Era nos tempos em que a
leitura de Sartre, de Simone de Beauvoir, de Albert Camus, sintonizados com uma
filosofia que implicava liberdade e responsabilidade, nos enchiam de um prazer
de convicção de outros mundos possíveis, de libertação de vínculos e
simultaneamente de ausência de preconceitos a que estávamos habituados, quer na
vida familiar ou social, quer na literatura anterior, em todo o caso, numa
expressão de rigor jamais descendo de nível. Para mim, sobretudo, os livros de Simone de Beauvoir, “Mémoires d’une Jeune Fille Rangée”,
“L’Invitée” e outros, eram como exemplos de mundos que revelavam uma ânsia
de viver bem diferente das leituras do nosso convencionalismo menos
intervencionista. Bem assim as peças de Sartre, os livros de Camus, que
sublinhavam o absurdo da vida, terrivelmente condicionada pela loucura
ambiciosa e criminosa da guerra, para além do sentimento da precariedade
existencial. Mas muitos outros escritores franceses nos causaram, de facto, um
grande prazer face à sua dimensão humanística, num tempo de abertura para a
diversidade das escolhas. Faziam pensar, os livros desses escritores
existencialistas, libertadores de grilhetas. Mas faziam rir ou meditar os
livros dos séculos anteriores, e sobretudo o XIX. Entre esses, Óscar Wilde, e as suas peças de teatro,
entre as quais “The importance of being
Earnest”, obra prima de graça simultaneamente irreverente e polida, própria
das esferas sociais de elegância vitoriana, em que contrastam irreverência e
sensatez, a par dos sentimentos de real nobreza e amizade. Uma peça de
gargalhada contínua, (sem os excessos da nossa modernidade de requinte
obsceno), desempenhada, em filme por Colin
Firth no papel de Algernon, actor que já conhecia da série “Orgulho e Preconceito” dos meus
encantos.
Tudo isto, a propósito dos
conceitos expendidos nos textos de Salles
da Fonseca, de responsabilização desses escritores filósofos, apontada por
Camus, nessa evolução rápida para os excessos de imoralismo provenientes dessas
filosofias do nihilismo e da libertação, e da cada vez maior ausência de senso
nos excessos sociais e até literários da nossa actualidade portuguesa e do
tempo em si.
Não, não é mais tempo de rir
com as brincadeiras do Algernon sobre o seu amigo Jack, que se faz passar por
Earnest, nome severo, junto da sua amada, nome usurpado por Algernon para
satisfazer os gostos da sua meiga e caprichosa Cecily, o que origina,
naturalmente quiproquós e baptizados a contento, antes de tudo se deslindar, os
amigos transformados em irmãos, uma preceptora responsável pela trama das identidades,
uma tia convencional, alvo da irreverência crítica do autor, um padre
necessário à história e objecto de troça igualmente.
Nada disto tem a ver com os
textos sérios de Salles da Fonseca. Os excelentes comentários de Duarte Justo, de Palhinha Machado e de Adriano Lima, servem bem de justificação
dos textos da escolha e comentário de Salles da Fonseca. Perante a
enormidade do desastre dos tempos que vivemos, sucedâneos ao tal nihilismo e ao
tal existencialismo responsáveis de tanta “nulidade” actual, apeteceu-me
refugiar-me num outrora das maravilhas literárias que íamos vivendo, sem se contar então que descambasse assim.
CAÍDOS NO POPULISMO: REVENDO CAMUS E NIETZSCHE
HENRIQUE SALLES DA FONSECA
A BEM DA NAÇÃO, 09.12.18
A BEM DA NAÇÃO, 09.12.18
Friedrich Nietzsche (1844
—1900)
«Uma vez que o velho Deus abdicou, governarei o mundo doravante» - assim apregoava Nietzsche, o pai do niilismo.
A era niilista manifestou-se muito antes do que o filósofo
imaginara: catorze anos depois da sua morte iniciou-se a Primeira Guerra
Mundial e depois dela a Europa ficou nas garras do fascismo, do comunismo e do
nazismo. E pouco tempo depois da primeira, sofreu outra guerra pior ainda que a
anterior.
Desprezada a Civilização no que
ela continha de valores perenes dando corpo à dignidade humana, a violência triunfou sobre a verdade e sobre a bondade.
Dezenas de milhões de vidas foram aniquiladas sob o aplauso de dezenas de
milhões de admiradores da violência. Sim, porque o niilismo só pode conduzir à
ditadura, à violência e à aniquilação.
E como começou ele? Perante o igualitarismo, todos
têm razão, a ninguém é reconhecido o estatuto de sábio e tudo o que se
apresente difícil é considerado antidemocrático; morto o conceito de que «o peso material determina
o valor do oiro e o peso moral determina o valor do homem», a matéria reina e o dinheiro é a
divindade suprema. Moral? A cada um, a sua.
- O que é bom para o oiro é bom para ti!
Comercializa-te, adapta-te! Tudo o que te torna mais rico é útil;
o que não for divertido é inútil e pode
desaparecer.
Cada um que se valha a si
próprio e os outros que «se virem» se conseguirem e, se não, tanto melhor pois
mais fica para o vencedor entesourar.
Eis um conjunto de indivíduos que tudo fazem para vingar
individualmente em prejuízo do próximo. A inveja ganha adeptos. Só que isto não
é uma sociedade e muito menos uma Civilização. E onde não há coesão
social, todos se sentem desamparados. Mas o desamparo é desconfortável.
