninguém é reconhecido o estatuto de sábio e tudo o que se apresente difícil é considerado antidemocrático; morto o conceito de que «o peso material determina o valor do oiro e o peso moral determina o valor do homem», a matéria reina e o dinheiro é a divindade suprema. Moral? A cada um, a sua.
O que é bom para o oiro é bom para ti! Comercializa-te, adapta-te! Tudo o que te torna mais rico é útil; o que não for divertido é inútil e pode desaparecer.
Cada um que se valha a si próprio e os outros que «se virem» se conseguirem e, se não, tanto melhor pois mais fica para o vencedor entesourar.
Eis um conjunto de indivíduos que tudo fazem para vingar individualmente em prejuízo do próximo. A inveja ganha adeptos. Só que isto não é uma sociedade e muito menos uma Civilização. E onde não há coesão social, todos se sentem desamparados. Mas o desamparo é desconfortável. O desconforto gera a queixa e sempre acaba por conduzir à busca de soluções para se regressar a alguma situação assemelhável a conforto.
Assim se reúnem os ingredientes suficientes para que apareça um caudilho com promessas cujos méritos os desamparados não querem sequer questionar. E a ditadura, sempre radical, gera a violência e esta é a destruição.
Albert Camus (Argélia, 1913 — França, 1960)
Foi depois de muita desgraça que na tarde de 29 de Outubro de 1946, Albert Camus perguntou ao anfitrião André Malraux e ao grupo de outros convidados em que se destacava Jean-Paul Sartretodos nascidos no niilismo e no materialismo histórico - se não achavam serem eles próprios, naquela sala, os maiores responsáveis pela falta de valores na Europa ocidental e se não estaria na hora de declararem abertamente que estavam errados, que os valores morais existem realmente e que doravante tudo fariam para restabelecer e clarificar esses princípios perenes e quiçá eternos. «Não acham que seria o princípio para o regresso de alguma esperança?»
 E hoje? Ah!, hoje, a História é a mesma que há muito Camus descreveu. Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
Riemen, Rob – NOBREZA DE ESPÍRITO, UM IDEAL ESQUECIDO, Bizâncio, Lisboa, Abril 2011
Judt, Tony – O PESO DA RESPONSABILIDADE (Blum, Camus, Aron e o séc. XX francês), Edições 70, Maio de 2018
COMENTÁRIOS:
 António da Cunha Duarte Justo, 09.12.2018: Muito bom e oportuno texto! Parabéns. Niilismo é a chave da porta de entrada para a decadência; o super-homem torna-se num balão enchouriçado com banalidades do imediato; ele conduz à insensatez da vida e legitima toda a barbaridade e violência. Com o igualitarismo segue-se a programática socialista marxista que pretende nivelar tudo pela rasoura da ignorância e assim abolir o pensamento, o discernimento, passando a valer a lei do mais forte. Cai-se na arbitrariedade que conta com o peso da força bruta. O niilismo é um filho do materialismo que quer colocar Deus (a diferença) em oposição à lei par, a com esta, substituir a valia dos valores que partem do senso comum.

 Anónimo  09.12.2018: O homem, a humanidade não tem jeito. Nem futuro.

 09.12.2018: José Montalvão e Silva gostou disto.


Caro Dr. Salles da Fonseca:
Bela reflexão. Mas o pobre do dinheiro, que tem costas largas, não é o culpado de tudo o que acontece ao cimo do planeta. E os valores, então?Os valores definem a classe (é isso, cada vez estou mais hegeliano). Desde os Enciclopedistas, passando pelo nosso Marocas Soares, se alimentou a ideia de que, basta dar educação à populaça ignara para esta se tornar réplica perfeita da classe bem-pensante. Qual quê? A populaça, instruída, mas não de todo educada, gera os seus próprios valores - valores que a classe bem-pensante (tenho dificuldade é denominá-la de elite) despreza. É isto a que hoje assistimos.
Razão tinha Constantino (o de "In hoc signo vinces" e da Ponte Mílvia) que só uma religião oficial conseguiria uniformizar a ordem de valores. Sem religião, nada feito.
Abraço António Palhinha Machado

 Adriano Lima  09.12.2018  
Textos deste quilate é que vale a pena criar blogues ou visitá-los. Camus interpelou os seus pares mas não deve ter sido ouvido porque há momentos em que é desconfortável confrontarmo-nos com as nossas certezas graníticas. A vaidade por vezes embota a honestidade intelectual e a clareza do raciocínio.
Considero que os tempos actuais são ainda piores do que quando Camus pôs o dedo na ferida. Naquele tempo haveria ainda uma réstia de ideologia, e de sinal contrário. Hoje estamos submetidos e regidos por um único credo – o do mercado – que dispensa directrizes de pensamento que conflituem com as suas certezas adquiridas. Os tempos são de hedonismo puro, de consumismo material como única razão para existir.

Que jeito nos daria ressuscitar Camus para apelar à sua clarividência e encontrar alguma Ética para podermos acreditar no futuro.
Textos deste quilate é que vale a pena criar blogues ou visitá-los. Camus interpelou os seus pares mas não deve ter sido ouvido porque há momentos em que é desconfortável confrontarmo-nos com as nossas certezas graníticas. A vaidade por vezes embota a honestidade intelectual e a clareza do raciocínio.
Considero que os tempos actuais são ainda piores do que quando Camus pôs o dedo na ferida. Naquele tempo haveria ainda uma réstia de ideologia, e de sinal contrário. Hoje estamos submetidos e regidos por um único credo – o do mercado – que dispensa directrizes de pensamento que conflituem com as suas certezas adquiridas. Os tempos são de hedonismo puro, de consumismo material como única razão para existir.
Que jeito nos daria ressuscitar Camus para apelar à sua clarividência e encontrar alguma Ética para podermos acreditar no futuro.


Muito oportuno e com muita razão. 
Com um abraço agradecido do 
José Carlos Gonçalves Viana

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