O desconforto gera a queixa e sempre acaba por conduzir à busca de soluções
para se regressar a alguma situação assemelhável a conforto.
Assim se reúnem os ingredientes
suficientes para que apareça um caudilho com promessas cujos méritos os
desamparados não querem sequer questionar. E a ditadura, sempre radical, gera a
violência e esta é a destruição.
Albert Camus (Argélia, 1913 —
França, 1960)
Foi depois de muita desgraça que na tarde de 29 de Outubro de 1946, Albert Camus perguntou ao anfitrião André Malraux e ao grupo de outros convidados em
que se destacava Jean-Paul Sartre – todos
nascidos no niilismo e no materialismo histórico - se não achavam serem eles próprios, naquela sala, os
maiores responsáveis pela falta de valores na Europa ocidental e se não estaria
na hora de declararem abertamente que estavam errados, que os valores morais
existem realmente e que doravante tudo fariam para restabelecer e clarificar
esses princípios perenes e quiçá eternos. «Não acham que seria o princípio para o regresso de alguma esperança?»
E hoje? Ah!,
hoje, a História é a mesma que há muito Camus descreveu. Henrique Salles da Fonseca
BIBLIOGRAFIA:
Riemen, Rob – NOBREZA DE ESPÍRITO, UM IDEAL ESQUECIDO, Bizâncio, Lisboa, Abril 2011
Judt, Tony – O PESO DA RESPONSABILIDADE (Blum, Camus, Aron
e o séc. XX francês), Edições 70, Maio de 2018
COMENTÁRIOS:
António da
Cunha Duarte Justo, 09.12.2018: Muito bom e oportuno texto! Parabéns. Niilismo é a chave da porta de
entrada para a decadência; o super-homem torna-se num balão enchouriçado com
banalidades do imediato; ele conduz à insensatez da vida e legitima toda a
barbaridade e violência. Com o igualitarismo segue-se a programática socialista
marxista que pretende nivelar tudo pela rasoura da ignorância e assim abolir o
pensamento, o discernimento, passando a valer a lei do mais forte. Cai-se na
arbitrariedade que conta com o peso da força bruta. O niilismo é um filho do
materialismo que quer colocar Deus (a diferença) em oposição à lei par, a com
esta, substituir a valia dos valores que partem do senso comum.
Anónimo 09.12.2018: O homem, a humanidade não tem jeito. Nem
futuro.
09.12.2018: José Montalvão e Silva gostou
disto.
Caro Dr. Salles da
Fonseca:
Bela reflexão. Mas o pobre do dinheiro, que tem costas
largas, não é o culpado de tudo o que acontece ao cimo do planeta. E os
valores, então?Os valores definem a classe (é isso, cada vez
estou mais hegeliano). Desde os Enciclopedistas, passando pelo nosso Marocas
Soares, se alimentou a ideia de que, basta dar educação à populaça ignara para
esta se tornar réplica perfeita da classe bem-pensante. Qual
quê? A populaça, instruída, mas não de todo educada, gera os seus próprios
valores - valores que a classe bem-pensante (tenho dificuldade é denominá-la
de elite) despreza. É isto a que hoje assistimos.
Razão tinha Constantino (o de
"In hoc signo vinces" e da Ponte Mílvia) que só uma religião oficial
conseguiria uniformizar a ordem de valores. Sem religião, nada feito.
Abraço António Palhinha Machado
Adriano
Lima 09.12.2018
Textos deste quilate é que vale a pena criar blogues ou visitá-los. Camus
interpelou os seus pares mas não deve ter sido ouvido porque há momentos em que
é desconfortável confrontarmo-nos com as nossas certezas graníticas. A vaidade
por vezes embota a honestidade intelectual e a clareza do raciocínio.
Considero que os tempos actuais são ainda piores do que quando Camus
pôs o dedo na ferida. Naquele tempo haveria ainda uma réstia de ideologia, e de
sinal contrário. Hoje estamos submetidos e regidos por um único credo – o do
mercado – que dispensa directrizes de pensamento que conflituem com as suas
certezas adquiridas. Os tempos são de hedonismo puro, de consumismo material
como única razão para existir.
Que jeito nos daria ressuscitar Camus para apelar à sua clarividência e
encontrar alguma Ética para podermos acreditar no futuro.
Textos deste quilate é que vale a
pena criar blogues ou visitá-los. Camus interpelou os seus pares mas não deve
ter sido ouvido porque há momentos em que é desconfortável confrontarmo-nos com
as nossas certezas graníticas. A vaidade por vezes embota a honestidade intelectual
e a clareza do raciocínio.
Considero que os tempos actuais
são ainda piores do que quando Camus pôs o dedo na ferida. Naquele tempo
haveria ainda uma réstia de ideologia, e de sinal contrário. Hoje estamos
submetidos e regidos por um único credo – o do mercado – que dispensa
directrizes de pensamento que conflituem com as suas certezas adquiridas. Os
tempos são de hedonismo puro, de consumismo material como única razão para
existir.
Que jeito nos daria ressuscitar
Camus para apelar à sua clarividência e encontrar alguma Ética para podermos
acreditar no futuro.
Muito oportuno e com muita razão.
Com um abraço agradecido do
José Carlos Gonçalves Viana
Com um abraço agradecido do
José Carlos Gonçalves Viana
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